Um texto especial para o meu grande amigo Gustavo Garcia.
Carlos Campos, numa agradável e inesquecível visita que me proporcionou aos estúdios da SIC, deu-me a conhecer pormenores a que na altura, por serem muitos e cada um mais interessante que o anterior, não consegui reagir de acordo com a importância do que estava a ver. Um deles, foi a possibilidade de estar fechado por breves instantes numa sala insonorizada. Ali é feita a tradução, através de linguagem gestual, daquilo que os pivots estão a passar para os espectadores, tentando fazer chegar essa mensagem a pessoas com deficiência auditiva. Abstraindo-me da dificuldade enorme que deve ter o facto de essas pessoas terem de ouvir e traduzir no momento, queria relatar-vos um outro detalhe que me impressionou: a falta de som. Isso é algo que impressiona verdadeiramente, porque não estamos habituados, não existe no nosso mundo. O som, enquanto parte integrante do nosso meio ambiente, é de uma importância extrema, porque nos dá informação. E é sobre isso que iremos falar hoje, relativamente ao acto de pesca.
Quem anda regularmente debaixo de água, entende a importância do ruído, e sabe que tem sempre consequências. Quem não mergulha, …pode querer acreditar que nada se passa sob a superfície da água. Mas será mesmo assim?
Sigam o meu raciocínio.
Na natureza, não existe o silêncio. O som e o ruído existem em todo o lado, e são parte integrante de todas as nossas acções, inclusive na pesca.
Não vos vou dar uma definição demasiado técnica de som, nem de ruído, mas parece-me importante partirmos da sua definição simples para entendermos este conceito. Poderemos dizer que som é algo, uma onda sonora, captada pelos nossos tímpanos, que por sua vez, e por vibração destes, é passada ao cérebro, que o descodifica. Mas falámos também de ruído. Vejamos a diferença entre som e ruído, e de que forma isso influencia as nossas pescarias.
Sendo o som um fenómeno acústico que consiste na propagação de ondas sonoras produzidas por um corpo que vibra em meio material elástico, especialmente o ar, ele desenvolve-se e bem em líquidos e ainda mais em sólidos. Vamos entender de que forma os peixes têm vantagens sobre nós, por se movimentarem no meio liquido.
O ouvido humano percebe vibrações sonoras de 16 Hz a 20.000 Hz. Temos um intervalo em que nos sentimos mais confortáveis: entre 2 KHz e 5 KHz. Abaixo disso ou acima disso, ouvimos mal. Sons muito baixos são inaudíveis, sons demasiado altos são ruído, e ultrapassam a nossa capacidade de absorção. Dou-vos exemplos: um avião quando passa por nós emite 130dB, uma pessoa a conversar emite 70 dB, no nosso quarto de dormir costumamos ter 30dB, sendo os 10 dB o nosso limiar de audição.
O ruído, um fenómeno físico que consiste numa mistura de sons cujas frequências não seguem um padrão preciso, é constituído por grande número de vibrações acústicas com relação de amplitude e frequência distribuídas ao acaso. Digamos que ruído é uma sensação sonora considerada indesejável.
Se deixarmos cair um copo ao chão, sabemos o que aconteceu, sem olhar. Conhecemos o ruído e não nos é agradável. A talhe de foice, o princípio técnico do telefone é outra coisa: o telefone é definido como um aparelho electroacústico que permite a transformação, no ponto transmissor, de energia acústica em energia eléctrica e, no ponto receptor, a energia eléctrica é transformada novamente em acústica, permitindo desta forma a troca de informações, através da fala, entre duas pessoas.
Falemos de sons na natureza: as baleias comunicam entre si, a dezenas de quilómetros de distância. O som é indispensável à sua sobrevivência, quer em termos de permitir o encontro entre indivíduos, que de outra forma não se encontrariam no imenso mar, quer em termos de segurança, aviso. Eu mergulhei durante anos num local muito visitado por baleias, os baixos de Joal, e de M`Bour, no Senegal. São zonas muito baixas, podemos ter 20 metros a 70 km da costa. Ouvi baleias que me parecia estarem em cima de mim, a poucos metros quando na verdade estariam a dezenas de quilómetros. São mesmo muito difíceis de ver, porque quando nos aproximamos, mergulham e permanecem durante muitos minutos submersas.
