TEXTOS DE PESCA - Emília, a tainha de rabo gordo

Gosto de mar! Eu, se pudesse, ia a casa como as tartarugas vão à areia da praia: ao fim de 20 anos, e só o tempo estritamente necessário para pôr os ovos. 
Tenho 57 anos, pesco há 51 e confesso ter perdido a minha juventude toda atrás dos peixes. Os meus cães ladram-me quando volto a casa. Grande parte do meu ordenado é gasto em carretos, canas, fios, missangas e bugigangas. Prometi à minha querida mulher que a levava em lua-de-mel, a Cancun. Acabei por dar uma volta ao Seixal e comprei um carreto Daiwa Saltiga 8000. Quando a minha Mafaldinha nasceu, a mãe insistia em colocar quatro medidas de leite em pó no biberon da criança. Por mim, com três colheres, carregando um pouco mais na água, estava bem. Sempre podia comprar mais umas carteiras de anzóis, poupando no leite do bebé. 
Tenho a certeza de ter nascido para fazer algo de muito grande. O Marquês de Pombal sentia o mesmo quando era novo. A ele, deu-lhe para aquilo das avenidas. Mas isso já está muito visto, há terramotos a toda a hora, e por toda a Europa há centenas de avenidas largas. Eu queria mesmo era fazer algo que nunca tivesse sido feito. Algo de uma dificuldade extrema. Ainda pensei em me candidatar a ministro e trabalhar a sério pelo país, sem interesses pessoais, sem me abarbatar a nada para mim, mas a ideia que tenho é que mais século menos século, alguém ainda vai fazer isso. Teria de ser algo com muito impacto. Algo que nos próximos 12 anos, dia após dia, pudesse abrir todos os telejornais de todas as televisões deste mundo. Algo verdadeiramente impossível! Logo, só podia ser uma coisa: pescar a velha, manhosa e difícil tainha Emília, a impescável tainha do Tejo!



