TEXTOS DE PESCA - A memória dos peixes


Muito se especula sobre a existência, ou não, de memória nos peixes. 
Quantos de nós não visualizam de imediato a imagem do pequeno peixe, dentro de uma bola de aquário, ao qual são atribuídos 2 segundos de memória, ou seja, o tempo que leva a passar novamente no mesmo local. 
Os nossos jovens são bombardeados com histórias de peixes que se apresentam mutua e continuamente: “Olá, eu sou a Dori…muito prazer, …Olá, eu sou a Dori..muito prazer.”



Mas será que é mesmo assim? A natureza não é uma bola de aquário, e os peixes que não memorizam são pescados/ caçados mais facilmente. Ter memória é uma ferramenta de aprendizagem insubstituível. 

Vou dar-vos a minha opinião, sustentada não em factos científicos, porque não os tenho, mas sim na minha experiência de pescador e caçador submarino. Tenho 57 anos de idade e 51 de pescador. 
Ao longo de mais de meio século acumulei experiência que me permite afirmar sem grandes dúvidas que os peixes têm de facto memória. 
Memorizam os locais de alimentação, memorizam os seus locais de refúgio de um ano para o outro, memorizam a actuação dos seus predadores, suas astúcias para os caçarem, e formas de lhes escapar. Disso eu tenho a certeza!

Tenho em minha casa um lago. Nesse lago, com cerca de 12 metros de comprimento por 6 metros de largura, vivem quatro carpas japonesas e um achigã. Este último controla a população de carpas, os dois casais criam centenas de alevins duas vezes por ano, em Março e Setembro.  
Tenho zero dúvidas de que têm memória. Ao final do dia, costumo sair da casa principal e sair para um anexo, onde tenho instalado o meu quartel general, onde trato de tudo o que tem a ver com pesca. É ali que reparo carretos, substituo linhas, limpo canas, empato anzóis, preparo amostras. Ao final da diária e sempre reconfortante sessão de bricolage de pesca, costumo dar alguma comida ( ração de aquacultura), aos meus peixes. Quando saio, os meus pés farão algum ruído no chão. Também o portão da garagem onde faço os meus trabalhos faz ruído. Embora fique a cerca de 20 metros do lago, os peixes ouvem. E logo de seguida, dirigem-se todos ao local onde normalmente me coloco para os alimentar. Acontece a qualquer hora, porque eu não tenho um horário regular, saio quando calha. Isto indica duas coisas: que os peixes ouvem ruídos, mesmo os que acontecem fora de água, e que têm memória. Sabem prever que vão ser alimentados a partir daquele momento. Mantêm a informação durante semanas, porque quando saio de férias, ao voltar, fazem o mesmo. Têm memória. 



Analisemos agora o que se passa no mar. Vamos começar por separar os peixes em dois grandes grupos: os peixes de cardume, e os peixes solitários. 

As possibilidades de um peixe solitário poder memorizar algo relativamente a predadores, são infinitamente menores. Quando falamos de caça submarina, um safio, ou uma abrótea, são alvos fáceis, e o encontro com o ser humano é normalmente único. 
A facilidade de arpoar um destes peixes é tal que raramente dá uma segunda oportunidade a esse individuo. É um alvo parado, limitado na sua capacidade de fuga, dentro de um buraco. O que podemos referir sobre estes peixes que vivem de caçar à noite, e recolhem aos seus buracos durante o dia, é que  memorizam esses refúgios em termos de localização. As zonas rochosas mais baixas, mais sujeitas às intempéries, sobretudo a dias de mau tempo em que a ondulação varre esses pontos, traz areia, projecta pedras roladas e torna a permanência impossível. 
Por isso, obrigam a uma saída recorrente desses peixes para pontos mais fundos, com menos agitação, logo mais abrigados. Mas assim que as condições de mar voltam a ser aceitáveis, eles tornam aos seus lugares de caça, aqueles que lhes dão vantagens em termos de obtenção de comida e resguardo. 

Dou-vos um exemplo prático de um peixe solitário: o safio

Vítor Ganchinho com um safio capturado na zona do Regueirão.

Nos tempos em que Sesimbra ainda não era reserva marinha, eu tinha um local secreto onde “guardava“ os meus safios, para mostrar quando um amigo me visitava. Na verdade, tratava-se de um sitio tão evidente, tão fácil, que nenhum caçador submarino poderia sequer adivinhar que ali poderia estar escondido um safio daquele tamanho. Muito próximo da Pedra do Leão, junto a Sesimbra, a dois metros de profundidade na vazante, era o local ideal para eu levar aqueles amigos que queriam fazer uma valente caldeirada em suas casas. Normalmente pessoas amigas do Alentejo, que tinham poucas possibilidades de mergulhar, pouco treino, e que por isso apenas tinham acesso a lugares rasos, pouco profundos. A dois metros, aquele safio, normalmente a avizinhar os 20 kgs,  era um alvo perfeito. Para mim, bastava-me passar de quando em quando e confirmar a estadia do inquilino. Eventualmente deixar alguma comida, um bodião, restos de tripas de uma ou outra abrótea sacada de um buraco nas imediações, uma tainha.

