TEXTOS DE PESCA - Tubarão tigre de 230 kgs

Janeiro de 1998, Lisboa. A minha namorada da altura, uma belga loira, trintona e mamalhuda, de nome Rite Maas, dona de uma cadeia de farmácias em Antuérpia, pediu-me para encontrar um sítio perigoso, arriscado, exótico, pouco civilizado, para irmos passar dez dias juntos. 
_ Pode ser no meu escritório em Setúbal…é isso tudo. 

Que não, queria ir a África, mas para um lugar remoto. Vocês sabem como são estas coisas dos preparativos para as grandes viagens de pesca. Tudo tem de ser visto e revisto várias vezes. Ir à Guiné Bissau obriga a cuidados redobrados. 

Também sabem o quanto nós portugueses detestamos despedir-nos duas vezes. Agora imaginem quando alguém no aeroporto, à hora do check-in, nos diz que há um pequeno atraso de… 24 horas no nosso voo: “ _Só sai amanhã”….

No escritório da Air Afrique, e à falta de melhor resposta, um grupo de centena e meia de guineenses bem intencionados discutia alegremente se as duas funcionárias deveriam ser trucidadas, ou apenas regadas com gasolina e queimadas vivas. 

O confronto de duas culturas: de um lado a magia africana, a naturalidade da opção. Do outro, eu, com ideias mais europeias, mais calmo, apenas sugeria que as cortassem em pequenos cubos e as empalassem, ao estilo espetada. Duas culturas, dois pontos de vista diferentes, mas um mesmo objectivo. Como é bonita a solidariedade entre dois povos irmãos que se estimam. 



A partida, no dia seguinte

Um atraso de três horas fechado dentro de um avião nem é muito, mas por favor nem gracejem acerca da queda das máscaras de oxigénio em caso de emergência, e do respirar normalmente, porque a rapaziada anda a cortar nas despesas, e começou pelo banho matinal e pelo desodorizante. A minha parceira de viagem, mocinha de alta sociedade, centros comerciais, lojas caras, sufocava com o ar viciado em “catinga”. 

Deixem-me fazer uma referência ao meu colega do lado, um simpático guineense com alguns problemas de adaptação ao nosso país, sobretudo ao clima invernal. Era portador de uma constipação digna dos maiores elogios, tossindo, cuspindo, ranhando, espalhando bacilos por tudo o quera lado. De tal forma nos comoveu com aquela esforçada e fantástica exibição cavernosa de tossir que ao fim de 15 minutos já lhe tínhamos oferecido um pacote com 24 lenços de papel, um penso higiénico da minha companheira da esquerda, ( ao qual se assoou furiosamente) e ainda um jornal L `Equipe no seu formato XXL, com o qual pretendíamos fazer um biombo. Com este equipamento de primeiros socorros, ou seja, o jornal, o intuito de estancar as performances vocais foi em parte conseguido. Eu fingia ler e virava as folhas abertas na sua direcção. Em condições normais, ter-lhe-ia vivamente recomendado uma suave terapia de electrochoques, mas perante tudo aquilo e ainda mais uma guerra química intestinal intensa e bem activa, fiquei sem argumentos. Pensei apenas em entregar o meu corpo à ciência. Quando menos esperava, pediu-me o jornal que tínhamos a separar-nos, o nosso biombo, cortou-o aos bocadinhos e ranhou-o freneticamente. No fim da viagem, perguntei-lhe o que iria fazer ao segundo saquinho de lenços de papel que entretanto lhe havíamos dado. Que o ia oferecer à sua namorada, como prenda de Natal. Ficámos entendidos. Se houver por aí raparigas portuguesas que aceitem um pacote de lenços de papel como prenda natalícia, estou interessado em todas. Qualquer formato. 