Não preciso de vos explicar muito sobre a dificuldade acrescida que é sequer conseguir saber por onde anda a tainha Emília. O Tejo é grande. A última vez que foi avistada, estava no Cais das Colunas, em Lisboa. Segundo os transeuntes, de cabeça de fora, olhava para o cavalo do D. José. Quando têm uma boca daquele tamanho, já comem tudo. O pobre cavalo ficou estático e petrificado. Desde essa altura, nem se atreve a mexer-se, nem para pousar a pata. 
Fui-me a ela com determinação, preparado para a guerra, armado de canas e bagagens. Passei pela Ponte 25 de Abril e aproveitei para espreitar cá para baixo com os meus binóculos de longo alcance. A água estava turva como de costume, mas calma. Um ou outro turista afogado, a boiar ao sabor da corrente, mas nada de tainha à vista. Apareceram-me 120 elementos da GNR a perguntar se não me importava de sair dali, e tirar as mochilas e os sacos das canas do tabuleiro, porque a fila de carros, do lado norte-sul, estava em Matosinhos. 
Emília, a tainha gorda de rabo gordo, com celulite e pele casca de laranja, era o meu objectivo. Aquilo que me iria lançar para o estrelato. Nada de medos, a missão era espinhosa mas os cobardes fogem para trás e os fortes fogem para a frente. 
Abril de 2019. Assentei arraiais à saída do esgoto que fica a seguir ao Museu da Electricidade, na Avenida Brasília. Debaixo do candeeiro. Pareceu-me um excelente sítio para uma tainha famosa. Muito lixo, água muito suja, coliformes fecais com fartura. Era o sítio ideal. A água tinha a pinta certa: esverdeada, com bactérias redondas tamanho de bolas de futebol, a correr na direcção de Algés. As tainhas adoram aquilo, ficam desvairadas! Abençoado esgoto. Pessoal da Câmara de Lisboa: quando já não quiserem aquele esgoto, vendam-mo! Pelo preço que vos vier à cabeça, porque aquilo é precioso. É uma mina para as tainhas! 
Montei quatro canas big game de 130 libras, com carreto Penn de tambor móvel, International 80 VS, e 900 mts de fio de nylon de 1mm. Anzol simples nº 8 super afiado, com terminal de aço. Nunca se sabe. Fiz esta montagem porque os peixes da zona estão muito batidos e é preciso subtileza. Temos que ser discretos e ter unhas para eles! Montei uma tenda de campismo na muralha, com avançado largo, para poder acudir mais rápido. Uns guizos nas ponteiras e aí estava o artista pronto para entrar em combate. Comecei a engodar. Para uma tainha já velha, não ia lá com meias medidas. Joguei-lhe com uma carga completa de camião cisterna de gasóleo, seiscentos litros de óleo de motor queimado, uma dúzia de cachecóis do Sporting e 180 preservativos da Durex, em segunda mão. 
Passados dois meses ainda não tinha picadas. Tudo dentro do normal. Isso acontece-me muito. Atribuo a falta de picadas nos primeiros meses ao facto de o peixe ser naturalmente desconfiado, e reagir um pouco mal ao impacto das chumbadas na água. Pesco com chumbadas de 6.5 kgs.  As correntes são fortes, arrastam muita lama e pedras, e é certo e sabido que, caso a isca derive um palmo que seja, sai do sítio, e vai “tudo por água abaixo”, embora neste caso, isso seja uma força de expressão. Se a isca sai do sítio, um centímetro que seja, podemos estar anos sem ter um toque. Normalmente lanço as minhas chumbadas em rotação, com um cabo de aço e uma pega. Inspirei-me no lançamento do martelo. Isto são pormenores técnicos que partilho convosco. Sinto que é minha missão ser didáctico, mostrar-vos novas técnicas e formas de fazer. Experimentem a lançar as vossas chumbadas fazendo 17 ou 18 rotações completas, sempre sobre a perna esquerda, e depois digam-me. Por alguma razão os lançadores de martelo e disco estão a ganhar as provas de pesca surf casting todas!
Julho de 2019. Durante a noite, deu-me ideia de ver uma ligeira vibração numa das canas. Estive dois dias muito atento, quase sem respirar, mas acabou por ser rebate falso. Comecei a achar que devia contratar um ajudante, para me dar algum auxílio na parte da engodagem. Controlar as canas e deitar engodo para a água com a pá, era demais para uma pessoa só. Acabei por encontrar um emigrante ilegal que se prontificou a ajudar, a troco de duas postas da tainha. Não sei onde é que ele vai meter tanto peixe. A comunicação não é fácil, porque ele não diz uma palavra em português. Mas parece-me a pessoa certa e talvez venha a fazer carreira de engodador. Tem um papelão rascunhado a dizer Germany. Talvez seja o nome dele. Cada vez que passam motas e carros na estrada, mostra o cartão e levanta o polegar. Como me apareceu a uma segunda-feira à tarde, passei a chamar-lhe Sexta Feira de Manhã. 

O meu engodador oficial, o Sexta Feira de Manhã.


Uma semana depois, pareceu-me ver uma das sardinhas do isco tocada, meio ratada na barriga. Tensão máxima agora! Nós sabemos como as tainhas são manhosas, e a Emília Rabo Gordo era seguramente muito mais esperta que todas as outras. Tive a visita da minha mulher. Ela é que teve olho para arranjar um marido bom!! Trouxe-me isca: lulas recheadas com bacon, feitas em tomatada. Uma tainha gorda tem obrigação de gostar disto!

