A PESCA DA SARDINHA

Todos nós já iscámos com sardinhas, quase todos nós as comemos ao almoço, assadas na brasa. Mas poucos sabem na verdade como se processa a sua pesca, e menos ainda como era feita no século passado.
Podemos socorrer-nos de inúmera documentação antiga, maravilhosos registos feitos por quem sabia daquilo que escrevia, e que hoje tão precioso é, para as nossas e para as gerações vindouras. É muito importante que se guardem os textos antigos, porque eles encerram em si ensinamentos que são intemporais. É isso que vamos ver hoje, aqui no blog: como se pescava, e pesca, à sardinha.
Quando não havia sondas, a solução era lançar de forma mais ou menos aleatória, e esperar que o lance fosse de sorte. Não era essa a opinião dos mestres antigos, que não atribuíam propriamente à sorte a ciência com que encontravam os cardumes.
Mas pese embora a certeza com que falavam, haveria seguramente menos rigor no acto. Hoje em dia, localizam-se facilmente os cardumes, as sondas dizem-nos tudo, e a pesca está muito facilitada.
A armadilha é montada com um conjunto de panos de rede unidos, de malha muito fina, por vezes com mais de uma centena de metros. O processo, complexo, consiste em, uma vez detectado um cardume de dimensões razoáveis, lançar uma candeia ao mar, no local onde ele foi detectado, e “fazer-lhe o cerco”, ou seja começar a largar a rede, em cuja extremidade se prende um cabo ligado a um bote que é lançado ao mar em simultâneo com o aparelho. A traineira arranca em grande velocidade, rodeando o cardume e fechando o “cerco” junto ao bote. Imediatamente, o grande guincho, à ré, começa a funcionar puxando as “aranhas”, os cabos que se prendem à extremidade inferior da rede, para que esta se feche formando um saco (o “copo”) onde o peixe fica aprisionado. Eu já vi utilizar esta técnica e digo-vos que, para um pescador de linha, para quem faz um peixe a cada lance, é algo que nos aperta o coração.
Ver a quantidade de peixe que morre numa só largada de rede é algo que nos deixa constrangidos. Mas falamos de pesca profissional, e por isso... continuemos.




Quando a rede está quase completamente colhida, o bote traz de imediato uma quantidade significativa para terra. Muitas vezes, quando há vários barcos a operar na mesma zona, esta sardinha é a única que consegue ser vendida por preços razoáveis. A que chega em último enfrenta as vicissitudes de poder haver, ou não compradores suficientes para ela, e a baixa de preço que isso acarreta. É entendível, porque as sardinhas em grandes quantidades desvalorizam bastante, por excesso, mas a primeira a chegar é arrematada por melhor preço.
Com mais tempo, e acabadas de recolher que são as redes, a massa prateada do cardume começa a ser descarregada para o barco maior. E daí para terra, chegando muitos peixes ainda vivos, dada a proximidade à costa dos pesqueiros de sardinha.




Os pesqueiros de peixe espada, um pouco mais longínquos, são também muito conhecidos: O Pistarolas, o Cabo Feito, a Fundura Achada, os Portais, o Terras a Meio, o Mané-Zé, o Cabeça, o Guião, o Tranglomares, o Bombaldes, o Borda Atravessada, o Pombal, o Trezentos, o Bateiras e o Guia-à-Neves; para norte do Bugio ainda se contam o Risca Abandonada, o Risca, o Recovo, o Janelas a Meio, o Janela Aberta. Estes são os “mares do alto”, mares do peixe-espada e da pescada, conhecidos há vários séculos pelos pescadores de Sesimbra. Baldaque da Silva não os cita no entanto na sua obra, “O Estado actual das pescas em Portugal”, (Baldaque da Silva, 1891). Esta obra, extremamente detalhada, apresenta o primeiro, e até hoje mais completo panorama das técnicas e da economia da pesca, das póvoas marítimas e das características e hábitos das espécies piscícolas da costa portuguesa.
A pesca da sardinha faz-se de madrugada (o “aviso” de saída costumava ser dado para as nove ou dez horas da noite, num dos largos fronteiros à Fortaleza de Santiago), visando principalmente a sardinha e a sarda, mas também o carapau e a cavala. Estes são pescados no primeiro lance, porque a sardinha não “terreia” antes das duas ou três horas da manhã.




