Não são de hoje os lamentos dos nossos pescadores acerca do empobrecimento dos stocks de peixe da nossa zona costeira. Iremos pagar durante décadas a sobre-exploração feita pelos arrastões, que, mais do que o peixe que matam, destroem os fundos onde esse peixe se alimenta.
Dizia Raúl Brandão algo como: “Cultivar o mar é uma coisa – é ofício de pescadores; explorar o mar é outra coisa – é ofício de industriais”. Dizia ele também: “Temos o condão de estragar tudo, empobrecemos as gentes da beira-mar, para enriquecer meia dúzia de felizes”.
Teremos sempre dificuldade em entender a riqueza de peixe que já existiu na baía de Sines, Setúbal e Sesimbra. A introdução de redes de emalhar em nylon veio dar um duro golpe no ténue equilíbrio que existia no início do século passado.
Uma pesca sustentável faz-se a partir de artes de anzol, em que o peixe que morre é o que engole a isca apresentada. E o sistema funciona, quer para artes mais modestas, de pescadores isolados, ou a trabalhar a dois, ou para métodos de pesca mais industriais, operados por dezenas de pessoas, em embarcações de maior calado, em zonas mais longínquas. Não sei se têm a ideia de que a partir de Setúbal e Sesimbra, e falamos dos anos oitenta, se ia pescar a locais tão distantes como o banco de pesca do Gorringe, (o dito “Garrincho” pelos sesimbrões), ou aos mares do norte de África, Marrocos e Mauritânia.
E que pescavam? Um pouco de tudo. Com os mesmos aparelhos de anzol simples, espécies mais costeiras como a abrótea, o pargo, o goraz, o “charréu” (carapau do alto ou chicharro mouro), a chaputa, ao cherne e às “espécies da fundura”, como o peixe-espada, a pescada, o“salmonete da fundura”, o imperador, o congro (ou safio), o tamboril e a tintureira. Tudo ficava no anzol. Os aparelhos lançados em mares de grandes profundidades (sempre para além das cem braças) ficavam a roçar o fundo onde os peixes se deslocam. Por sua vez, a “desportiva” é um processo de pesca que utiliza apenas um anzol, de grandes dimensões, iscado com uma cavala, um chicharro grande ou um robalo, e que serve para pescar o atum e a albacora.
Na época própria, quando os peixes se dirigem em grandes cardumes para “a desova” no Mediterrâneo – ou seja quando vêm “de direito” (termo empregue igualmente nas armações do atum no Algarve, que o pescavam em Abril a Junho, e também ao regressar ao oceano em Setembro-Outubro, mais magro; nessa altura pescavam-no “de través”; os pescadores de Sesimbra pescavam o atum apenas no pesqueiro do “Garrincho” (Gorringe) e na Madeira, mas até meados do século XX o atum e a albacora “iam terrenhos”, contornavam a costa atlântica de Portugal, passando ao largo do Cabo Espichel e originando uma temporada própria para o efeito. E aí, pescavam-se bem próximos de terra. O atum encosta se sentir que há cardumes de cavala ou carapau disponíveis. Fazem raides muito rápidos, envolvendo os pequenos peixes em círculos cada vez mais apertados, e quando estão em bola, compactados, atacam de todos os lados, fazendo mortandades de centenas de quilos de peixes. E repetem o processo, vezes sem conta, até se darem por saciados.
Por vezes é possível vê-los a não mais de uma centena de metros da costa.
Como se pescava ao atum na altura? De um dos bordos, a companha dos homens bate a água com remos e paus enquanto vai sendo lançado engodo (tripas e pedaços de pequenos peixes), esperando a aproximação de um cardume “à luz da água”.
Quando este começa a passar, em grande velocidade, lançam-se as “canas”, em que vai preso, por meio de um fio grosso de três ou quatro braças de comprimento, “aramado” (com arame de aço) na ponta, o anzol iscado com um peixe, na esperança de que o atum “fisgue”.
O processo era meio artesanal, mas funcionava. Hoje, as técnicas evoluíram, mas infelizmente temos muito menos peixe para testar a força dos nossos braços. Vamos ter atuns na costa dentro de uns dois meses, se abrirem bem os olhos vão vê-los. Nem tudo o que salta à superfície são... golfinhos.