Uma iscada de lulas recheadas…


Dizia-me a Lena: “ Não queres ir para casa? Uma das torneiras da casa de banho está a pingar há meses, e além disso, as tuas filhas estão com saudades tuas. E uma das galinhas está choca, não quer sair de cima dos ovos. O animal não vai nem beber água….”
_ Isso de não comer nem beber já está muito visto! O Luaty Beirão fez isso há uns tempos em Angola, durante 35 dias. Fico aqui na muralha até pescar a Emília gorda!...
_ Mas qual Emília?! A que é vendedora de automóveis?
_Não. A tainha gorda, aquela que ninguém consegue pescar. 
_ Estás magro como um peixe-espada!...
_Sim, mas sinto-me como um tamboril balofo e anafado. Eu apanho aquela tainha!
_ Mas Vitor, …a Teresa e a Mafalda têm saudades tuas, as crianças querem ver-te. 
_ Elas que venham cá ver-me. Sempre apanham ar puro e saem da frente do computador. 
_ Isto aqui cheira mal! Cheira a esgoto! Não trago as crianças para aqui!...
_ Não gostas do pesqueiro?! É uma questão de hábito. Para mim, este sítio lembra-me os Alpes suíços, tem uma brisa fresca e agradável. Por falar nisso, podias trazer-me uns agasalhos, isto no Inverno deve ser frio. 
_ Mas tu já tens cá toda a tua roupa, de Verão e de Inverno. Tens até as meias de lã da Serra da Estrela. Só falta trazer-te o quadro do escritório, o “ Menino da Lágrima”. 



