TEXTOS DE PESCA - O efeito da passagem de peixe nos pesqueiros

Bruno Cabrita - Campeão nacional de pesca embarcada, um dos melhores pescadores portugueses, com uma dourada capturada com caranguejo

Há um ritmo biológico, um tempo que marca o compasso da movimentação de peixe ao longo do ano, na nossa costa. 

Nada é ao acaso, nada acontece sem uma razão objectiva. Vamos hoje analisar, ainda que sucintamente, alguns aspectos relacionados com a permanência de cardumes numa determinada zona. Algo que interessa sobremaneira a todos os pescadores da baía Setúbal, Sesimbra, Sines, é o caso concreto da dourada. Falamos de um peixe apreciado por razões que se prendem com a sua dificuldade de captura, e ainda pelas suas evidentes qualidades gastronómicas. 



A dourada, “sparus aurata”, é um espárida, e um peixe extremamente bem adaptado ao meio ambiente em que vive. Mariscadora por excelência, não deixa de lado a possibilidade de revelar o seu lado predador, comendo alevins, pequenos peixes, camarão, etc. Todavia, é a comer mexilhão, perceves, caranguejo, ouriços, bivalves, que a sua dentição mostra a sua capacidade. Tal como o sargo, faz-se valer dos seus incisivos para abocanhar, por exemplo, um pedúnculo de um perceve. Bem firme pelos incisivos, espera a chegada da onda, e aproveita o formato do seu corpo espalmado, para se deixar levar.
A dourada só tem de o tomar bem firme nos seus dentes, é a força e pressão da ondulação que arranca o crustáceo. A seguir, utiliza os poderosíssimos molares para esmagar o perceve, engole, e volta a repetir a operação. 
Nos bancos de mexilhão, muitas vezes coincidentes no mesmo local com os perceves, (ver foto), acontece o mesmo. 

Para uma dourada, isto é um supermercado aberto e gratuito, cheio de proteína. As cascas mais duras nada podem contra os dentes poderosos de uma dourada.

Após a passagem de um cardume de douradas, é perfeitamente visível o rasto de destruição que deixa. As cascas esmagadas e viradas são sinais de passagem deste extraordinário peixe, que cresce até aos 70 cm, para cerca de 9 kgs de peso. Há relatos na Galiza, zona marisqueira por excelência, de exemplares maiores. São pequenos nadas que apenas são observados pelos caçadores submarinos. Uma estrada de mexilhão revirado deixa entender a quantidade de peixes que por ali passaram. Entre o mexilhão é possível encontrar minhocas, estrelas do mar, pequenos ouriços. No entanto, uma análise detalhada ao conteúdo do seu estômago revela-nos segredos muito bem guardados. A dourada, na ausência de bivalves e crustáceos, adapta-se muito rapidamente a predador, e passa a caçar peixe. Daí as frequentes capturas com jigs e até com vinis.


Pesquei esta dourada com um jig Cultiva, marca Owner, de 30 gramas. A imitação de peixe é evidente, o que prova a veia predadora deste peixe.

O stock de douradas na nossa zona tem vindo a baixar drasticamente, revelando imprudência na gestão dos stocks disponíveis. Não há limitação de número de capturas, apenas de peso máximo total, que sabemos não ser respeitado por todos. 
Pescam-se hoje imensos exemplares imaturos, sem grande capacidade de reprodução, que só vagamente lembram as grandes douradas que existiam há 20 anos atrás. Eram esses os grandes reprodutores, com posturas de muitos milhares de óvulos. Foram pescados. 
Com efeito, podemos revelar que houve pessoas a despedir-se dos seus empregos para fazer este tipo de pesca. Houve quem comprasse carros, casas, barcos, com o resultado da venda aos restaurantes deste espárida. Assisti dezenas de vezes à chegada ao porto de uma pessoa que saía ainda de noite da doca de recreio de Setúbal, e voltava ao anoitecer, para não ser descoberto. As caixas de douradas com o resultado da pesca do dia, 80 a 90 kgs em média, com exemplares de 6 / 7 kgs, eram endereçadas aos restaurantes locais. 
Barcos passaram a seguir barcos, e porque nenhum segredo resiste eternamente, passado algum tempo o local de pesca foi deslindado: a famosa Vereda, as pedras a 70 metros onde as douradas se concentravam.
Recordo episódios incríveis, como o de um polícia que, perante a chegada de outros barcos junto ao seu pesqueiro favorito, disparava tiros de pistola para o ar: “ Aqui ao pé de mim ninguém pesca”!! …



Hoje, a Vereda é um local de peregrinação habitual para centenas de pescadores, que ali vão passar as suas férias, fazer os seus fins de semana, com resultados cada vez mais escassos. Pescam-se douradas de 300 gramas e diz-se que se pescaram douradas…

Voltando ao tema deste artigo: a passagem dos peixes pelos diversos habitats disponíveis na baía de Setúbal-Sesimbra-Sines. Tudo se joga em várias áreas distintas, fazendo coincidir os seus resultados numa data e spot específicos, e que resultam na possibilidade de pescar as douradas da forma que conhecemos. 