A dada altura perguntou-me: “ isto é chouriço?”…Respondi-lhe que não, que era salmão fumado. Sabendo-o interessado no tema, aproveitei para lhe falar da dolorosa desova dos salmões nos rios, as correntes, as redes de pesca e os ursos do Canadá. Não me respondeu, presumo que não aceitou a minha explicação, mas eu disse-lhe tudo o que sabia sobre esse nobre peixe. Ao fim de meia hora de ter sido servido o almoço, disse-me: _ Isto é piri-piri!...Eu, não vendo nada em lado nenhum, perguntei-lhe: _ Isto o quê?...

_ Isto! - E tirou então algo do bolso que identifiquei como uma embalagem vazia de mostarda que tinha comido há minutos atrás. _ “Comprei no aeroporto”. E foi tudo o que me disse durante a viagem de 6 horas. Rara sorte para uma língua viperina como a minha, ter um parceiro de viagem como este. Quando nos levantámos para sair do avião, o lugar dele, a cadeira, o chão, estava pejado de pedacinhos de papel amarotados e empapados em ranho, mais de duzentos. As assistentes de bordo, quando passavam por nós iam chutando bolas de papel até 10 metros à frente. 

A chegada a Bissau

Foi normalíssima, se considerarmos normal tudo o que é gente a tentar extorquir-nos dinheiro, desde a polícia aos funcionários do aeroporto, aos taxistas, aos favores de carregar malas que se dispensam mas que tem de ser pagos na mesma. Bissau é uma cidade de África. Menos boa para narizes apurados, perfeitamente transitável para quem sofra de sinusite em estado grave, terminal. As lixeiras nas ruas escondem habitações coloniais degradadas, que certamente já conheceram melhores dias. 



A venda de peixe “fresco”, deixa-me rir, é feita a dois metros de um depósito de lixo. Ninguém acha estranho. Nem sequer se um vulgar hotel cobra 160 euros para enviar um fax. Sim, na altura ainda se usava o fax. Perguntei se tinha de ficar com o aparelho, se estava incluído no preço. 

As águas na Guiné são barrentas, castanhas, qualquer tentativa de mergulhar é um perfeito disparate. Depois de conferenciar com a minha parceira perguntei se se importava de ir passar uma semana para os Bijagós. Olhei para ela, e foi então que reparei que estava com saltos altos de 14 cm. “Estás lixada”, pensei…

Fui falar com um velhote de 80 anos, antigo combatente da Segunda Grande Guerra, que tinha um velho biplano, com buracos antigos de balas, mas que era o único meio de transporte possível para as ilhas, tirando as barcaças de transporte de mercadorias e animais. Que sim, que podia ir, mas tínhamos de esperar um dia, porque estava a fazer ao torno umas peças que faziam falta ao avião. Poupem-me a contar-vos a aflição que foi aquela travessia de 30 minutos….o avião abanava como se tivesse Parkinson, e o motor dava rateres, e largava fumo. A belga insistia em que a “aeronave” devia ter cintos de segurança…



A fuga em frente

Não pudemos aterrar na praia como previsto, mas aterrámos. Ao fim de uma hora tínhamos tirado grande parte do capim e arbustos que se tinham cravado nas asas. Virámos o avião ao contrário e sentimo-nos sozinhos por alguns minutos. Apareceu gente que nos levou em peso, a nós e às malas. Uma das malas da belga era só para sapatos e chapéus. Quando cheguei ao acampamento na ilha de Bubaque, pousei os sacos com o meu material de pesca e de caça submarina, e respirei fundo. Olhei para a belga, com os saltos dos sapatos de bico enterrados na lama, e fiquei sem dúvidas de que estávamos no sítio certo. Aquele centro de pesca está para o peixe como o Mónaco está para a Formula 1. É um paraíso de pesca, com as suas 88 ilhas, das quais apenas 20 são habitadas. Pescam-se corvinas da praia. Ali, o longe é ali mesmo. Na semana em que chegámos, uma equipa tinha ferrado um grande tubarão mas ao fim de algumas horas cortou o cabo de aço com os dentes. No dia anterior tinham sido capturados dois mais pequenos, na ordem dos 600 kgs. Uma foto desse mês de um tubarão martelo com 5 metros assegurou-me que estava garantida a diversão. Ali, a única preocupação geral, é a de não se tomar banho em água do mar com mais altura do que o dedo grande do pé. Não é preciso ir procurá-los longe, as barbatanas triangulares passam à superfície a poucos metros da praia. 