_Traz o quadro, sempre decora a tenda. Coração, lembra-te disto: eu ainda vou ter uma foto minha em todos os outdoors do país, com aquela tainha presa pelo rabo! Não tenho é engodo. Já se acabaram os caixotes do lixo aqui da zona. O pessoal da recolha de lixo está-me a tramar a engodagem. Sonho com o dia em que vou receber o prémio da Tainha Gorda de Ouro, em Veneza. 
Agosto 2019. Passaram duas velhotas gaiteiras, de Algés, de beiços pintados:
_A minha Lizete ainda estava grávida da minha neta, a Cátia Vanessa, quando este moço veio para aqui. A criança já anda, já diz “download”, e ele continua a pescar. Não vejo é peixe nenhum. Vou pôr uma velinha por ele. 
Entretanto, o sol caiu mais uma vez, sem uma única picada. Os comentários eram pouco abonatórios, mas as pessoas não sabem, e por isso temos de as desculpar e desvalorizar o que dizem: 
_ É de longe o melhor homem-estátua que já vi. Está imóvel há 3 horas a olhar para a ponteira da cana, sem pestanejar. Nem mexe os olhos! Estás a ver as calças dele todas molhadas? Veio de lá um cão,…deve ter pensado que ele era um poste... este tipo é muito bom !
Eu continuava atento e concentrado. Ao menor descuido, e a tainha Emília ia embora para sempre. Um casal de estrangeiros gadelhudos, com ar de estarem anémicos de finanças, passou e perguntou-me: 
_ The camping. Do you want to rent it?
_ No, sorry. I`m trying to catch Emily, the fat fish...respondi-lhes. 
Por força que me queriam arrendar a tenda. Fizeram fotos para postar no Facebook e enviar para os amigos na Holanda. O passeio estava cheio de gatos. Estavam confiantes no resultado da minha pescaria. Acreditavam em mim. Eventualmente podiam vir também ao cheiro da sardinha podre do engodo. Resolvi desmontar a tenda e avançar um pouco mais para norte de Lisboa. Avancei o equipamento todo uns vinte metros. Sempre eram outras águas. Passaram dois polícias: 
_ Será mais um jogador que vem para o Benfica? Eles vão buscá-los aos bairros de lata, porque é lá que eles se fazem para a guerra. E este tem ar de maluco, deve ser avançado!
_Pode ser,...dizia o outro. Ele tem é cara de esgazeado. Não gosto deles quando parecem ser a última Coca-Cola fresca do deserto. Isto pode ser coisa de narcotráfico!
Setembro 2019- Apareceu-me um moço de barbas compridas, vestido com uma túnica cor de laranja. Vinha com uma faca enorme na mão direita, e uma bandeira preta rascunhada, na esquerda. A correr direito a mim, com pressa e aos gritos. Não percebi se vinha ajudar a fazer os filetes de sardinha da isca. Tropeçou no cabo do camaroeiro, e caiu à água. Nunca mais o vi. Fiquei possesso porque podia ter ido tomar banho para outro lado. É assim que se estragam os pesqueiros.
A Lena passou por lá para me deixar sandes de torresmos e 860 pacotes de bolachas Maria. Perguntou-me: 
_ Lembras-te daquele projecto que tinhas de construir uma barragem no topo do Evereste? Aquela coisa de fazeres lá provas de motonáutica? Acho que alguém já começou a fazer isso, uma empresa do Qatar antecipou-se. 
_ Não te preocupes. Eles vão fazer o paredão da barragem, entre o Evereste e o Annapurna, com tijolo de 7cm e pladur. Vai tudo por água abaixo. Eu é que sei fazer barragens! Olha, por falar nisso, como estão as acções do Goldman Sachs?
_ Perdeste tudo o que tinhas. Acho que era melhor voltares para casa. Para além disso, tinhas dito que querias produzir vinho. O meu pai acha que não consegues fazer mais que meio litro de vinho, e que vai ficar ruim. Ele diz que nas três cepas que temos lá em casa, só se aproveitam uns 3 ou 4 cachos de uva. O resto caiu em desgraça, está tudo com míldio. Não foi curado…
_O teu pai não percebe nem de fazer vinho nem de fazer filhas! Se eu digo que faço 500 litros de vinho, mesmo com 3 cachos de uvas, faço! Ele não está a contar que temos a água do furo. Faço um cortadinho e até sobram uvas! O pessoal dos haxixes, com 10 gramas faz dois fardos de 50 kgs! Faço a quantidade de vinho que eu quiser! Para além disso, ainda mantenho a ideia de que consigo fazer vinho a partir de resina de pinheiro. Logo que me despache daqui, arranco com isso. 
_ Mas então quando é que voltas para casa?
_ Achas que eu sei?! Não depende de mim. A tainha é que manda. Nem o professor Bambo tem soluções astrológicas para estas coisas. A semana passada, passou aqui em frente ao pesqueiro uma coisa escura e comprida a rasgar a superfície e pareceu-me ser ela. Quando vi um rebocador à frente, percebi que era o submarino Tridente II, da Marinha. Ia mais uma vez para doca seca, para reparações. A pesca não tem horas. É preciso ser paciente, saber engolir em seco, aguentar os dias menos bons. Um dia bom, seis meses maus, isto nunca se sabe.
Um individuo tem de se preocupar com tudo. Não basta a ausência absoluta de toques nos últimos cinco meses, ainda tenho de me estar a ralar com o pessoal que passa de bicicleta. De vez em quando um deles ficava enleado pelo pescoço nos fios de nylon, e caia da máquina abaixo. As pessoas não vêm por onde andam, as canas estão a pescar, um individuo está com atenção ao que está a fazer, não pode estar ao mesmo tempo a segurar tabuletas de trânsito proibido. Ora se estão a ver os fios das canas esticados,...vão à volta, vão dar a volta à Reboleira! Vão correr para Chelas! Vão pedalar p`rá Volta à França!
