TEXTOS DE PESCA - Sequência lógica de pesca nos pesqueiros de pedra



Quem pesca de barco com regularidade sabe que há um ritmo de capturas mais ou menos expectável: lançada a âncora, preparadas as pescas, iscados os anzóis, as garoupinhas, Serranus Cabrilla, ou Serrano -Alecrim, são inevitavelmente as primeiras a fazer vibrar as nossas canas. Trata-se de um pequeno serranídeo que tem uma zona de acção circular restrita, não se desloca muito mais que quatro a cinco metros, mas existe em relativa quantidade. Preferencialmente vivem isoladas, como forma de garantir o exclusivo da sua zona de caça. São altamente territoriais, e tudo o que entra nessa área, ou é comida, pequenos vermes, peixes de pequena dimensão, caranguejos, camarão, pequenas estrelas do mar, e come-se, ou é um intruso e expulsa-se, nem que seja à dentada. O que vai dar quase ao mesmo, dado que, com a dimensão de boca que têm, acabam por conseguir morder quase tudo. À presença de um intruso, ainda que de muito maior tamanho, fazem frente, não se amedrontam, defendem o seu território e isso, quando o oponente tem algum peso, … é normalmente fatal para o exemplar.



As garoupinhas são então as primeiras a aparecer. Do resultado dessas primeiras capturas sobram restos de iscas, arrancados pela violência da nossa ferragem, e que ficam sobre a pedra. Resulta daí uma aproximação de um dos peixes que mais dores de cabeça provoca aos pescadores nacionais: a Judia, ou Coris Julis, vulgo “peixe-piço”. Este é um desafio tremendo para o pescador embarcado, porque, com a boca pequena que tem, os dentes afiados e proeminentes, estamos na presença de um inimigo que nos rouba as iscas, e é responsável por grandes dores de cabeça. E existem centenas delas em qualquer zona de pedra. Para quem pesca com iscas orgânicas, este é um momento de sofrimento. Pela boca, pela barriga ( o de baixo morde, sentimos a picada, e quando ferramos, anzolamos o que está por cima…), pela cauda, a verdade é que a judia é o inimigo público numero um dos pescadores. Anzóis grandes evitam capturas, mas não todas. 



Para quem não tem mais argumentos do que lançar uma vez e outra, quem não consegue passar a outra forma de procurar peixe grosso, este martírio pode durar horas, porque as judias são muitas, ficam sobreexcitadas por terem comida fácil disponível, e têm sempre lugar para mais uma dentada. Além do mais, pese a sua pequenez, são incómodas de desferrar, porque escorregam entre os dedos e são agressivas, mordem nos dedos sempre que podem. 

Um oponente que também dá dores de cabeça surge a seguir: as safias, ou sarguetas. Falamos de um sargo pequeno, Diplodus Vulgaris, que tem um aspecto que não engana…são velhacas!



A sua boca, de pequena dimensão, é um desafio constante aos nossos anzóis, sobretudo se forem, como deve ser, anzóis “sérios”, com tamanho. Conseguem lançar os dentes para a frente, de forma a roubar em pequenos beliscos, toda a isca que colocámos. 
Recordo-me de pescar “ bandeiradas” de safias, há uns 35 anos, a bordo do Samirro, do tio Alfredo, uma traineira com história em Setúbal, de 3 safias por lance, com 1 kg cada uma. Hoje, esses velhos exemplares são mais raros que os feriados de Janeiro. O tamanho médio baixou para pesos de 150 a 200 gramas, pouco mais. Estão entre nós todo o ano, mesmo de Inverno, quando as águas arrefecem aos 12ºC. Trata-se de um peixe de cardume, o que significa ter um potencial elevado de permanência no pesqueiro. 