Não gosto de mergulhar com muitos tubarões por perto. Dão-me gases. São personagens com mau humor, sempre preocupados com comida. Só pensam em comida e há tantas outras coisas para fazer na vida. As águas eram verdes, opacas. Da mesma forma que não se podem bater palmas com uma só mão, também é difícil mergulhar sem ver. Mais se soubermos que eles andam por lá. Mesmo sabendo que fazem muita falta ao ambiente, aqueles bichinhos são uma espécie de mosca na sopa. Mas eu estava ali para mergulhar, não para “não mergulhar”, logo, …ia mesmo à água. Em suma, a ideia que tinha era de que iria meter os meus dois dedos na tomada eléctrica, esperando que não desse choque. 

As caçadas

Mergulhar em água daquela é quase o mesmo que submergir em caldo verde. Quase igualzinho, com diferença de que não tinha a rodela de chouriço. Durante aqueles dias nunca tive mais de 1,2 mts de visibilidade. Os peixes surgem do nada, do verde, e deixam de se ver em fracções de segundo. A técnica utilizada foi a espera e só a espera. Mergulhava para o fundo, e enterrava o braço esquerdo na lama, naquela espécie de vaza, ou agarrava-me a raízes, ou pedras, se as houvesse. Não me ocorreu outra possibilidade em águas que não permitiam ver a ponta do arpão, e em que 80% dos tiros são feitos a sombras escuras com algum remoto contorno de peixe. As pedras estão apinhadas de peixe, as famosas “carpe rouge”, pargos lucianos, com um comportamento nervoso, vivo, óptimo para quem gosta de praticar um tiro rápido, instintivo. Acabei por pôr de parte as armas compridas, mais potentes, e passei a utilizar a arma curta de 75cm. As derivas pelo fundo, aproveitando as fortes correntes, não se revelaram produtivas, pela impossibilidade de conseguir ver, apontar e disparar em tempo útil. São fracções de segundo. Todos os peixes capturados são de imediato colocados no barco de apoio, não há direito a enganos, a erros. Para aqueles que pensem em ir e colocar o peixe no enfião de cintura, e andar a largar sangue na água, o que me ocorre é que as suas metades poderão vir a ser vistas em câmara ardente na Capela de Sarilhos Grandes de Cima. Nos mangais, onde a visibilidade ainda é inferior, sente-se peixe. Há mesmo muito peixe. Tive oportunidade de observar cardumes de barracudas à superfície com exemplares de grande tamanho. 



Num desses mangais, a fazer uma espera agarrado às raízes das árvores, a dada altura senti um ruído no fundo, à minha frente. Fixei a minha atenção nesse barulho, que me parecia ser de móveis a arrastar. Conseguia ver, mal, até ao fim da minha arma. Instintivamente, recuei o braço, para ver a ponta do arpão, preparado para atirar a qualquer instante. O ruído aproximava-se, lentamente. De repente, uma sombra cinza escuro, com os seus 70 cm de altura, por 1 metro de largo, aparece a poucos centímetros da minha cara: uma tartaruga dos seus 100 kgs. Fugiu ela e fugi eu, cada um para seu lado. O meu barco estava à deriva, como de costume, e era eu que tinha de me deslocar para o alcançar. Reclamei com o meu barqueiro, a quem chamava Sexta-feira: _ Ouve lá, não sabes aí de nenhum sitio mais fixe, com água limpa?...não podias ao menos acordar um pouco para me dares apoio?