No Clube Naval de Setúbal, na zona de atracagem dos barcos, as tainhas não querem saber do ruído dos motores. Nasceram ali… |
Mas voltemos ao som, e aos peixes. Tudo o que é ruído é entendido pelos peixes. Os nossos passos na praia, no convés do barco, de certa forma os nossos gritos, a caída das nossas amostras, dos nossos chumbos no fundo. O nosso motor, à chegada aos pesqueiros. Para nosso azar, os peixes sentem estes ruídos em todo o corpo, através da sua linha lateral, ou seja, recebem a informação de forma diferente da nossa. De resto, não têm orelhas. O seu sistema auditivo é rudimentar, não têm o ouvido médio, nem o ouvido externo. Apenas contam com dois ouvidos internos, alojados na zona lateral do crânio, e ligados ao cérebro por um nervo auditivo. Ouvem de 30 a 3000 vibrações por segundo, (o que os deixa em desvantagem em relação a nós, que ouvimos até 30.000), e percebem sobretudo os sons graves. Digamos que aquilo que se passa fora de água é menos perceptível, mas o que se passa dentro de água chega-lhes com enorme facilidade. Tem a ver com a densidade da água, que, ao ser mais densa que o ar, permite a transmissão das vibrações de forma muito mais eficaz.
O órgão receptor do peixe é muito sensível, muito mais do que podemos julgar, e percebe vibrações de baixa intensidade através da sua linha lateral, que vai do opérculo à base da cauda. Esta linha tem várias fossas, furos que atravessam as escamas e que estão ligados a um sistema nervoso fino, sensível, que transporta a informação ao cérebro. É assim que os peixes captam os estímulos sonoros, (e também outros, como o gosto, o paladar), e por isso conseguem ser tão sensíveis às vibrações, provocadas por nós. No nosso caso, os humanos, essa sensibilidade de perceber vibrações perde-se, porque nos movimentamos em meio gasoso, e o ar é pouco denso, não transmite. Para os peixes é muito mais fácil, eles estão no meio aquático, o que os favorece, porque propaga muito.
Na verdade, poucos de nós temos a noção do ruído que provocamos. Seriamos mesmo capazes de jurar que não o fazemos. Mesmo quando nos parece que o ruído é absorvido, ele está lá e é entendido pelos peixes, que ao senti-lo, adoptam uma atitude de defesa. Aquilo que fazemos revela a nossa presença, e isso basta, é suficiente para que o peixe o interprete como uma ameaça. Há ruídos que são normais, e que para os peixes são sons: a areia que rola, a água que bate contra a rocha. Mas uma âncora que cai não é isso! Os nossos ruídos, mesmo aqueles que não nos são perceptíveis delatam a nossa presença, e têm um impacto sobre os peixes que nos circundam. Existem autores e cientistas consagrados que se atrevem a julgar que, de um lado ao outro do barco, aquilo que fazemos influencia o comportamento dos peixes em 30 metros em redor. O que significa um raio de acção de sessenta metros! Mesmo no ar, que lhes dá uma menor informação, existem ruídos que chegam aos peixes, por exemplo a tosse: nós quando tossimos expulsamos ar da nossa boca a 200km/h….
Quando pescamos em pesqueiros baixos, digamos 2 metros, e caso os peixes estejam a 40 cm da superfície, eles conseguem detectar todos os nossos ruídos de voz. A essa profundidade os sons ainda não foram absorvidos por outros ruídos que existem ao mesmo tempo no meio aquático. Não esqueçam que existem as vagas, a ressaca das ondas, a espuma, o vento que sopra. Tudo é ruído, sendo algumas destas coisas, por fazerem parte do meio líquido, são entendidas pelos peixes como som. Fazem parte da sua vida desde sempre, são duráveis. Para nós humanos, não. São entendidos como ruído. Entendem agora a questão do som e ruído? Estes sons nada têm a ver com os ruídos provocados pelo pescador. Estes sim, têm impacto sobre o peixe. Nunca esqueçam, a água é um meio intensivo de transmissão de dados por excelência. Um pequeno ruído é o suficiente para os colocar em alerta, e modificar o seu comportamento. Uma chumbada a cair no barco, tem sempre impacto na atitude do peixe.