Não terminam por aqui os trabalhos forçados de um pescador embarcado. Com um pouco de azar, e caso calhe num momento de incremento da corrente, há ainda um pesadelo que pode aparecer: a Choupa.
Falamos da miserável Spondyliosoma Cantharus, a choupa que nos atormenta, caso seja curta de corpo. Os exemplares mais pequenos podem ter menos de 10 cm, o que faz delas um oponente de respeito quando pescamos com anzóis virados para peixe a sério. 
São persistentes, e seguem a queda da nossa montagem até ao fundo. Trata-se de um peixe de meia água. Vive na coluna de água, aproveitando plâncton, ovas de outros peixes, o que a corrente lhe traga. É mesmo muito dependente das correntes para se alimentar. Quando decidem baixar ao fundo, o calvário está garantido. Felizmente algumas ultrapassam os 23 cm, pelo que nem tudo se perde. De qualquer forma, trata-se de um peixe com fraco nível gastronómico, muito atacado por parasitas, nomeadamente a pulga-do-mar, que normalmente está por traz do olho, mas que aparece por vezes dentro da própria boca da choupa. 



Um mal nunca vem só: para tudo piorar mais, ainda podem aparecer outras convidadas, as bogas. As nossas miseráveis bogas, Boops Boops, hermafroditas, que crescem até aos 36 cm de comprimento, e são responsáveis por muitos dos nossos piores sonhos. 



Se alguma utilidade lhes encontro, para além de alimentarem os nossos queridos predadores, ( são capturadas para fazer farinha de peixe, para rações) é a de comerem avidamente os tentáculos de um cnidário, as “àguas vivas” urticantes. 



Valha-nos isso, o facto de nos ajudarem a controlar a população de medusas. Também as tartarugas nos auxiliam nesse aspecto, comendo as gelatinosas alforrecas, e as Caravelas Portuguesas. 

Mas nem tudo são desgraças: há um momento em que, com um pouco de sorte, tudo começa a mudar. A dada altura, sentimos um refrear dos ânimos. As picadas de pequenos peixes ficam mais raras, mais espaçadas, mais a medo. É o momento de entrada dos pesos pesados, daqueles que comem as judias, as bogas, as pequenas choupas. Ou pelo menos podem fazer-lhes sentir que estar ali, naquele momento não é o melhor para a sua saúde. 
Falamos dos safios, esses lutadores incansáveis. O safio caça sobretudo à noite. Tem excelente visão nocturna, e quando escurece, sai da sua toca, normalmente  para ir procurar comida nas imediações. Quem já fez mergulho nocturno sabe que são excelentes nadadores, muito ágeis, e com um sentido de olfacto apuradíssimo. Caçam os peixes ao abrigo da escuridão da noite, no momento em que estes estão mais vulneráveis, parados no fundo. Também os polvos são uma presa frequente, quando se atrevem a sair da sua toca para ir procurar alimento. Mas os safios também atacam de dia, e muito. Basta-lhes que sintam quaisquer vibrações provocadas pelo debater do peixe ferido, ou anzolado, ou ainda a presença de qualquer tipo de engodo, e aí estão eles, prontos a entrar em acção. 
O safio, Conger Conger,  é um peixe da família dos Congridae, com uma representação muito forte no Atlântico, desde a Noruega até ao Senegal, e que vive em profundidades até 1170 metros. Este anguiliforme pode atingir 3 metros de comprimento, para cerca de 110 kgs de peso. Como experiência pessoal, posso dizer-vos que na nossa costa, em profundidades alcançáveis pelo caçadores submarinos em apneia, raramente ultrapassam os 25 kgs. Safios com 40 a 50 kgs são pescados fundo pela frota pesqueira, com palangres, com anzol e isca orgânica, aproveitando as saídas nocturnas destes indomáveis e rústicos peixes. Em Setúbal há um sitio onde podem ser encontrados com este peso, a poucos metros de profundidade: as tubagens de esgoto de uma marisqueira muito conhecida, e que lança ao rio Sado os restos da sua actividade, camarão morto, navalheiras, patas de santola, etc. Esses, crescem até aos 40 kgs, até ao momento em que alguém os vai arpoar dentro das tubagens….