Que não, que ali era bom, a água era limpa, mas que havia do outro lado da ilha uma zona em que costumavam pescar uns peixes grandes. O barco equipado com um pequeno motor Yamaha Enduro levou-nos lá. À chegada, pareceu-me que a água ainda era pior. Meti a máscara, peguei na arma e deixei-me deslizar para a água. Via-se meio metro. Com o braço à frente, desci até onde podia, estava escuro como breu, e bati contra o fundo. Estiquei o braço e dei com as raízes circulares dos mangais. 



Contra o sol, via manchas que passavam à minha frente, sem as conseguir distinguir. Uma delas parou o suficiente para eu poder apontar e disparar. Um xaréu dos seus 8 kgs ficou espetado no arpão, com um tiro alto, miserável. Como costumo dizer, apanhei-o pelos cabelos. Apressei-me a trazê-lo ao barco. A minha namorada belga fazia as fotos possíveis, com uma máquina descartável. 



Voltei a reclamar da visibilidade da água. O Sexta-feira sugeriu-me ir um pouco mais à frente. O velho barco fez mais quinhentos metros e chegámos a um sítio mais arborizado, com muitos pássaros pousados. Lancei-me à água. Passados minutos, atravessei uma zona em que deixei por completo de ver. Era lama pura, com folhas podres a flutuar. Levantei a cabeça e chamei o barco. Dizia-me ele: Já vou, espere um bocadinho!...Não o via a fazer nada, voltei a insistir para se aproximar. Foi então que me disse: “ Vi sair para a água dois hipopótamos, devem ter sido eles que levantaram o fundo….já aí vou”...dizia-me ele sem se aproximar. 

Nos Bijagós, existem hipopótamos de água salgada e também crocodilos. Apenas soube depois de ele me ter dito. Os bichos estavam por baixo de mim e não faz bom cabelo a ninguém saber disso. Já no barco, tirei a máscara e disse-lhe: _Isto aqui é perigoso, rapaz. Não consigo ter condições para mergulhar, percebes? Não se vê nada e estes gajos, quando estão desnorteados, …mordem…! Por não acreditar que conseguisse suster um hipopótamo de 2500 kgs com aquele equipamento, dei ordem de saída e regressámos ao acampamento. A belga perguntava-me o que podia acontecer se um hipopótamo me quisesse morder. Respondi-lhe que aí, teria de escolher qual a minha metade que mais gostava, as pernas ou o tronco. 



Difícil mesmo, para além da visibilidade, que me matava, era a formação que tinha de dar ao pirogueiro. Habituado a pescar à linha, não tinha a menor noção do que era mergulho. Verdade que ali ninguém mergulha, mas como explicar por outras palavras que não me devia passar com o hélice por cima? Em princípio a culpa era minha. Depois de lhe explicar, com bons modos, que não devia vir com o barco ver o que se passava, cada vez que eu estava mais de minuto e meio debaixo de água, insistia. Expliquei-lhe trinta vezes que eu estava lá em baixo quieto, e tinha de esperar a melhor oportunidade, algum peixe maior que me desse a oportunidade de atirar. E isso levava tempo. Passei a enganá-lo: mergulhava numa direcção e em baixo virava para outra. Ainda assim, ele, de vez em quando, vinha para cima de mim. Quando eu barafustava, o artista, sorridente, exibia aquele característico sorriso africano de dentes bem brancos e dizia-me: _ Tinha um palpite que estava mais ou menos por aqui…



Já para o fim, passou a afastar-se um pouco. Mas aí, afastava-se demasiado. Por vezes, trezentos metros. Passei a estar sozinho no mangal. Cada vez que arpoava um peixe tinha de fazer uma maratona para o ir deixar. E não adiantava fazer sinal para o chamar, porque me fazia adeus e ficava no sítio. Longos dias foram necessários para lhe incutir o espirito de trabalho em equipa, o sentido de ajuda. 



