A pesca tem tanto de execução de procedimentos de rotina como de aleatório, de tradição e saber de experiência feito como de fé religiosa.
Os marinheiros são gente dura, fisicamente resistente, mas por vezes rebelde. Como de resto são todos os que não reconhecem o valor da força do cérebro sobre a força do braço.
Estranho seria que a pesca profissional pudesse passar ao lado de disciplinas severas impostas a todos os ocupantes do barco. Sem isso, seria impossível conseguir controlar tudo aquilo que se passa a bordo.
Cada um deve saber o que executar quando chegam os momentos críticos, a largada dos aparelhos e a recolha destes. Ou das redes.
A dita “turina”, se quiserem a faina de trabalho, começa quando a embarcação chega ao “mar de pesca”. É aí, nesse ponto determinado pelo “arrais”, ou mestre da embarcação, e só por ele, que se irão lançar os aparelhos. Diz-se deste início de actividade o “largar a caça”.
É o mestre quem decide onde e como se irá proceder. É ele quem calcula se estão, ou não, em cima do pesqueiro e faz isso utilizando instrumentos que nós, pescadores lúdicos, não utilizamos: uma bússola e um relógio.
A agulha serve-lhe para marcar uma direcção, e o relógio para calcular, pelo tempo passado, quanto falta para chegar. Pela velocidade constante do barco, sabe quanto tempo terá de navegar para chegar onde quer lançar. Como auxiliar, e para que consiga maior precisão, tem marcas de terra, as quais correspondem a enfiamentos de pontos de referência conhecidos. Assim, está-se no mar do “cabo raso” quando, numa determinada direcção, se avista o Cabo Espichel ao nível das águas; está-se no mar do “Cabo feito” quando o farol do Cabo deixa de se avistar; se se imaginar uma linha recta entre o farol do Forte do Cavalo e a silhueta leste do Castelo de Sesimbra o mar em que se está é o “Mar novo”; se a linha entre o castelo e o barco passa a um “palmo” do forte, então o mar é já o do “Farol ao canto”. A “Estrela do Norte” (Estrela Polar) é também um recurso precioso para os arraises poderem calcular o rumo para os locais de pesca, servindo de confirmação para determinarem os vários enfiamentos das “marcas de terra”: Sírio e as “Sete Irmãs”, que surgem a leste desde o “S. João” (Solstício de Verão) até às “marés do Levante” (fins de Setembro) são outras estrelas comummente usadas.
As “Duas Guias” da Estrela do Norte, que giram sobre esta, indicam pela sua posição a hora da noite. A “Estrela de Alva” (Vénus) dá o sinal de que o sol vai nascer (servindo portanto de aviso para terminar a “largada”).
Para além de uma visão bastante aguçada, os pescadores, e especialmente os mestres, demonstravam ter um sentido de orientação excepcionalmente desenvolvido.
Mesmo nas noites de nevoeiro eram capazes de encontrar as balizas que sinalizavam o local onde o aparelho estava submerso, usando apenas a “agulha” (bússola) e o relógio.
A largada dos anzóis demorava em média uma hora para cada aparelho. É chamada a “largada de avião”. Os milhares de anzóis são lançados de dentro de selhas, um de cada vez, em espaços de menos de um segundo, da ré do barco que se mantém sempre em movimento.
Iscados cuidadosamente com sardinhas salgadas, para ganharem consistência, são presas pela boca, entre as guelras e a espinha dorsal, à maneira de Sesimbra, e não pelo lombo como nos outros locais.
Depois de lançados os aparelhos e antes do nascer do sol, espera-se um tempo para “alar” aquele que foi lançado em primeiro lugar (e que esteve mais tempo “no molho, a matar”). Cada pescador tem funções específicas no acto de recolha, tal como durante a “largada”. O mestre mantém-se no seu posto, dando instruções para que as manobras decorram conforme previsto. E também para impedir que os cabos e linhas se entrelacem no leme ou na hélice.
Na água, um pequeno bote, equipado com um pequeno motor fora de borda, aproveita o peixe que se solta dos anzóis e é levado, à superfície, pela corrente.
Os “homens do gelo” têm por função quebrar os blocos de gelo armazenados nos porões e cobrir os “ensaios” com camadas de gelo desfeito, arrumando-os uns sobre os outros no porão do peixe.
Somente os barcos maiores, que pescam nas águas das ilhas ou do norte de África, Marrocos e Mauritânia, dispõem destas funções específicas.
Na pesca costeira “do alto”, é normalmente o arrais que dirige o leme e quem mais apto está a consertar o motor do barco. Quando se pesca perto da costa, em embarcações mais pequenas, o gelo não é necessário e muitas vezes dispensa-se o bote, já que os barcos têm maior capacidade de manobra e vão eles mesmos apanhar o peixe que se solta. Na maioria das vezes este peixe ou está morto ou atordoado pela subida rápida à superfície, que o descomprime e “aventura” – isto é, as tripas enchem-se de ar e fazem-no boiar com o ventre para cima (isto acontece sobretudo com a pescada, a abrótea e o peixe-espada).
O arrais nunca participa nos trabalhos da largada e do alar, nem descarrega ou transporta o peixe à chegada a terra, para a lota. A sua missão é de supervisionar o trabalho, impedir e resolver problemas e conflitos na companha, e sobretudo escolher o local de pesca, chegar lá, voltar a terra, e aí proceder à divisão dos quinhões, preparar o barco para a viagem seguinte, comprar o material, combustível e mantimentos necessários e, quando existem vagas de trabalhadores na companha, pedir informações e escolher os potenciais candidatos a integrá-la.
