TEXTOS DE PESCA - A caça de espera ao sargo


A pedido de várias famílias, vou hoje escrever sobre a caça de espera, na gíria de mergulho o “agachon”, um termo francês que foi bem recebido entre nós.

Consta dos anais da história que o introdutor deste tipo de caça em Portugal terá sido o grande Jean Baptiste Esclapez, um simpático francês que foi campeão da Europa em 1980, numa prova organizada em Sesimbra.

Quando todos os concorrentes partiram à desfilada para ver quem chegava em primeiro às paredes do cabo Espichel, sempre com peixe, ele, sozinho, ficou o tempo todo junto à praia do Cavalo, bem perto de Sesimbra, a fazer as ditas esperas, aos sargos.

Ganhou destacadíssimo, e a partir daí, a caça submarina nunca mais foi a mesma no nosso país. Estava descoberto um dos maiores mistérios do comportamento dos peixes: à chegada do mergulhador todos fogem para onde podem, mas depois, pouco a pouco, acabam por ter curiosidade, e voltar ao local. É isso o agachon, uma espera feita junto ao fundo, escondidos com uma rocha, com algas, é isso que vamos analisar aqui abaixo. 

O agachon é uma técnica a utilizar quando se tem vagar, nada de pressas, nada de repentismos. Porque não se caça em agachon de empreitada. É uma técnica, que como o próprio nome não indica, originária do litoral alentejano. “Eles que venham cá, …se querem, que eu fico deitado”. 
Consiste basicamente em esperar. Ora ninguém melhor que o bom povo alentejano, no qual me incluo, para saber esperar. Caça-se como quem espera uma consulta da Caixa. Leva tempo. 

Basicamente, o bom caçador de agachon é um ser humano avariado. Não respira. Ao caçador de agachon é reservado o direito de resistir à tentação do movimento, até aos limites fisiológicos da tolerabilidade. Isto traduzido significa que só se sobe à superfície a dois centésimos de segundo do enfarte do miocárdio. Explico como se faz: vai o “Toino” para o fundo, com os dedos no nariz a fazer de mola da roupa. Compensa os timpanos enquanto desce. Escolhe um sítio macio para aterrar, e fica quieto. Olha em volta e nem vivalma, foi tudo embora. É o sítio perfeito. 

A quantidade de ar que captou à superfície é gerida com parcimónia, evitando gestos bruscos, que consomem oxigénio. Entra então o atleta num coma profundo, apenas com as funções vitais a funcionar, ou seja, um olho aberto e um dedo no gatilho. Há sempre caçadores que resistem mais. Os bons a sério, os que insistem a valer, são normalmente patrocinados pelas marcas, “Caixões Armindo - no céu é um descanso”, por exemplo. 

O sargo é um peixe moderno, em conformidade com a EU, e por isso já vem com código de barras no corpo. É o peixe que nós estamos à espera. Com águas demasiado limpas, é mais difícil, são desconfiados. Quando turvam, as coisas começam a acontecer. Pelo canto do olho, quando menos se espera, lá está ele, o “artigo”, genuíno, topo de gama, o sargo grande. Em relação às dimensões, e porque estamos em Portugal, não vamos estar à espera de milgares. Não vamos esperar uma aparição de Fátima submersa. O sargo que procuramos tem entre as 250gr e o meio quilo, uma dose individual para grelhar. Estamos a caçar sargos e não sarguetas, logo atirar a sargos pequenos é pimba, é rasca. Deixamos isso para os caçadores mais fracos, aqueles que fumam, que têm um tubo de escape ligado aos pulmões e não aguentam tempo de espera nenhum. Pelo contrário, o bom caçador faz-se acompanhar dos Lusíadas, e é muito selectivo. 

Caçam-se sargos adultos, com peso.

Caça peixe grande, embora retorne à superficie a assobiar de fininho quando descobre o artista principal do filme “Jaws”, o tal tubarãozeco branquinho. Aí, a água do mar arrefece, gela a -10ºC num raio de 1 quilómetro em redor. O caçador, após esse tipo de encontros fica normalmente durante seis meses a bolachinhas de água e sal. 


Parece, mas não é. Trata-se da ponta da asa de uma jamanta, na zona dos Mosteiros, em S. Miguel.

Mas voltemos aos sargos, o tal peixe matreiro. Têm connosco uma estranha relação: aproximam-se e fogem. Alguns, já escaldados, nem se aproximam, apenas fogem. São os refratários, os objectores de consciência. Não adianta dizer-lhes “ voltem filhos que estão perdoados”, porque não voltam mesmo. 

Vão provavelmente esconder-se debaixo de uma pedra. Aí, o sargo é um profissional da fuga , um Houdini de escamas que escapa sempre. 

O agachon é uma tecnica que exige silêncio. Quando o peixe se aproxima convém estar quieto, ou é a debandada geral. Com os peixes à nossa volta, curiosos, há que escolher bem o momento certo para dar o golpe fatal. Daí a necessidade de uma boa preparação fisica. Agachon, copos e fados não rimam, não pegam. Não se vai para o fundo do mar com sono, desnoitado, porque mergulhar é trabalhar no arame sem rede. Poupem-me a escrever sobre o tiro propriamente dito. É a parte sangrenta da questão. O ideal seria não matar os bichinhos, porque os sargos são nossos amigos. Se não lhes fizermos mal eles também não nos fazem mal. Não me peçam para ajudar à autópsia. 



Há muitos sargos. Felizmente para nós, o sargo não é sequer parente afastado do lince da Serra da Malcata. Há zonas em que há bastantes, sobretudo nas pedras com mexilhão, e na maré cheia é necessário pôr semáforos. 

Há zonas de mexilhão em que os sargos grandes são às centenas.

Convém ter o arpão afiado sobretudo para tiros longe. Um arpão com  aponta romba  é como uma tacada de bilhar com um taco sem giz. Os caçadores novatos tendem a não reparar nestes pormenores e é isso que faz com que os sargos sejam cada vez mais desconfiados. E aí, a técnica falha, porque pressupõe imobilidade total. Há muitos caçadores novos que no fundo parecem estar a levar constantes choques eléctricos. Não resulta. Convém manter alguma imobilidade, como se estivéssemos a mergulhar em formol. Também convém dizer que não há um padrão de profundidade para o agachon, o caçador não tem uma cota rígida para cumprir. Pode resultar bem à superfície, ou a 20 metros de fundo, desde que bem feito. Para fazer boas caçadas de sargos a 30 metros ou mais, convém que o caçador acredite firmemente na outra vida, para além da morte.

Caso venha a receber uma carta com 640.000 assinaturas a pedir encarecidamente, posso encarar a possibilidade de vir a escrever sobre a caça profunda.


Vítor Ganchinho

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