O dia da discussão

Amanheceu com sol, um dia bonito. Equipei-me já com o dia quente, o sol a escaldar na pele bem massacrada da noite anterior: os mosquitos comem à noite, e nós somos a comida. 

Dizia-lhe eu: _ Sexta-feira, agora vais largar-me aqui nestes pontões de rocha e segues ao lado, enquanto eu me deixo ir na corrente. Vamos fazer umas barracudas grandes. OK?

Não achei estranho não me responder, porque ele nunca me respondia, limitava-se a sorrir. Ao meu primeiro mergulho, afastava-se, e nunca mais o via. Quando tinha um peixe na ponta do arpão, a debater-se, a deitar sangue, tinha de ir ter com ele, onde quer que estivesse. Apenas sorria e mantinha-se impávido e sereno. A dada altura, saturei-me de andar atrás dele, e disse-lhe: _Agora a seguir trocamos. Vens tu para dentro de água mergulhar e eu passo a conduzir o barco, certo?! Não me respondeu mas fez-me uma cara de caso que deu para ver que não tinha interesse nenhum na troca. Nessa noite falei com o chefe do acampamento e disse-lhe que o atleta olímpico que me tinha indicado tinha pouca ou nenhuma vocação para barqueiro. E que queria trocar com outro, qualquer que fosse. 



O dia da fera

Sai-me na rifa um tal de Florent, um costa-marfinense encorpado, com muita força, mas pouca vontade de a fazer. Eu carregava todo o equipamento. A parte que lhe interessava eram os peixes, que levava de imediato para a cubata dele. Pareceu-me ser boa pessoa, mas ainda mais dorminhoco que o anterior. O barco que tínhamos utilizado estava ocupado para ir buscar mantimentos, mas havia uma piroga de madeira e isso bastava-me. Ia-mos a remos. A estabilidade era zero, mas a vontade de conseguir uns peixes para oferecer às pessoas da aldeia era muita e fomos mergulhar para uma ponta da ilha. 



Segundo o Florent era o melhor sítio, onde ele pescava os maiores peixes. A dada altura achei que ele apenas estava interessado num pouco de excitação, por exemplo que eu fosse comido. De facto, senti que ele estava a pescar, mesmo que sem linha, e que o isco era eu. Terei passado pelos locais sem ser à hora da refeição dos bichos, porque literalmente andei a bater à porta da desgraça. Qualquer manobra de intimidação de um grande daqueles, martelos, tigres, não resulta porque nós não a conseguimos ver, não dá para ver qualquer aproximação. De resto, acho que não as chegam mesmo a fazer, não há manobras de intimidação, eles vão directos ao assunto. 

A dada altura, passa mesmo à frente da minha máscara um cardume de xaréus grandes, as barbatanas amarelas são inconfundíveis. Um tiro rápido trouxe um deles para baixo de mim. Os roncos que dão chamam peixe, e peixe grande. Passei o xaréu para o barco e o Florent disse-me: _ Aqui há peixe muito maior!...

Eu ia para baixo e não conseguia ver mais do que algumas sombras, e ruídos provocados pelas caudas dos peixes que se afastavam de mim. Apareceu-me mais um pargo, e ele voltou a dizer-me: _ Aqui há peixe muito maior!...

_ Queres trocar? Perguntei-lhe. Que por nada deste mundo. Perguntei porquê e a sua resposta foi elucidativa: _ Eu aqui não queria cair na água…andam muitos bichos estranhos nesta ponta. 
Subi ao barco e perguntei-lhe a que se referia quando falava de “bichos estranhos”. Que eram peixes grandes, e que era possível tentar com a cana. 

Pois sim, eu tinha levado a minha cana de Big Game, com fio bem reforçado. Ele sacou de um terminal de aço com 3mm de espessura e cerca de 6 metros de comprimento. Perguntei-lhe o porquê daquele comprimento todo. 

_ Já vai ver. Passe lá daí o último xaréu que pescou. 