Através do eco da sonda, é possível saber não apenas a profundidade (a traineira opera normalmente entre as dez e as vinte braças) e o tipo de fundo, mas também que peixe está por baixo do barco, conforme a densidade e a profundidade da sombra do cardume projectada no gráfico. Preferencialmente, os fundos utilizados são de areia, pois a arte corre muito menos riscos de sofrer danos. Quando as redes são largadas sobre fundo de pedra, não é raro que se percam troços de pano, e que se comprometa assim o resultado da pescaria.
Alguns mestres, mais sabedores, faziam-no ocasionalmente sobre as rochas. “Tem os tomates negros”, dizia-se deles. Isso quer dizer que o mestre “sabia muito” acerca do tipo e forma da rocha, calculando as possibilidades de conseguir um bom lance com um mínimo de estragos na rede.
Apesar da progressiva escassez de sardinha na costa portuguesa, ainda assim e desde o início dos anos quarenta do século passado, a pesca da sardinha em traineira sempre proporcionou boas condições económicas a quem as praticava. A existência de mais e mais restrições tem vindo a acabar com o negócio.
É uma “arte” sempre praticada perto da costa, com poucos custos em combustível, mas ainda assim com a necessidade de muita mão de obra e os consequentes custos acrescidos.
Enquanto as águas não arrefecem totalmente, a sardinha mantém-se junto à costa, mesmo de Inverno. Esta proximidade a terra é aquilo que permitia um tipo de pesca à época muito popular, e que hoje apenas é feito para turista ver: a arte da “chincha”, ou “arte do caneiro” (uma rede em copo, praticada no areal) que é um modelo reduzido da “arte de xávega” ou rede de arrasto para terra, comum a todo o centro do país. A Nazaré continua a ter a fama de ser a terra onde melhor se pratica esta arte. Se outrora as redes eram puxadas por homens e inclusive bois de trabalho, hoje são os tractores que o fazem.
Na região de Sesimbra, a arte de xávega faz-se sobretudo em Alfarim, mas também noutros pontos do extenso areal a norte do Cabo Espichel, até à ponta da Caparica. Estas eram então artes decadentes, ou melhor, sem muita implantação e tradição. Eram praticadas por pescadores pobres, na maioria, indivíduos de fora da vila que se mantiveram em Sesimbra após o desaparecimento das armações para onde vinham trabalhar no Verão, vindos do Algarve, Alentejo e Beira Baixa. Tratava-se de um pequeno grupo relativamente auto-marginalizado, vivendo em cabanas de madeira na encosta do Caneiro, onde cultivavam minúsculas hortas. Estas artes não exigem um conhecimento especial do mar, dos fundos ou dos hábitos dos peixes. São técnicas aleatórias, “de lavradores que se meteram um dia a pescar” (Brandão, 1980). A pesca de arrasto para terra, ou “chincha”, aproveita a circunstância de que certas espécies de peixe terreiam de noite, ficando próximo da arrebentação das ondas (no Inverno aproximam-se ao fim da tarde) e a sua presença é assinalada pela mudança no voo das gaivotas. A “sacada” operava na baía, lançando os pescadores de dois barcos uma rede que se afunda, e “engodando” (de dia), ou “alumiando” (de noite com “fogaréus”, ou “gambiarras”) para atrair o peixe. “Sacava-se” posteriormente para a superfície a rede quando se juntavam cardumes em número razoável.




A “arte da xávega” (de que a chincha é um modelo reduzido), que é praticada no litoral centro do país até à Costa da Caparica e em alguns pontos do Alentejo, fazendo-se o arrasto para o areal, foi regularmente usada em Sesimbra até o fim do século XIX. Consistia num conjunto de redes que acabava num “saco” central de malha fina e exigia a participação de duas barcas de tipo bateira ou lancha. Num dos barcos era preso um cabo que se ligava às redes e ia sendo lançado em semicírculo por uma embarcação mais pequena. Depois, eram lançados os várias panos das redes (as “mãos”, a “boca” e o “saco”) e voltava-se com outro cabo para junto da barca maior. Então, as redes afundadas eram puxadas para terra por uma companha de trinta homens. Era uma arte que se praticava em fundos arenosos, junto à costa (Cruz, 1966). A arte da armação, que era usada para a pesca da sardinha, utilizava um conjunto de panos de rede que se “armavam” (colocavam) verticalmente, no mar de dez braças, de modo a barrarem o caminho ao peixe e a encaminhá-lo para um parque vedado (em três secções: o “copo”, o “bucho” e a “legítima”) de malhas diferentes, com o objectivo de levar o peixe ao copo para ser colhido pelo grupo de pescadores que se encontravam em três barcas que rodeavam o copo. Esses panos de rede eram mantidos verticalmente com o auxílio de bóias à superfície e de fateixas na parte inferior. Sendo um conjunto fixo, dependia da passagem regular de peixe por locais certos. Destinava-se a espécies migratórias e o objectivo principal era a captura da sardinha, mas apanhava também sarda, carapau, tainha e a muito apreciada corvina que ia desovar no estuário do Sado. As toninhas (golfinhos comuns) que se infiltravam na rede atrás dos cardumes eram apanhadas com croques e arpões.




A safra da sardinha tem alguns meses de defeso (na altura da desova e de criação), e isso tem, pese todos os problemas, ainda assim contribuído para a manutenção de um stock de peixe minimamente razoável.
Para quem pesca à linha, é penoso pensar que, não fora a pesca profissional, teríamos muito mais toneladas de sardinha na costa, e por isso mesmo, muito mais possibilidades de pescar os predadores que a procuram.
Haveria muito mais robalos e corvinas, por exemplo.
Estamos habituados às dificuldades e não será por aí que vamos deixar de pescar.



Vítor Ganchinho



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