Mas voltemos ao nosso pesqueiro: ao abrandar das picadas de peixe miúdo, segue-se normalmente um safio. A um deslocamento sincopado da ponteira da cana, continuo, segue-se uma ferragem e o peixe fica na zona. Durante alguns segundos, o safio apenas cabeceia, tentando livrar-se de algo que lhe impede os movimentos, sem tentar correr a linha. Os safios pequenos sobem logo de seguida, a pressão exercida é demasiada para eles, mas os grandes resistem, e procuram correr ao buraco. Os buracos dos safios, por norma, são “tubos”, são espaços na rocha que têm um formato tubular, e que os escondem na perfeição. Normalmente apenas a cabeça assoma ao exterior, na procura incessante de uma oportunidade de caça, de comida. Quando o pescador lhes dá tempo para entocar, pode dizer adeus à sua baixada. É muito frequente encontrar safios com anzóis na boca. Ao fim de alguns dias, ou semanas, acabam por oxidar, e cair. Pressuponho que para nós, seja um período que queremos acreditar ser curto, mas para o safio deve parecer uma eternidade. Durante esse período, o safio continua a comer, ignorando a limitação. Tenho histórias incríveis com estes coriáceos peixes, e prometo trazer-vos aqui proximamente algumas delas. 

O nosso amigo Chambel resolveu experimentar colocar a mão junto à boca deste safio. Foi até ao osso, perdeu 4 mm de um dedo à conta disso.

Limpa a zona de safios, tanto quanto possível, é tempo de entrarem os peixes a sério, aqueles que procuramos avidamente, a razão das nossas saída de pesca. Há uma altura certa para a entrada dos “peixes de escama”, como costuma dizer-se em Setúbal. Em traços gerais, o peixe procura comer no período em que tem mais vantagens do seu lado. Poupar energia, guardá-la para as grandes razões da sua sobrevivência, crescimento, reprodução, é algo imperioso e transversal a todos os seres marinhos. O peixe procura que seja a corrente a trazer-lhe a comida até si. O momento da baixa mar, do estofo da maré, não são os mais produtivos em termos de pesca. As últimas três horas de maré cheia, eventualmente a primeira de vazante, costumam ser bem mais interessantes. Esse fenómeno é mais visível junto à costa, quando o peixe encosta à pedra ou praia para comer, exactamente no momento em que tem disponível alimento que na vazante não tinha, …por não haver água nessa zona. Todas as zonas de mariscos, mexilhão, perceves, cracas, lapas, que ficam a salvo e fora de água na vazante, passam a estar disponíveis aos mariscadores, quando a “conta de água” permite chegar a esses alimentos. Quando tratamos de pesca embarcada, não temos essa zona entre marés, mas nota-se uma acréscimo de picadas, uma disponibilidade do peixe em atacar os nossos anzóis, que emerge nas últimas horas de enchente. A corrente aumenta, e é chegado o momento de comer de novo. Os pargos, aproveitando a sua camuflagem perfeita, patrulham as zonas de caça, e comem aquilo que a água lhes traz. As possibilidades são imensas, e basta abrirmos o estômago de um pargo para entendermos a diversidade de “produtos” a que chama comida: um caranguejo pilado, um pequeno búzio, uma galeota, um pequeno carapau, uma lula, etc. 

Em habitats muito preservados, ainda é possível fazer boas pescarias. Mas são cada vez mais raros.

Fora de questão o peixe alimentar-se todo o dia, de igual forma. Isso não existe, nem seria expectável, pese embora muitos dos nossos pescadores de linha, (sobretudo aqueles que vêem o mar de fora para dentro, e não dentro/dentro, ou seja, mergulhando e observando o comportamento das espécies), prefiram pensar que o facto de não terem picadas sucessivas desde que chegam até que resolvem ir embora, se deva ao facto de estarem num mau pesqueiro, ou que tiveram azar na zona do barco que lhes calhou em sorte. Não se trata disso: há um ciclo de alimentação, e o peixe não necessita de o alterar. Por mais que nos fosse conveniente…há um ritmo biológico e que é aquilo que é, e ponto final. Porque as marés avançam diariamente, grosso modo, uma hora, nem sempre esses momentos de excitação e frenesim alimentar coincidem com as horas que decidimos passar a pescar no mar…
Os bons pescadores sabem maximizar os momentos em que o peixe procura alimentar-se, as alturas em que o peixe caça e se torna mais agressivo, não cometendo erros, aproveitando as oportunidades, sendo rápidos e precisos nas suas acções. Os outros pescadores, aqueles que definitivamente não “nasceram para aquilo”, que não têm dom, normalmente nessas alturas arranjam enleios, cabeleiras de linha que demoram dezenas de minutos a resolver, prendem as pescas no fundo, enleiam as pescas deles com as dos outros, em suma: não pescam!
É corrente que ouçamos dizer a estes pescadores: “ Tenho um safio entocado….senti a picada e deixei-o entrar para o buraco…”, ou mesmo: “ Cá está outra vez o mesmo polvo, …já entrou para o buraco”…e esperam indefinidamente, dando um pequeno esticão de quando em quando, na esperança de que, um bicho ferrado num anzol e que sente os esticões que vêm da vertical, venha a sair desse eventual e presumido buraco. Posso assegurar que, 95 vezes em 100, esse tal safio, ou polvo, não passa de uma gorgónia bem presa à pedra. Ver fotos. 





