Depois de voar num velho avião bi-plano, um quatro asas com buracos de balas da segunda guerra mundial, entre a Guiné Bissau e os Bijagós, já acho todos os aviões seguros. Desta vez, voltei a um voo num avião a hélices, mas bem mais moderno, embora lento. Duas horas para fazer meia dúzia de quilómetros. Ao sair do aeroporto valenciano, quase à meia-noite, “escolhi” um táxi que estava inquinado de cheiro a haxixe. O motorista, um jovem paquistanês com ar alucinado, olhos inchados e raiados de sangue, mediu-me de alto a baixo. Dado ter já a mala “confiscada” no porta-bagagens, entrei. Se soubesse o que iria acontecer, teria perdido o amor à roupa e ao material de pesca, e fugia a sete pés.
Arrancou em cavalinho, fazendo chiar as rodas, e depois de duas centenas de metros já me conduzia a 190 km/h nas ruas de Valência. Procurei meter conversa:
_Que qualidade! Sabes que darias um bom piloto de competição?!
Resolveu brindar-me com uma colecção de truques, de acelerações, de guinadas bruscas e travagens no limite que quase me fizeram saltar os olhos das órbitas. No meio de todo aquele almareio, ouvi-o dizer algo como: “ Eu já sou condutor de táxis há quase dois meses, e nunca bati!”…
A seguir, resolveu testar os meus nervos, os quais eu gostaria que naquele momento fossem quase de aço: começou a escrever uma mensagem no telemóvel, sem olhar para a estrada. Perguntei-lhe se lhe daria eventualmente jeito que eu guiasse o carro com a ponta do pé esquerdo, a partir do banco de trás. Que não: “ Eu consigo fazer muitas coisas ao mesmo tempo, isto ainda não é nada.” Na impossibilidade de me atirar pela janela, por receio de me despentear todo, aguentei firme, fechando os olhos. Não se livrou de, recorrendo a todas as minhas forças, lhe fazer uma série de buracos com as unhas nos estofos do carro. No fim resolvi dar-lhe uma gorjeta monumental. É meritório encostar-me a orelha ao asfalto, fazendo curvas a 180 à hora, sem capotar.
A espanhola da recepção do hotel não me deixou “hablar” com ela em condições: dona de um par de peitos altamente volumétricos e empinados, uma coisa de fazer faltar o ar, obrigou-me a recuar uns metros para a ver toda ao mesmo tempo. Tinha uma anilha ou algo brilhante no nariz, … acho eu….o decote não deixava ver bem a cara.
Perguntou-me o que fazia ali. Disse-lhe que estava em missão de pesca: “como sabe, sou o 2º melhor pescador do mundo. O primeiro é Deus, com aquela faena do milagre dos peixes, claro, mas é preciso ver que ele e o apóstolo Pedro, estavam a trabalhar com redes, e eu, a minha arte é a anzol. Venho para pescar com o António Pradillo e o Raúl Gil”.
A mensagem no telemóvel não mentia: a saída era às 5.10 da manhã. E lá estavam os artistas do “darting”, a inovadora técnica com vinis minúsculos, ou a pesca com jigs que mal se vêem, e linhas trançadas que começam no 0.03mm e acabam no 0.08mm, os nylons que oscilam entre o 0.14 e o 0.18mm. Canas com acção de 1-7 gramas, por aí, cabeçotes de 3 gramas, ou pouco mais. Tudo é fácil e simples, a vê-los executar. A hipotética simplicidade esvai-se quando tentamos fazê-lo nós mesmos. É aí que começa o “cabo de trabalhos”. Ponto prévio: as condições de mar têm de ser razoáveis, diria boas. E tem de haver algum peixe, e no Mediterrâneo não há muito peixe. E depois disso, tem de estar em actividade. E esta é a primeira pedra de toque, um dos segredos bem guardados pelos meus amigos, o momento em que o peixe está em actividade. Fiquei estupefacto quando me disse que tínhamos de estar a pescar, sem falta, às 6.41h da manhã. A língua afiada e viperina que tenho descambou para um chorrilho de piadas e gozo que nunca mais acabavam. Porque não às 6.40h, ou às 6.42h?...ria eu, de lágrimas nos olhos.
De facto, e como sempre, o valenciano tinha razão. A verdade é que há um momento exacto em que a quantidade de luz é a ideal. E percebi isso logo de seguida. Saímos do ancoradouro onde guarda um pequeno barco de fibra, e passados 30 segundos, chegámos ao pesqueiro! Foi apenas sair da doca, e já estávamos no “melhor ponto para fazermos o tipo de pesca que te quero mostrar”…
Entendi depois a razão pela qual o funcionário da bomba de gasolina lhe perguntava: “ queres o costume, ou mais um pouco?”. O costume eram 5 euros. No fundo estava a perguntar-lhe se eram 5 ou 6 euros, isto é, se ia para o molhe sul ou molhe norte. Tudo se passa ali em frente às dezenas de pescadores de costa que fazem o mesmo: pescam durante meia hora e a seguir vão para o seu trabalho. Peixe para o dia.
Explicando a situação das 6:41h: há um momento em que a luz dos candeeiros do porto comercial de Valência se soma à luz do dia, que por volta daquela hora, começa a sentir-se. A dado momento, os milhares de pequenas sardinhas de 3 a 4 cm que entram no rio até ao limite de tolerância de salinidade na água, passam a estar visíveis. Magrinhas e assustadas, encostam à superfície em pequenos cardumes, sendo o alvo de todos os predadores do estuário, como anchovas, barracudas, robalos, palmetas, etc.