Dezembro 2019. As minhas filhas resolveram visitar o pai. 
_Eh Mafalda, estás grande! E então?!
_ Já entrei para o 1º ciclo. Viemos cá trazer-te a tua prenda de Natal. 
Emocionado, abri o embrulho com ansiedade, quase conseguindo adivinhar o que era: uma caneca de loiça. Mas não, era uma linda cana de pesca em carbono com 4 mts! A dedicatória não podia ser mais feliz: “Para o pai mais persistente do mundo! Aguenta firme!” 
Já a minha querida esposa não estava muito eufórica com o andamento da minha missão. Quando fui para a beijar, deu dois saltos para trás e gritou-me: 
_ Não te chegues a mim com esse cheiro pestilento a sardinha! Se te aproximas… lanço-te gás pimenta!! 
À distância, entregou-me então a sua prenda. Pensei que fosse um carreto, ou um pacote de casulo. Não propriamente. Desembrulhei e eram três pacotes de amêndoas da Páscoa. Por vontade dela, eu andaria sempre ao pescoço com uma árvore verde ambientadora, daquelas de pendurar nos retrovisores dos carros. Anima sempre saber que a família está connosco, e que nos apoia nos nossos projectos. A passagem de ano correu lindamente. Recebemos a visita de uma série de associações de apoio aos sem-abrigo, e foi muito interessante ver toda a gente entusiasmada a engodar, deitando à água molhadas de cotonetes com cera. As tainhas adoram e eu fiquei sensibilizado.
Estava duro de conseguir dar a volta ao assunto, a tainha Emília não dava sinal. Outra pessoa teria colocado algumas reservas em relação à empreitada que tinha em mãos, mas é a fé que nos guia, e eu sabia que iria conseguir. Os foguetes da passagem de ano não foram bem-vindos. O peixe afunda. 
Janeiro de 2020. Eu tinha a certeza que a Emília Rabo Gordo, mais ano menos ano, teria de passar por ali! E passou mesmo! Estava eu a partilhar um gelado com o Sexta Feira de Manhã, a darmos lambidelas ao despique, quando nisto, uma forte pancada na cana levou-me duas centenas de metros de linha. Era ela! Finalmente! Benzi-me três vezes e ferrei com alma. A decoração dourada da cana ficou-me colada à pele das mãos. Três das vertebras ficaram bloqueadas, a trabalhar osso com osso. Não era tempo para lombalgias nem mariquices. Nestas alturas não há torcicolos! Um individuo tem a miss Suécia à frente, descascada e a fazer a esparregata, …não lhe vai dizer que, logo por azar, nesse dia tem o colesterol alto! Todo aquele tempo de espera, toda a preparação, iria agora ser posta à prova. A linha saía do carreto a bom ritmo. O Sexta Feira, sorridente como nunca o vira, recolheu as outras canas, para evitar enleios. Cheirava-lhe a palha, ou seja, peixe fresco. Quando percebeu o tamanho do animal, foi chamar os amigos dele ao Martim Moniz. 
Segundos fora. Era tempo para mim e para a Emília. Como num combate de box, umas vezes damos, outras levamos. Eu estava a levar, mas sabia que o peixe não iria resistir para sempre. Escorregavam-me os pés nos limos da rampa. Atei-me pela cintura ao poste da luz. A linha saía rápido pela ponteira de rolete, o bicho ia em frente, esporeado, com o freio nos dentes. Saltavam chispas da ponteira, mas o equipamento iria aguentar! Material da Go Fishing não derrete nem parte. Nem com esticões do TGV do tio Sócrates! O Cristo Rei já estava com a túnica toda encharcada. Os braços estalavam de tanto esforço. Grande parte da linha saiu do carreto. Só apelava para que o cacilheiro não me cruzasse o nylon. Partir o fio agora seria inglório. Um lisboeta pacholas deixou uma coroa de flores. “Fica aqui, …para o que perder”, dizia ele. 
A ranger os dentes, fiz força como um condenado às galés durante horas. Este é um tipo de esforço violento que não recomendo a pescadores grávidos ou a amamentar.
Quando estava convicto de que o pior já passara, o poste do candeeiro começou a ceder, e a inclinar-se perigosamente para a água. Estava atado e fui atrás. Mais um esticão e dei por mim a fazer força contra o peixe mas debaixo de água, atado pela cintura e respirando por uma palhinha. Nos filmes de guerra, e sobretudo nos de gajas, acontece muitas vezes. Um descuido, uma pequena distracção, um copo a mais, a cabeça à roda, e lá está o pessoal com a boca na palhinha. As coisas estavam a ficar pretas, mas eis que chega o 7º de Cavalaria, ou seja, uma molhada de 160 emigrantes ilegais, ucranianos e kosovares. Os amigos e amigas do meu inseparável Sexta Feira de Manhã. Dizia um deles: “ se for preciso mais umas centenas para suster o bicho, também se arranja”. É o que não falta é malta de força, filhos de um Deus menor sim, gente do outro lado da vida fácil, sim, mas lutadores. E interessados em tainha. Entre todos, conseguiram endireitar o poste do candeeiro. Cá fora, respirei fundo. Em momento algum afrouxei a tensão da linha, mesmo já com as mãos encortiçadas. Saltavam limalhas em brasa do carreto. Não a podia deixar enrolar nos pilares da Ponte. A tainha debatia-se furiosamente, num esforço titânico para se soltar, mas não contava com a minha força e arreganho. Não tenho pisca de gordura neste corpinho, é só músculo. Nós lá no meu planeta temos todos uma força de braços descomunal. E aos poucos o bicho foi arrimando, para grande alegria de todos os que assistiam. Dar autógrafos, acenar ao povo e manobrar a manivela do carreto com a mesma mão, não é fácil. Não é para todos, é só para pessoas de técnica e coragem muito acima da média. 
 