O cão que era utilizado no mar era da raça conhecida como o “cão de água português”, uma variante do caniche grande. Tinha por função apanhar o peixe que fugia do aparelho quando era puxado para bordo, lançando-se à água, abocanhando-o e trazendo-o de volta; os pescadores lançavam seixos na direcção do local onde se encontrava o peixe “aventurado”, para dirigir o cão para a presa. Em terra, o cão da companha ficava ao cuidado do arrais, mas era tido como pertença da companha, e “ganhava”, como todos os camaradas, a sua quota de peixe e um quarto de parte em dinheiro, o que assegurava a sua alimentação, finda a temporada de pesca.
Note-se que até à construção do molhe de abrigo, não havia a possibilidade de sair ao mar durante todo o ano; os barcos ou varavam em terra ou dirigiam-se para Cascais, que se tornava a base invernal de muitas campanhas sesimbrenses. Para o desaparecimento do cão de água português, cita-se frequentemente o facto de, ao lançarem-se à água, serem frequentemente mordidos pelos tubarões e cações que rodeavam o barco, os quais pretendiam comer o peixe “fiche” nos anzóis.
As campanhas dos barcos da pesca costeira nunca ultrapassavam os vinte membros, incluindo o “pessoal de terra”, que é geralmente constituído pelos “moços de terra” e pelos velhos que, já sem forças, não podiam ir ao mar.
Assim foi sempre até ao surgimento das embarcações maiores que efectuam viagens longas. Nestas, não é raro a companha exceder os quarenta membros, dos quais metade trabalha em terra, ganhando um quarto de parte, meia parte, três quartos de parte, ou parte inteira, conforme o estatuto e a idade, e não sendo necessariamente “moços” ou “velhos”. Actualmente, muitos filhos de pescadores – isto é, muitos potenciais pescadores jovens –, recusam-se a embarcar por períodos tão longos, a que nunca estiveram habituados. Antigamente iam porque os seus amigos também lá estavam, e havia pressões familiares nesse sentido, para que houvesse mais rendimento familiar.
O trabalho de terra todavia passa a ter preferência sobre as saídas de mar, ainda que se trate de pesca costeira. O empobrecimento da costa, a redução dos stocks de peixe, veio reduzir substancialmente os proveitos que cada um pode obter.
E aí, a emigração, a escolha por trabalhos em áreas de comércio, escritórios, etc, prevalece sobre um mundo onde é preciso gostar e ser capaz de aguentar as agruras de uma actividade desgastante. A isso respondem os marinheiros convictos com um encolher de ombros e o tradicional “a terra dá batatas”.
A distribuição dos quinhões em dinheiro, resultantes da venda do peixe, é feita da seguinte forma: duas partes, ou duas partes e meia para o mestre; uma parte para cada “camarada”; três quartos de parte para cada “velho”, o “camarada de terra”; um quarto ou meia parte para os “moços de terra”; três quartos de parte para os “moços de mar”, quatro partes para o aparelho e seis partes para o barco. Pode parecer estranho, mas funcionava assim.
Para gente que passava tanto tempo longe de terra, e por isso não podia gastar muito, sabe-se que grande parte do valor excedente era aplicado na compra de produtos de ostentação, fios em ouro, relógios, inclusive em automóveis, sendo que muitos deles não só não tinham carta como nem sabiam conduzir.
Nesta altura, eram as mulheres dos pescadores quem guardava e decidia onde e como gastar o dinheiro. O 25 de Abril veio trazer nesta área uma verdadeira revolução, com os inevitáveis excessos, com rebeliões a bordo, exigências de maiores regalias, e isso veio por fim reduzir em muito a actividade piscatória. Os mestres, acusados de serem “exploradores”, viram as suas partes reduzidas, os seus proveitos passaram a ser mais escrutinados. E os barcos deixaram de sair.
Nesta época, a pesca artesanal com “artes de anzol” praticada em várias outras póvoas de pescadores do Centro e Sul de Portugal desapareceu totalmente (casos de Setúbal e de Sines) ou passou a ter uma frota insignificante (em Peniche, dos sessenta barcos para o anzol restavam em 1980 apenas oito). A esta situação correspondiam naturalmente safras menos rendosas, perda gradual das tradições relativas ao saber do mar, e outras motivações educacionais e profissionais (a emigração em Peniche, ou o trabalho na indústria em Setúbal, em particular na Setenave, e em Sines, nas refinarias da Quimigal). Se em Sesimbra tal não ocorreu, isso deve-se em grande parte à eficácia da “arte do anzol”, a inovações como a do aparelho duplo, que garantiam mais capturas.
Até meados do século XX, e relativamente à distribuição de partes da campanha, era costume, os pescadores do alto tomarem a seu cargo as viúvas dos camaradas que morriam, recebendo elas a parte inteira que cabia ao falecido marido. Hoje isso só raramente acontece, quando um pescador morre no mar, o que é pouco frequente, a viúva recebe a sua parte durante um mês ou no máximo dois; depois, fica a viver com a pensão da Segurança Social.
As águas geralmente calmas da baía e do litoral da Península de Setúbal até ao Cabo Espichel, nunca deram demasiados desgostos. As mortes no mar foram sempre raras. Actualmente, o maior calado dos barcos minimiza as hipóteses de adornarem ou afundarem durante os temporais, e os aparelhos transmissores de bordo, presentes e obrigatórios por lei em todas as embarcações, reduz muito o perigo de, quando o barco sofre grandes danos durante os temporais ou se avaria, os pescadores não serem socorridos por outros.
A expressão “a viúva vem abaixo”, que era usada até aos anos sessenta, referia-se não ao valor a pagar como pensão de viuvez, mas sim ao partir do mealheiro colectivo da campanha do barco, onde eram guardados os dinheiros a dar para a festa da vila.
Vamos continuar amanhã a espreitar este mundo da pesca profissional.
Vítor Ganchinho