Os nossos fundos estão cheios delas. O resto, é a imaginação fértil do pescador que faz, sentindo esticões quando a onda passa por baixo do barco e o levanta, …esticando a linha. Os nossos anzóis ficam presos a estas estruturas rígidas, ( a gorgónia não é uma planta, mas sim um conjunto de minúsculos animais, pequenos pólipos que se protegem com um esqueleto calcário, parente afastado dos corais, que estão muito bem firmes pelo pedúnculo ao substrato rochoso, e que para mal dos pecados daqueles que pescam, …esticam, voltam à posição inicial, dando a sensação de ser um peixe que se debate. 

Voltemos aos pargos: ao longo do ano, e dependendo de condições ideais que se conjugam, podemos ter concentrações muito grandes destes peixes nas nossas pedras. Tem a ver com disponibilidade de alimento, temperaturas de água, ventos, correntes, fases da lua, visibilidade da água, altura da época, etc. Quando tudo coincide, temos condições para fazer as pescarias que ficam na memória, as pescarias de excepção. Passo-vos algumas imagens de dias desses, em que tudo estava alinhado para correr bem.



A sequência normal de pesca, no caso dos pargos é esta. Mas poderíamos extrapolar para muitos outros peixes, porque o principio é valido para quase todas as outras espécies, as saimas, os pargos sêmeas, as abróteas, etc. 


Legenda: Também ao mergulho é possível, com paciência e trabalho, fazer alguns peixes de excepção. 

O pescador tem sempre um tempo limitado, pesca até que mudem as condições de mar, a maré, e a partir daí, nada será igual, o peixe já comeu, e recolhe aos buracos, ou pura e simplesmente desinteressa-se, por estar farto. Na natureza, não há espaço para esforços inúteis, para consumo de energia desnecessário. Por mais que nos fosse conveniente a nós, que gostaríamos de ter os peixes sempre de boca aberta, até nos cansarmos de os pescar. Há um momento em que tudo acaba, para voltar na maré seguinte, no ciclo seguinte. 

Motivar a nossa parceira com uns quantos peixes para o forno, pode ser a diferença entre comprar o tal carreto, …ou não.

Quando aí chegamos, é o regresso a casa, é limpar as armas: lubrificar os carretos, lavar as linhas, as canas, afiar as facas de cortar as iscas, voltar a empatar anzóis, e esperar uma nova oportunidade. 
No fim, um sorriso da nossa companheira, que tem a paciência de nos ver sair de casa de madrugada, e chegar com um cheiro pestilento a sardinha, vale sempre a pena. Uns dias melhores outros piores, a verdade é que ao entrar em casa com um bom pargo para fazer no forno, o nosso peito sobe sempre um pouco mais. É aí que ganhamos ânimo para falar baixinho com a nossa querida esposa, sobre um novo carreto da Daiwa que saiu, que é uma bomba, e que poderia ajudar a arranjar mais uns pargos daqueles….


Vítor Ganchinho


2 Comentários

  1. Relata as situações de uma forma muito clara, carregada de mto conhecimento e sabedoria. Vamos ao próximo...

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. 👍 Muito obrigado. Esperamos surpreender diariamente com conteúdos interessantes para todos. Na página inicial do Blog pode subscrever a newsletter e receber as notificações das nossas publicações

      Eliminar
Artigo Anterior Próximo Artigo

PUB

PUB

نموذج الاتصال