Malta que estava trabalhando no “gardanho“, a assaltar um banco na Avenida de Berna, quando souberam o que se passava, interromperam os tiros à polícia, largaram o serviço, os sacos das notas e as pistolas. Por entre o cheiro a pólvora, policias e “profissionais liberais” abraçaram-se, meteram-se todos na carrinha de valores e vieram juntos ver encostar o animal. Taxistas deram boleia nos seus veículos ao pessoal da Uber. Grávidas saíram à corrida da Maternidade Alfredo da Costa, baldaram-se às criancinhas, e vieram em pijama de parto para a doca. O nosso querido presidente não resistiu, quando soube do assunto através do SIS, sentiu umas borboletas no estômago, ….e lançou-se para mais uma banhoca no Tejo, ajudando a empurrar a tainha para terra.
Não estava nada preparado. Não havia sequer um autocarro descapotável para passear pelas ruas de Lisboa com o bicho. Se fosse para o Benfica, a Câmara Municipal tinha desenrascado logo em três tempos uma viatura para ir até ao Marquês. Um acontecimento mundial destes, tem este tipo de tratamento. Francamente!
Pois assim que se soube do outro lado do mundo, o grande líder Kim Jong-un, visivelmente impressionado com o tamanho da tainha, mandou imediatamente formar as tropas, ou seja, toda a população norte coreana, organizou um enorme desfile militar com milhares de armas nucleares, e obrigou toda a população a fazer um corte de cabelo igual ao meu. A pivô da televisão estatal, entusiasmada, referiu-se a mim como sendo ainda maior que o Grande Líder. Bem disposto e sorridente, este, pese embora o constrangimento da noticia, deixou-a viver. Exactamente por 2 minutos e 20 segundos, o tempo que levou a juntar as facas e cutelos, a degolá-la em directo, e a por em fila mais 48 dos seus primos e tios, que acabariam igualmente decapitados. 
Restava-me ir arranjar o cabelo, fazer umas madeixas loiras e preparar-me para dar as entrevistas. As barracas de comes e bebes apareceram do nada, e vendiam tainha de cebolada, empadinhas de tainha e brioches recheados de tainha. Milhares de pessoas insistiam a pé firme numa fila interminável junto ao Centro de Beleza Adónis. Pediam aos gritos tatuagens com o meu nome, a data e o peso do animal: a meu ver, cerca de 930 quilos. Estas coisas são assim, quando me dá para esticar no peso não tem limite! É o que me vem à cabeça! Merchandising com a minha foto a segurar a Emília pelo rabo vendia-se como pãezinhos quentes. Cachecóis, porta-chaves, aventais de cozinha e assadores de linguiça gravados com a foto da tainha, davam 7-0 às bonecas Frozen, da Disney. No Restelo, foi lançado o pastel de nata em forma de tainha Emília, sem canela. Milhares de barcos de pesca insistiam nas Capitanias em mudar o nome para “Tainha”.



Depois disto, não sei se quero ir para o Panteão Nacional, se prefiro ir para o Convento de Sta Clara. Tenho de ter em atenção a humidade das campas. E quero um sítio com espaço, não quero ficar num sítio acatitado. Eu durmo muitas vezes com a barriga para baixo, e as pernas todas abertas. Com dois hectares, já dá para mim, os carretos, o bicho e parte das revistas que dedicaram edições especiais a este assunto. Relativamente a comendas, prefiro a azul, a da Ordem do Infante D. Henrique, esse grande pescador de tainhas. Gosto de azul.

A pedido de muitos dos meus queridos leitores, vou tirar a seguir um curso de acordeonista que me vai tomar 13 anos. Antes disso, no próximo número, não perca o meu artigo técnico,  “A pesca ao peixe-agulha miúdo, com bifanas de Vendas Novas”.


Vítor Ganchinho




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