Vamos ver por partes:

De onde vêem? A zona de pedra do porto e do molhe de Sines, onde são muito frequentes, beneficiando da segurança que os blocos e pés-de-galo dão, (é impossível utilizar redes, por exemplo), pela profundidade, pelos seus túneis e esconderijos que são absolutamente inexpugnáveis, e da quantidade de comida disponível. A zona de Sines tem muita pedra, logo muita possibilidade de criar moluscos, a base da alimentação do protagonista de hoje. As douradas residentes começam a subir para norte, por volta do fim do mês de Julho, mês de Agosto, o grosso da coluna em Setembro, fazendo passagens por diversas pedras, onde são pescadas por quem lhes conhece os caminhos. Porque estão a desenvolver as gónadas, as ovas, precisam de energia extra, tornam-se muito dependentes de encontrar alimentação em quantidade, e por necessidade, baixam a guarda, a desconfiança. Procuram as águas do rio Sado, onde esperam desovar num ambiente favorável à criação das suas posturas. Os seus alevins encontram nas águas rasas do Sado as condições ideais para crescer. Existem bancos de ostras, muitos vermes arenícolas, casulo, ganso, minhocas, tiagem, etc. Também um pouco menos de predadores do que em mar aberto. Mas existem: os robalos juvenis esperam avidamente este momento, dentro do rio, certos de que a sua vez chegará. 

Ricardo Antunes a bordo do GO Fishing III, num dia de pesca às douradas.

Quando se pescam? É possível capturar douradas durante todo o ano dentro do Sado. De qualquer forma, há um período em que isso é mais evidente: a entrada de exemplares com algum peso, 2 a 3 kgs, motiva uma primeira romaria às águas interiores do rio. Porque existe muito peixe miúdo nos baixios, que rebenta as iscas destapadas, pesca-se com lingueirão c/ casca, apenas acessível aos grandes peixes. A montagem consta de dois a três anzóis em tandem, com a casca do lingueirão fechada com o auxilio de elástico. É uma pesca de espera, que tem alguns adeptos. Nos mesmos locais, é possível pescar pequenas corvinas, até 10 kgs de peso, utilizando tiras de choco, ou chocos vivos, capturados no dia, na foz do rio. As douradas entram para o rio, muitas delas são dizimadas pela aplicação de redes, e postas à venda no mercado de Setúbal. Legislar e fiscalizar sobre a utilização de redes neste momento tão critico seria importante. É um peixe que só ocasionalmente faz parte das capturas do caçador submarino, não que não exista em quantidades significativas, mas porque, fora de buracos nas rochas, (onde é perfeitamente passivo e muito mais fácil de capturar que um sargo), é desconfiada e não se aproxima facilmente da silhueta camuflada de um caçador. Convivem com os sargos, chegam a formar cardumes conjuntos, procuram os mesmos refúgios e alimentam-se nas mesmas zonas das mexilhoeiras. Há zonas do país onde são certas, todo o ano: a Pedra da Galé, na Carrapateira, a Pedra dos Ingleses, na mesma zona, e a Pedra da Agulha, na Arrifana. Há sempre. 

Nosso representante em competições de pesca internacionais, Bruno Cabrita é um dos valores seguros da pesca desportiva nacional. De reparar o detalhe da montagem à chumbadinha.

Como funciona? Outra área muito importante neste puzzle é a Barragem de Sta Susana, em Alcácer do Sal. Explico porquê: os agricultores desta zona têm como actividade principal a produção de cereais, com uma incidência muito grande na produção de arroz. Aproveitando a água da barragem, fazem regadio nas zonas planas, retirando com bombas a água enviada através da vala real. Inundam os campos e plantam arroz, no momento certo, a Primavera. Para evitar a acumulação de ervas e concorrência às suas plantas, lançam nessa água herbicidas químicos que não afectam o arroz, mas impedem a proliferação de ervas daninhas. Quando o arroz está feito, há que fazer a monda, utilizando máquinas de recolha. É conveniente que os terrenos estejam secos. Para isso, procedem ao levantamento das comportas, escoando a água que estava retida, que volta à vala real, com os tais herbicidas e agentes químicos. Essa vala, com cerca de oito metros de largura e um a dois metros de fundo, transporta a água para os esteiros do Sado. Sai para o rio concretamente na zona da Comporta, onde, sem qualquer dificuldade, é possível ver os peixes de água doce, as carpas, os achigãs, os pimpões, misturados com tainhas ou robalos. 