Provavelmente não sabem, mas as tocas para estes peixes são “eternas”, ou seja, quando retirado um exemplar, passados dias temos lá outro igual. Isso deve-se ao facto de aquele local ter condições óptimas para ser habitado: pouca luz, refúgio, proximidade de comida, etc. Quem descobre um desses buracos, guarda-o para a vida, porque é um “frigorifico de peixe” sempre à mão. Eu terei gravados na memória uns cinquenta a setenta buracos ao longo da costa entre a praia de Albarquel e a Ponta do Cabo Espichel. Morrerão comigo…

Safio capturado em Sesimbra há muitos anos atrás.

Infelizmente para a espécie, trata-se quase sempre de um animal solitário, raramente se encontram dois safios no mesmo buraco. Vi-os nos Açores algumas vezes, sendo muito mais corrente cá no continente a coabitação de moreia e safio do que safio e safio. Sei que em França é corrente existirem dois ou mesmo três safios por buraco. Nas costas da Normandia, os alemães afundaram centenas e centenas de barcos que transportavam tanques de guerra. Hoje, estão cheios de safios, robalos e fanecas. Cá não é de facto assim, os safios estão normalmente sozinhos. Logo, não há aprendizagem com os erros e azares dos outros. Concretamente esse de que falo, a dois miseráveis metros da superfície, está numa parede toda lisa, com muita visibilidade para o exterior, e foi descoberto num daqueles dias em que eu andava a catar algumas santolas para um petisco. De frente não se vê, mas quem se encosta muito ao buraco, que fica paralelo à parede para a esquerda, consegue perceber que há ali uma frincha, um espaço com um palmo. Com a ajuda de uma lanterna, é possível então ver que a parede lisa afinal tem um rasgo interior, e é muito comprido. O safio está sempre virado com a cabeça para a saída e não é difícil de arpoar. O que este assunto tem que ver com a memória dos peixes, é o seguinte: Por ser uma zona baixa, muito exposta, está muito desabrigada da ondulação de sul. O vento dominante sopra de noroeste, o que leva a que passe por cima da serra. Na base, está sempre calmo, deixa a água como um lago, bom para peixes sedentários, que vivem em buracos. Mas por vezes muda, concretamente sempre que o tempo fica chuvoso. O vento sul é o que traz a chuva, e a ondulação às zonas abrigadas. Cada vez que isso acontece, o safio tem mesmo de sair dali e procurar refúgio nas pedras mais abaixo. Por ser corrente eu passar lá para alimentar o dito, acabei por o ver algumas vezes a sair, e seguir a sua trajectória para o fundo, mesmo durante o dia. Quando o mar amainava, voltava a vê-lo no mesmo local. O safio tinha um lanho na cabeça, provavelmente provocado por alguma cabeçada mais impetuosa nalguma pedra a perseguir um sargo, ou até um corte feito contra alguma lata de conservas deixada no fundo por um veraneante descuidado. Os polvos recolhem as latas para a sua toca e protegem-se com elas.

Polvo de 8 kg à saída da sua toca. Quando atacados recolhem as pedras que conseguem ver (canto inferior esquerdo) e tapam-se com elas.

Daquele buraco retirei posteriormente algumas dezenas de safios, e passo-vos uma foto de um, com cerca de 18 kgs, pela curiosidade de ter sido feita por um amigo do Alentejo que seguramente, depois de tantos anos, não se lembrará já de ter ido comigo à caça, nem sequer das caldeiradas que fez com ele. Também não se lembrou na altura de limpar a lente da câmara, e por isso fez-me uma foto com uma gota de água no centro da lente. Memória de Dori, já que é algo que tem de se precaver sempre, quando se fazem imagens no mar….



Em resumo: guardar memória da posição do buraco, e voltar a ele passados dias, ou semanas, é algo só possível a um animal que tenha... memória. Que nível de memória lhe poderemos atribuir, …é outro assunto. 