António Pradillo com uma anchova, feita com um passeante, uma amostra da Savage concebida para trabalhar à superfície. |
As 6:41h são o momento para o início de uma orgia desenfreada, o click que faz com que tudo aconteça. Durante alguns minutos, saltam peixes que comem, e peixes que não querem ser comidos. Por todo o lado, instala-se um frenesim alimentar que não dá um segundo de tréguas, não poupa nada nem ninguém. É a hora da degola dos inocentes. As anchovas trazem a boca e as goelas cheias de sardinhas acabadas de caçar.
Sardinhas pequeninas, com cerca de 3cm, aquilo que todos comem aos milhares. |
Os predadores procuram vibrações, águas mexidas, brilhos. Pescamos com passeantes ou poppers pequenos, agitando a superfície. Com paragens, arranques bruscos, simulando peixes descontrolados e a fugir de algo. Não se aplica ali o princípio de que quem corre são os cobardes e os toureiros ruins. Ali, todos correm, e quanto mais, melhor. O primeiro objectivo é fazer levantar o peixe até à nossa amostra. A seguir, é provocar a investida, e isso faz-se com técnica.
Nos dias em que lá estive, as 6:41h eram mesmo o preciso momento em que todas as condições estavam reunidas. Ao cronómetro, tudo explode de corpos em fuga e dentes que mordem. Tive mesmo de dar a mão à palmatória, e reconhecer a subtileza e sapiência de António Pradillo e Raúl Gil, dois monstros da pesca europeia. À medida que os dias vão ficando maiores, a hora vai encurtando, mas o princípio básico está lá: durante uns quantos minutos, não mais de quinze, o peixe alimenta-se em abundância, enche-se de comida. A seguir, o sol nasce, o peixe recolhe ao fundo, torna-se caprichoso, não pica. E quando não pica, os problemas começam. Aí, o material ajuda, faz a diferença estar bem equipado, mas como sempre, a técnica é um imperativo. Como costumo dizer, não é a flecha que falha, é o índio…
O autor com uma anchova feita naquele momento fatal: 6:41h |
Há que provocar as picadas e essas surgem quando imitamos na perfeição um peixe ferido, em perda, um peixe que tem as suas capacidades reduzidas.
Já sabia que eles pescam regularmente sargos e douradas com vinis, ou com jigs metálicos. Durante a minha estadia, tive oportunidade de o confirmar com estes olhos que a terra há-de comer, e de eu próprio o conseguir fazer. Com vinis minúsculos, os pargos entraram com vontade, os carapaus de bom tamanho não nos deram um segundo de descanso, e ainda alguns serras, atum que vem de fora e encosta para comer. Com o sol já alto, a pesca resume-se a umas quantas corridas de barco, a aproveitar o levantamento de cardumes de peixe miúdo, perseguidos pelos atuns, e a lançar tão longe quanto se possa, já que os peixes ao sentir as embarcações, tratam de afundar e de sair da zona. Muito difícil de fazer com barcos com pouca cavalagem, mas que ainda assim, vai dando uns peixes aqui e ali. Uma perfeita decepção as pedras a 45 metros, completamente amorfas, sem vida, com uma minúscula garoupinha de 10 cm, aqui e ali.
Pequeno pargo feito com um vinil de 4 cm branco, com cabeçote de 5 gramas. |
Durante o dia, tirando alguns pontos quentes, a pesca no Mediterrâneo é dura. Os toques são raros, a quantidade de peixe muito reduzida e tudo o que se faz é sofrido. Os cardumes de alcorrazes e carapaus atacam-nos impiedosamente, massacrando as nossas mãos com os seus espinhos afiados, que nos deixam marcas para dias. É naquelas paragens que começamos a dar valor ao que temos em Portugal, peixe, melhor ou pior, mas muito peixe.
Uma autêntica praga estas lástimas, que se lançam a tudo. |
Ao final do dia, nas mesmas condições de penumbra, o espectáculo repete-se, desta vez em condições mais difíceis, dado que pela tarde levanta-se sempre um vento incómodo, que impede os lançamentos, que dificulta até ao limite a acção de pesca. O mar protege os seus. De resto, más condições de mar e óptimas paellas à valenciana à espera dos atletas, são sempre uma mistura muito convincente para nos fazer encostar ao cais.
Último dia, última oportunidade de fazer algo de diferente: uma saída de botas de borracha e cana na mão, a atravessar o rio Pineda, a vau, com água pelos joelhos, num autêntico lamaçal, aos robalos. Um vinil sem qualquer peso, a passear à superfície, era o oferecido em troca de alguma emoção. Que não chegou. Depois de alguma insistência, e de assustarmos centenas de tainhas, zero toques. Explicou-me que a sardinha saíra daquela zona do rio, dado o vento que se fazia sentir, e a temperatura ter baixado muito. Duas semanas antes tinha feito cerca de 50 robalos na mesma zona. O António faz sempre captura e solta, o peixe é restituído à água em boas condições.
Gente boa, António Pradillo e Raúl Gil, de uma capacidade técnica só acessível a alguns predestinados. Em Julho, encontramo-nos no Senegal. A GO Fishing vai mostrar-lhes o outro lado da pesca, onde os fios de nylon de 1 mm partem facilmente, quando puxados para o fundo por “meninos” com outro arcaboiço….
Vítor Ganchinho