Com a minha faca de mergulho, espetou o peixe em vários sítios, para largar sangue, colocou um anzol enorme à boca outro ao rabo, colocou uma pedra como peso, e lançou no sítio onde eu tinha estado a mergulhar. Não mais de dez metros de fundo. 

Daí a uns doze minutos, o carreto cantou. Devagar a principio, depois cada vez mais depressa, mais depressa, a linha saía a uma velocidade louca. A estabilidade da canoa era pouco menos que nula. Fazer força naquelas condições é pouco menos que impossível. 

No primeiro arranque saíram cerca de 600 metros de linha. Os braços doíam, as costas estalavam, da precária posição em que me encontrava. A piroga deslizava na água como que impulsionada por um motor. Uma hora e dezoito minutos depois, já muito perto da ilha de Rubane, comecei a sentir que havia sinais de fraqueza do outro lado da linha. Os braços estavam desfeitos do esforço. Entendi então a razão do enorme gancho que a piroga tinha dentro quando entrei nela: tratava-se de um gancho de reboque. 

Ver emergir junto a uma piroga de madeira um bicho com aquele comprimento é uma sensação estranha. Nunca sabemos quem pescou quem. Lembro-me de ter dito ao Florent:

_ Se viramos o “paquete” e caímos à água, aviso-te já que eu vou jantar a casa, fui federado em natação. É bom que sejas capaz de acompanhar a minha braçada, e sobretudo que não te deixes apanhar pelo bichinho.

Habituado àquelas lides, o Florent dirigiu a canoa para terra, remando vigorosamente direito ao ponto mais próximo. O gancho de reboque cumpriu a sua função, e o bicho foi arrastado para terra. O resto foi trabalho de braços. 



Falei-lhe na possibilidade de soltarmos o animal. Que não, que era muito perigoso tentar soltar o anzol que estava cravado na goela do tubarão tigre. Para além disso, eles comem-nos, ali não se desaproveita nada.

Confesso que sem um alicate comprido, algo mesmo muito comprido, seria muito difícil. Aquilo não é um sargo….

Fiquei sentado na praia, exausto, durante uma hora. Com o bicho já morto, foi tempo de voltar a entrar na piroga e voltar para o acampamento. No trajecto, dizia-me que tive muita sorte, por me ter calhado um pequeno. O record mundial IGFA era de 807 kgs, e o seu recorde pessoal de 850 kgs, não homologados, porque a balança não estava certificada. No sítio onde ferrei o meu, nesse ano já tinham sido pescados 3 acima do record mundial.

Agradecendo o facto de me ter levado para aquele sitio para …mergulhar, …fui medir o bicho: 3.36mts de comprimento, peso 230 kgs. Estava muito longe do máximo da espécie, mas para mim chegou e bem. À chegada, a belga veio ter com a piroga, com água pelo joelho. Quando viu o animal que estava por trás, lançou um grito e saltou fora, deixando o fino chapéu de feltro Louis Vuitton a flutuar. 



Os Bijagós de hoje já nada têm a ver com aquilo que eram, um lugar inóspito, duro, para gente com experiência. Abriram inúmeros centros de pesca, sobretudo de franceses, e a quantidade de peixe baixou significativamente. Os pescadores senegaleses, sobretudo do sul, da zona de Casamançe, passaram a fazer daquelas águas o seu ponto de pesca mais comum. Pescam com redes nos mangais, e vão vender o peixe aos grandes barcos, sobretudo chineses, que os esperam ao largo. E pagam, embora muito mal, em dinheiro. 

Não excluo a possibilidade de voltar a pescar nos Bijagós. Como as águas das marés, que vão e voltam, também nós ficamos presos a esta vontade de ir, que é no fundo a mesma que nos faz voltar para casa. Ir e voltar. Este sentimento tão português de sentir saudades, de ter marés. 


Vítor Ganchinho



2 Comentários

Artigo Anterior Próximo Artigo

PUB

PUB

نموذج الاتصال