Um exemplo de peixes de cardume, com memória: os sargos

Cacei durante muitos anos, e continuo a fazê-lo, peixes de cardume. Assisti ao longo dos anos à evolução de comportamento desses peixes, a ponto de ser difícil entender como podem aprender tão depressa. Explico-vos porque tenho certezas quanto ao facto de achar que o sargo tem uma memória prodigiosa: abençoado seja o tio Jaime, um pescador da Murtosa, que veio no inicio do século passado, 1920, para Setúbal. Conheci-o já no fim da sua vida, com cerca de 78 anos, limitado pelo Parkinson, e com ele passei tardes infinitas a conversar sobre as suas memórias, sobre a evolução da pesca durante um século. Perdi conta aos dias de trabalho que não trabalhei, para poder estar com ele e conversar, conversar, durante horas e horas. Foi tempo ganho. Para ele era um prazer recordar as suas memórias, para mim um orgulho que ele tivesse tempo para mim, e me contasse da sua vida de mar. Quanto sabem os nossos pescadores profissionais quando chegam a velhos!... 
Na altura, com uma pequena empresa que ainda assim tinha resultados muito satisfatórios, eu fazia pelo menos uns quatro dias de mergulho por semana. O fim de semana era sagrado, com bom ou mau tempo, e a meio da semana, dois dias em mergulhos mais curtos. A dada altura, o Tio Jaime dizia-me: se consegues mergulhar a 20 metros, eu tenho um sitio bom para tu ires: a Pedra da Alfadiga. O problema eram as marcas, as referências de terra, porque o Ti Jaime tinha marcas em braças, não em metros, e muito pior, trabalhava por tempo. Só que ele ia à vela para sul, e a remos quando não havia vento. A noção de espaço não era a mesma, os motores actuais dão-nos asas. Perdi dias e dias. Com muita paciência, procurei as poucas referências que ele me deu, desgastadas pela erosão do tempo, marcas de 40 e 50 anos, com tudo o que isso significa de alterações na paisagem. Pinheiros altos que foram entretanto cortados, postes de energia entretanto substituídos. Mas acabei por encontrar. 
Recordo-me de, nos primeiros mergulhos, estranhar que os sargos, que eram autênticos Houdinis da fuga em Sesimbra, ali não procuravam esconder-se, apenas se encostavam à pedra. Sargos de 2 kgs, que nunca tinham visto pessoas, ao longo de toda a sua vida. O Ti Jaime falava-me que, no seu trabalho de pescar mariscos com redes na Ilha do Pessegueiro, ter de manter as lagostas e os lavagantes vivos, sob pena de os compradores desistirem. Vendiam-se em Sines, na altura meia dúzia de casas. Eram espanhóis que vinham comprar a um preço baixo para  revender em Espanha aos restaurantes, e exigiam produto vivo. O maior problema era conseguir que os sargos não comessem as patas às lagostas, que morriam logo de seguida. Dentro de redes, os redis, em zonas abrigadas da ondulação, as lagostas esperavam o dia da vinda dos compradores. Era necessário bater regularmente com os remos na água, para afugentar as centenas de sargos grandes. 




Mas voltando ao assunto: a reacção dos peixes à presença humana era nula. O que estavam fazendo à nossa chegada, continuavam a fazer. Recordo-me da azáfama de um sargo que atacava uma pata de uma estrela do mar. Cheguei, anichei-me no fundo, e durante uns bons dois minutos, enquanto tive fôlego, assisti a um trabalho que poucas pessoas terão visto: um sargo a comer uma pata de estrela do mar. Surpreendidos ficariam aqueles que pescam com minhocas, ganso, casulo, porque acham que os sargos só comem presas macias, se os vissem comer lapas, mexilhões com casca, cracas, búzios e outras  “bugigangas” a que eles chamam de comida. Abram os estômagos e entenderão que eles são muito pouco selectivos. Os dentes incisivos capturam e cortam, mas os molares anteriores moem tudo e fazem disso uma massa comestível, com proteína. Aqueles sargos tinham uma ausência completa de receio das pessoas. Após algumas caçadas bem sucedidas, comecei a notar que os sargos procuravam resguardar-se, entrando para os buracos. Ficavam nas zonas mais escuras, procurando passar despercebidos. No escuro, com paciência, conseguiam-se alguns, mas a dada altura entravam mais e mais fundo nos buracos, até ser impossível vê-los. Foi o tempo de comprar uma lanterna, para conseguir chegar aos que não estavam logo à porta do buraco. Também aí, eles conseguiram adaptar-se. Assim que sentiam a luz da minha lanterna, a primeira preocupação era de sair do buraco, que os limitava. A cada descida, via como meia dúzia para aqui, outra para ali, “ espirravam”, procuravam outras pedras, outros buracos. A lanterna passou a ser um factor de perturbação. Tinham memorizado que sempre que havia luz no buraco, havia arpões, havia sangue. Passei a utilizar um argumento de peso: tapava todas as saídas do buraco com outras armas, deixando apenas uma saída livre. Nos primeiros meses, os sargos chegavam à porta do buraco, e voltavam para trás. Passados uns tempos, entenderam que ficar era a pior solução. Passaram a sair de qualquer forma, com saídas tapadas com armas, ou não. Memorizaram o perigo. Ao fim de uns anos, a música era outra. Os sargos deixaram de entocar.