Podemos hoje conseguir, porque temos sondas, alguns peixes vivos que podemos manter a bordo, num recipiente próprio para o efeito. Com um oxigenador de razoável capacidade, é-nos possível estar preparados para a eventualidade dos atuns nos passarem perto. Mas acham que foi sempre assim? Nem pensar.
Se é verdade que hoje não temos dificuldade em conseguir sardinha durante todo o ano, nem que seja congelada, nem sempre foi assim. Temos a tendência para olhar estas questões tomando como ponto de partida aquilo que nos está disponível hoje.
A verdade é que em Abril/ Maio não há sardinha nenhuma junto à costa, as águas estão demasiado frias para elas. E não esqueçam que não havia frigoríficos.
Conseguir isca era um problema complicado de solucionar. Havia pouca, e era racionada.
Por outro lado, Sesimbra dedicava-se em larga escala à “arte do aparelho”. Este pressupõe o dispêndio de grandes quantidades de isco de sardinha (ou savelha, ou petinga, ou ainda sarda) salgada.
Ora, a salga da sardinha para isco é um fenómeno recente (apenas começou a ser feito desde os anos trinta do século passado). Se hoje pode ser conservada no sal e no gelo durante o tempo em que não é permitida a safra do sardinha, antigamente o problema do abastecimento do isco às artes era por vezes de difícil solução. Por isso mesmo, e em último caso, recorria-se a outras espécies (carapau, chicharro, cavala ou mesmo tintureira, cortados em pequenas postas e colocadas nos anzóis).
Quando multiplicamos esta forte e diária demanda por muitas dezenas de embarcações, e centenas de quilos para cada uma, fácil é chegar à conclusão de que conseguir isca era trabalho difícil.
Entendam a dificuldade de deslocações por estrada, os transportes não eram o que são hoje, e por isso, ir a Peniche, ou a outro lugar comprar isca era impensável.
Acrescente-se que a pesca do anzol se destina, em Sesimbra, particularmente ao peixe-espada, de que os pescadores são exímios “caçadores” conhecendo os seus hábitos, migrações, profundidades variáveis que percorrem, locais preferenciais de passagem, etc.
Enquanto durava a safra nas armações, era costume as barcas do anzol dirigirem-se às da armação e pedir a sardinha que iscavam nos aparelhos, a bordo.
As gentes das armações mantinham os atuns em cativeiro, engordando-os com peixe capturado na zona. Isso obrigava-os a ter permanentemente em stock isca viva.
Houve várias tentativas de substituição da sardinha por iscos artificiais, mas sempre fracassadas (Cruz, 1966). Verdade que os artificiais não tinham a qualidade e realismo que têm hoje. Não nos é difícil conseguir uma picada de um peixe com um jig, uma amostra, um vinil.
Mas na altura não existiam.
As espécies mais vendidas em mercados de peixe, eram caçadas com os tradicionais aparelhos duplos mas a maiores profundidades e em fundos rochosos, de preferência, ou então com o aparelho simples para peixes dos abismos.
A pesca assim praticada, apesar de muito trabalhosa e sem possibilitar fortunas, ao contrário do arrasto e de outras técnicas modernas, confere ao peixe um rótulo de maior qualidade, devido ao facto de a captura ser feita individualmente (em cada anzol, pesca-se um peixe) e o peixe ser imediatamente limpo e preparado ao ser alado. O seu aspecto é superior, nunca vem “partido”, “escamado”, ou estragado.
Os pescadores argumentam hoje que a arte do anzol é um método de pesca ecologicamente positivo, na medida em que apenas o peixe com o tamanho e idade suficientes é fisgado. E têm razão!
As redes de arrasto pelo fundo, para além de destruírem grande parte do peixe para venda, amassam-no, devido à pressão a que o sujeitam no interior da rede cheia, em movimento.
Também matam a criação, isto é, o peixe ainda não desenvolvido, abaixo das medidas mínimas, que não consegue escapar da malha fina da rede.
Para além disso, revolve, “rapa” os fundos de algas, desequilibrando todos os ecossistemas subaquáticos por onde passam.
Quem precisa de arrastões? Que falta fazem artes de pesca que ganham hoje, para meia dúzia de pessoas, comprometendo o futuro de todas as gerações vindouras?
Vítor Ganchinho