Digamos que tudo aquilo que fazemos pode potencialmente produzir ruído. Não há pesca sem ruído. O silencio seria impossível, porque para isso não poderíamos pescar, teríamos de ficar imóveis. Mas estamos a tratar de convencer peixes a picar, e isso é outra história. Eles estão armados para detectar sons e ruídos que nós não conseguimos ouvir, e outros a que não atribuímos importância. Para ele têm muita importância, porque são a diferença entre a vida e a morte. Os nossos peixes são perseguidos dia e noite, por traineiras, com redes, por pescadores com linhas e anzóis, por caçadores submarinos. Os que não querem saber de ruídos são os peixes mortos. Outro detalhe: as nossas sondas têm um principio de funcionamento que se baseia em emitir sons, e captar o eco desses sons. Há sondas de melhor e pior qualidade. As mais baratas serão mais barulhentas, as sondas mais modernas serão “ mais suaves”. Grosso modo, as sondas, ou eco sondas, captam os sons emitidos e reflectidos por superfícies mais ou menos duras, e transformam esses ecos em imagem. Quanto mais duras são essas superfícies mais reflectem esse som, e têm ressonância. Os peixes são sensíveis a isso. Logo, depois de sondarmos o que temos a sondar, … lançamos âncora, ( fazendo mais uma vez ruído) e desligamos a sonda, certo?!
Os peixes quando desconfiam e não picam não os conseguimos pescar. Digamos que por opção nossa, fazendo ou não fazendo ruído, podemos determinar o nível de sucesso da nossa pescaria.
Podemos controlar pelo menos parte do ruído que produzimos. Porque não sabemos o que está abaixo, também não conseguimos ter a ideia do que poderíamos ou não ter pescado, caso tivéssemos tido outra atitude. O meu amigo Gustavo Garcia costuma levar duas geleiras para a pesca. Ele não faz por mal, mas em zonas super remotas, onde raramente temos outro barco a nosso lado, ele encarrega-se de produzir ruídos que nada têm a ver com sons. Arrasta as geleiras no barco, para retirar um anzol, para deixar um peixe, para sacar de uma sandes. E a cada movimento, está a avisar os peixes de que estamos lá, estamos por eles, e por isso é bom que tenham cuidado. Os peixes pequenos picam, as judias, os serranos, garoupinhas, sarguinhos, choupinhas, cavalas, etc, mas os grandes, ….com esses é outra história, eles não chegaram a velhos por serem pouco dotados. Ouvem, interpretam, e se chegámos ao seu limite de tolerância, ….saem da zona.
Junto a estes pés-de-galo, na Nazaré, os peixes têm sempre o impacto das ondas, e por isso os nossos ruídos são abafados pelos sons naturais. |
Por outro lado, em zonas em que o ruído é uma constante, pode chegar a ser interessante chamar a atenção para a nossa amostra. Por isso se fabricam amostras com esferas interiores. Numa zona de grande rebentação, o robalo detecta melhor a nossa amostra se esta, para além de emitir vibrações, também emitir sons. Mas são situações muito particulares. Numa zona calma, a batida de uma amostra pode enganar um peixe, mas dificilmente engana dois. Ao passo que, com uma amostra bem mais pequena, que não emita mais do que aquele “plop” suave que faria um pequenino peixe a saltar, é possível pescar uma dúzia. Tentem as bailas e robalos ao raiar do dia, com amostras pequenas, sem esferas, sem ruído, e digam-me como foi.