Pelo tamanho da lanterna é possível ver que tratamos de sargos adultos.

Aquilo que era o comportamento normal do sargo, ou seja, na vazante, já comido, farto de mariscar nas pedras, procurar descansar das suas correrias, retornando aos abrigos, preservando energia, deixou de acontecer. Esses buracos, onde anteriormente se juntavam milhares de sargos, passaram a ter alguns, sim, mas que modificaram o seu comportamento para algo inédito na zona: deixaram de permanecer nos buracos. À chegada do caçador submarino, como que impulsionados por uma mola, passaram a sair todos ao mesmo tempo. Em água livre é virtualmente impossível caçá-los. Fazem-se esperas, os ditos “agachons”, mas apenas resulta algumas vezes, depois deixam de se aproximar, e vão todos embora. Aprenderam a reagir. Acabaram os tempos de ficarem nos buracos, onde havia massas de sargos, muitas centenas ou milhares de indivíduos. Falamos de toneladas de sargos, muitos indivíduos entre 1 e 2 kgs. Recordo-me de passar 4 horas a tirar sargos do mesmo buraco, e vir embora deixando lá outros tantos. Ver foto.

Vítor Ganchinho com menos anos, numa altura em que havia capacidade física e muitos mais sargos.

Hoje não faria, por todos os motivos: por ter ganho entretanto consciência da responsabilidade que um pescador tem perante a sociedade, por ser mais culto, por ser mais velho, por ter percebido que a quantidade não é nem de perto nem de longe um objectivo, ou algo minimamente interessante. Hoje, muitos anos passados, o mais normal é eu encontrar frestas com alguns sargos, ver e analisar as suas recções, ficar feliz de saber que estão ali, e …passar ao lado. 


Lugares onde andam os sargos, a mariscar, e onde temos de ir, se os quisermos. Estou algures ali em baixo, …a procurá-los debaixo da espuma

Aqui, a questão já é outra, tratamos de memória colectiva. Os sargos que pescamos, que caçamos, deixam de ser um problema. Morrem. Mas ao lado, há certamente pequenos sargos a quem ninguém atribui importância, porque são sargos pequenos, e que no entanto estão lá, viram aquilo que aconteceu. Esses, um dia serão os grandes sargos que vamos procurar pescar ou caçar. E eles aprendem. Hoje, os materiais de pesca são infinitamente melhores e mais sofisticados do que aqueles que havia à 30 anos. Onde estão as linhas de nylon grossas, ( as finas não tinham resistência nenhuma…), onde estão as canas de fibra de uma braça, com ponteiras grossas, com que se pescaram tantas toneladas de peixe, com carretos de “fazer rir”? Os equipamentos hoje são muito mais avançados, porque com os anteriores dificilmente seria possível fazer uma pescaria de excepção. O material de pesca evoluiu uma enormidade. A GO Fishing Portugal tem hoje em stock canas e carretos Daiwa Saltiga que são autênticos Rolls Royce da pesca. E no entanto, pescava-se mais antigamente. Os stocks de peixe disponíveis diminuíram, sem dúvida. Mas também o comportamento do peixe, a nível colectivo, evoluiu.

Dou-vos um exemplo de memória colectiva: na enchente, em zonas como as paredes do Cabo Espichel, os sargos sobem com a maré, procurando chegar à comida que ficou disponível, com o avançar das águas. Na vazante, essa comida, perceves, cracas, lapas, mexilhão e tudo o que cresce na zona entre marés, não está acessível, criando um ritmo, um ciclo de alimentação. O peixe alimenta-se ... quando pode, e faz a gestão da sua actividade de acordo com essas possibilidades. Recua na vazante para zonas que têm pouca comida, porque estão sempre acessíveis, logo, muito desertas de possibilidades, e sobe com o avanço das águas às zonas que antes estavam a seco, onde a comida existe. O ciclo de alimentação é feito pelas contingências das marés, a que os sargos, as douradas, se souberam adaptar tão bem. Lembro-me dos tempos em que se caçavam com alguma facilidade nesse período em que estavam “entretidos” com a comida. Passados anos, os sargos, ao aparecimento de um barco, ou um caçador submarino junto às paredes, reagiam a um tempo, descendo vertiginosamente as paredes abaixo, todos ao mesmo tempo, escapando a um predador que passaram a reconhecer. Memorizaram que aquela silhueta escura e comprida representava perigo de vida. Isto é ter memoria colectiva. Ou não? Já não me lembro…


Vítor Ganchinho


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