Na altura em que se faz a monda do arroz, começamos a ter os primeiros sinais de instabilidade de tempo, por volta do mês de Setembro. As águas ainda estão quentes, 19 a 20 ºC, e as douradas ainda estão dentro do rio, a preparar a desova. Com as primeiras chuvas, e coincidindo com o levantar das comportas para apanha do arroz, os produtos químicos começam a chegar ao Sado. Detectados pelo olfacto apurado destes peixes, é o momento de as douradas retirarem para fora do rio, ficando nas zonas baixas, a 20, 30, 40 metros de fundo. Falamos das “Casinhas”, do “Zimbral”, do “Mar Negro”. As pedras são sobejamente conhecidas, os pescadores locais fazem esperas e de quando em quando aparece um exemplar de maior tamanho. Pesca-se nesta altura com ameijola, ou com caranguejo vivo. Os sinais de douradas são evidentes, as sondas passam a detectar peixe em zonas com areia e pequena pedra rolada, onde as douradas aproveitam iscos como a navalha, ou o camarão que se criou debaixo das algas que nasceram e cresceram no Verão junto à Arrábida, beneficiando da acalmia das águas. Quando aparecem os primeiros temporais, essas algas partem ou são arrancadas, criando uma camada de manta morta que continua a dar protecção ao camarão, mas que se desloca para sul, empurrada pela força das correntes de vazante do Sado, e os ventos dominantes de Noroeste. Passa pelas zonas onde as douradas estão nesse momento, fornecendo comida. Quem faz mergulho, encontra tapetes de algas mortas, que vieram das pedras da Arrábida, e têm por baixo camarão. 
A chegada de Outubro traz os primeiros frios, e com eles, a necessidade de as douradas, já com as ovas quase formadas, encontrarem águas com temperaturas mais estáveis. É aqui que entra a Pedra da Vereda, hoje conhecida pelas suas douradas, mas que em tempos idos, era conhecida dos velhos pescadores por Vereda dos Pargos. Tem aquilo que é necessário: comida, protecção, (é uma pedra muito irregular, com muitos buracos onde entocam as douradas, para se protegerem das redes), tem dimensão, falamos de centenas de metros de pedra, e tem uma temperatura de água estável. 
A dada altura, aparecem, meio soltos, alguns grandes exemplares a largo do Cabo Espichel. Os cardumes são detectados nas sondas, e são pescados a meia água, com caranguejo, à rola, ou seja, com o barco não fundeado. 




Mas é a Vereda que concentra gente que vem de todo o lado, do Algarve, de Aveiro, de Coimbra, …
E é aqui que se pesca, de forma descontrolada, todos os dias da semana, de Outubro a Dezembro, um dos mais emblemáticos peixes da nossa região. São muitas as dezenas de embarcações ancoradas, quantas vezes acima de uma centena, e que procuram convencer as douradas a comer os caranguejos apresentados. Com casca ou sem, com patinhas ou sem, em metades, em quartos, inteiros, os caranguejos de rio sofrem nessa altura uma razia nos seus efectivos. Pesca-se à chumbadinha, com chumbo solto, a correr e dois anzóis, pesca-se à vertical, com dois anzóis fixos por cima da chumbada. Estimo que mais de 75% a 80% das pessoas que vai pescar douradas venha de lá com as mãos a abanar. O processo é simples de explicar: durante a semana, com menos embarcações, menos ancoras no fundo, menos cabos e correntes, os bichos conseguem a paz suficiente para comer. Relembro que estão numa fase de reprodução, em que as ovas obrigam à obtenção de nutrientes. Fazem-se chacinas em cardumes, aproveitando o frenesim alimentar que se instala quando chega o momento certo da maré e os peixes começam a comer. As consequentes fotos são publicadas, sobretudo pelas embarcações marítimo turísticas, que com isso beneficiam de publicidade, e a palavra circula. Ao fim de semana, aqueles que estão a trabalhar, aproveitam a oportunidade da clemência do tempo e fazem a sua romaria de “ir às douradas”. São centenas de pescadores, cada um a apresentar o melhor que pode e sabe o seu isco. Na verdade, a pressão de ancoras a cair, a arrastar, a fazer barulho, põe de sobreaviso os peixes abaixo, que se resguardam, e inibem de comer. E passa uma semana mais, e o processo volta a repetir-se. A febre das douradas, dos peixes com a malha amarela na testa, só tem paralelo na corrida ao ouro no velho Oeste. Todos vão, na ânsia de conseguir uma parte para si. 
Os stocks deste peixe atingiram níveis preocupantes, e mais dia menos dia serão objecto de limitação legislativa. Se existem medidas mínimas, e um peso total máximo permitido, a verdade é que a fiscalização não se faz sentir, e todos os dias se reduzem mais e mais os exemplares disponíveis. Os grandes reprodutores já foram, neste momento restam, não se sabe até quando, apenas pequenos peixes. Acaba-se com o resto?

Voltaremos a este assunto, a permanência de peixes em determinadas zonas, para falar sobre um outro predador, o pampo, Balistes Carolinenses. Sem predadores conhecidos entre nós, tem vindo a conhecer um preocupante incremento em quantidades e meses de permanência nos pesqueiros.

Vão ver que é um assunto interessante. 


Vítor Ganchinho

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