O grande Gustavo, meu inseparável companheiro de pesca, em águas paradas, completamente calmas, porque tem linhas mais grossas no carreto, aplica uma oliva de chumbo antes da amostra. Com isso, consegue lançar melhor. Até lança mais longe, …mas o ruído dessa amostra assusta os peixes, que não têm esse ruído como um som natural, e por isso desconfiam. A partir daí, é sair, porque a nossa pescaria ali está feita. E basta que uma pessoa o faça, esse ruído de “amostra pé-de-galo” a cair, e os outros ficam a olhar para o “dezoito”….os peixes afundam, desconfiam, e vão embora. Ou não picam, que vai dar ao mesmo. Gustavo Garcia, acredite: para um peixe que está a caçar, que está predisposto a picar, o som da sua amostra a cair na água é o equivalente ao meu querido amigo estar num velório, no mais completo silêncio, e tocar o seu telemóvel! Garcia, os peixes, ao contrário daquilo que nós fazemos, não falam de futebol, eles estão em constante atenção máxima. Temos de entender este factor ruído pela perspectiva dos peixes. Temos de tentar entender o que se passa pela perspectiva deles e não a nossa. Do outro lado, é a intuição. É isso que os mantém vivos. Eles conhecem os seus ciclos de alimentação, as marés, as ondas, as correntes. Aquele é o seu meio de vida. O peixe não tem medo do mar, mas tem medo do que não conhece, e os nossos ruídos podem fazer-lhes mal. Do nosso lado, sobre intuição, há pescadores que a têm, e outros não a têm, nem nunca a terão. Mais de noventa por cento das pessoas pesca efectivamente mal.
Em zonas onde o ruído é uma constante, (eu já pesquei na China, na saída de barcos que faziam a travessia para Hong-Kong, e o horrível ruído dos motores era uma constante, logo, para os peixes torna-se um som), é natural que a nossa movimentação e ruídos provocados sejam atenuados. Mas quando estamos numa zona abrigada, sem outras embarcações à volta, há que ter muito cuidado. Eu quando mergulho, ouço perfeitamente, a 20 metros de profundidade, os ruídos provocados pelo meu barqueiro, no barco. Arrastar uma caixa, deixar cair um objecto. No fundo, tudo aquilo que não é um som natural, chama a atenção. Esses, os sons naturais, são o crepitar do peixe que come na pedra, são as caudas dos peixes que se assustam connosco e dão um impulso mais forte. Tudo isso se ouve. Não resisto a contar-vos isto:
Estava a caçar com o Cherif, em Dakar. A dada altura ele disse-me: “queres ir ouvir os grandes pargos do Senegal?”. Claro que sim. Lá fomos, para uma zona relativamente baixa, a 15 metros de profundidade. A costa não estaria a mais de 300 metros, e pontificava no horizonte uma imponente mesquita. Havia um emissário que vinha da localidade e turvava as águas, a visibilidade era mais que medíocre. Não se via absolutamente nada. Perguntei-lhe se valia mesmo a pena. Que sim, queria uma experiência incrível. Carreguei a arma e preparei-me para descer. Ele, do alto da sua grande sabedoria disse-me: “eu às vezes mergulho aqui, mas nem levo arma, vou só ouvi-los”. Na verdade, tinha razão. Ao chegar ao fundo, que descobri porque levava uma mão esticada à frente da cabeça, parei e deitei-me sobre a rocha. Daí a segundos, comecei a escutar estrondos sucessivos, ao lado da minha cabeça, estalos provocados pelas caudas do pargos lucianos. Eram dezenas deles, enormes, e cada um, ao bater a cauda enervava os outros mais e mais, fazendo parecer uma trovoada à volta da nossa cabeça. Não se via um palmo, apenas se sentia a deslocação de água dos enormes peixes, a centímetros da minha cabeça. Segundo o Cherif alguns poderiam passar os 40 kgs. Voltei à superfície, e ele ria na sua simplicidade de quem conhecia o fenómeno, de que sabia muito bem o que eu iria sentir. Inolvidável.
Vítor Ganchinho
Ter o grande Gustavo como companheiro de pesca, não é para qualquer um, juntar-se duas pessoas muito especiais. Grande abraço
ResponderEliminar👍 Muito obrigado. Abraço
EliminarOps... juntam-se
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