AS DOCAS - REFLEXOS DE ZONAS PROTEGIDAS

Têm um pouco de tudo.
Dos peixes mais desprezíveis, aqueles que nem nos passa pela cabeça querer pescar, aos pesos mais pesados da nossa costa, aos que procuramos todos os dias longe, e que nos fazem gastar rios de combustível.
Eles estão ali, perante nós, a assistir à nossa partida para o mar.
De tudo um pouco é possível encontrar nas nossas docas e marinas, verdadeiros expositores do melhor que temos para pescar.
Se pensarmos bem, as marinas e docas estão feitas para eles. Abrigam uma enorme variedade de embarcações, de pequenos botes a iates, de veleiros a potentes barcos a motor. E têm pontões e passadiços, estruturas fixas onde se irão alojar os inevitáveis mexilhões, cracas, etc. Ostras e outros pequenos organismos agarram-se ao substrato duro fornecido pelas marinas. E onde há comida…há peixe.

As marinas são muito mais que barcos e bombas de gasolina, postes e passadiços. São todas elas sem excepção um mundo replecto de vida. Inúmeras espécies marinhas chamam-lhe casa.
Sabemos ser uma “casa” com imensos riscos. Até que ponto compensa ser peixe num espaço onde vive e circula tanta gente?
Penso que será interessante para os leitores do blog passearem um pouco por este texto e perceberem quais os prós e contras que um peixe tem em viver numa marina. Afinal de contas, o que representa uma marina para os peixes que nela decidem entrar?
Ou será que muitos deles já nasceram lá dentro?


Sabemos que vivem nestes espaços peixes que nos são indiferentes, as salemas e as tainhas, mas também é possível ver outros que habitualmente contam, e de que maneira, nas nossas saídas de pesca habituais. Não os vemos, mas por baixo há salmonetes, raias, linguados, solhas, etc.


As marinas são aquilo que podemos definir como um habitat “viável”.
São estruturas criadas pelo homem, mas uma lapa, um mexilhão, não têm espírito crítico para entender se estão em propriedade privada. A partir do zero, todas as estacas, todas as estruturas flutuantes, são colonizadas, dia a dia, por milhões de micro-organismos, que irão criar por si uma cadeia alimentar. Um dia, o topo dessa cadeia alimentar serão os peixes nobres que nós pescadores tanto perseguimos lá fora.
Aquilo a que devemos atender é à oferta de uma estrutura que nós colocamos à disposição dos nossos peixes. Tudo começa pelas algas, os crustáceos, etc, que chegam e começam a instalar-se.
Um dia, os cascos dos barcos terão algas agarradas. E aí, as tainhas passam com o seu lábio inferior recto e afiado, a raspar o casco.
Seria um trabalho meritório, se o conseguissem fazer na perfeição. Todavia, sabemos que não é assim, as algas são efectivamente um problema para todos os proprietários de barcos. Implicam custos.
Se por um lado é “nature friendly” deixar algas para serem comidas pelas tainhas, por outro sabemos que a sua existência desacelera os barcos, retarda-lhes a marcha, aumenta-lhes bastante o consumo de combustível.
E isso significa ser pouco amigo do ambiente, porque implica maior consumo de combustíveis fósseis. Temos numa mão a vontade de ajudar os peixes, deixando-lhes comida disponível, e temos na outra mão a necessidade de consumir menos gasolina.
Mas não se ficam por aqui as contradições da ecologia. Muita gente adopta um estilo de vida nómada, passeia de país em país, a bordo sobretudo dos seus veleiros. Nem todas as pessoas utilizam sabonetes, ou detergentes amigos do ambiente.
Temos pois uma situação em que a qualidade da água será prejudicada. Os productos não bio-degradáveis irão funcionar como venenos, como corrosivos e destabilizadores para a micro-vida existente, da qual se alimentam os peixes.
A gestão de resíduos é um dos calcanhares de Aquiles destes vulneráveis habitats. Porque depende em exclusivo da acção do homem, da sua consciência, e sabemos o que isso quer dizer relativamente ao impacto no ecossistema.
A imagem que temos da saúde dos peixes que vivem nas marinas não é a melhor. Nem podia ser, poucas pessoas serão capazes de apostar na sua qualidade. Há quem coma os peixes capturados (!) a coberto da noite, mas acredito que o fazem por pura inconsciência, sem ter a noção da quantidade de problemas que daí podem advir. E há quem os venda, a quem não sabe da sua origem.




A quantidade de barcos ancorados, os cabos estendidos a meia água, os estreitos intervalos entre embarcações, e o natural pudor que deve acompanhar quem se diz de pescador, protegem milhares de peixes que encontram nestes espaços “protegidos” o seu lar, o seu pedaço de mar sem redes e armadilhas. Não será o local mais fácil de pescar, as estruturas defendem com as suas arestas e superfícies abrasivas os peixes com maior vigor. E, grandes ou pequenos, não deviam ser sequer ser pescados.
As marinas são espaços que estão replectos de peixes, por vezes de pesos respeitáveis, e onde, a meu ver, não faz sentido que alguém pesque.
Sei que a coberto da noite algumas pessoas o fazem, mas isso decorre do inevitável “desenrascanço” que corre nas veias portuguesas. Onde há algo que vale dinheiro, há gente que aparece para o sacar.
De referir que a lei é clara nesse sentido: é proibido pescar dentro de portos e marinas. Ponto final.
Pessoas a lançar chumbadas para dentro de barcos, a irem lá dentro para desencravar amostras etc, …e a invasão de privacidade de quem paga para ter protegidas as suas embarcações, serão motivos suficientes para isso.
Não deixa de ser curioso que seja nestes espaços, normalmente pontos de partida para as nossas pescarias, que aparecem os peixes que gostaríamos de ver e pescar lá fora.
Grandes sargos, robalos, douradas, lírios, e as inevitáveis salemas, pampos, tainhas, safios, e peixe miúdo com fartura, que utiliza os espaços para se proteger dos predadores do exterior. Não resulta.
Afinal os caçadores de miudezas passam a ser, por isso mesmo, por terem comida em abundância, elementos residentes.
Se nos alongarmos um pouco nas nossas visitas a marinas e portos marítimos, e chegarmos aos Açores ou Madeira, vamos encontrar outros peixes não menos interessantes: pargos, badejos, vejas, bicudas, pequenos meros...
A alimentação está tão garantida quanto está fora das docas. São espaços onde os mexilhões abundam, debaixo das estruturas metálicas, no casco dos barcos menos cuidadosos com as pinturas “anti-fooling”, e nos cabos que inevitavelmente acabam por estar lançados dentro de água. É muito comum ver os peixes a alimentarem-se deles, basta que alguém dedique meia dúzia de minutos e vai conseguir vê-lo em diversos pontos à sua volta. Sabemos que debaixo de água podemos ter caranguejos, esponjas, camarões, peixes e também chinelos velhos, latas de conserva abertas, pentes de plástico.
Não tenhamos dúvidas, por baixo dos barcos, tudo está cheio de vida. Vermes, crustáceos e moluscos fornecem alimento a muitos peixes. As águas rasas estão repletas de plâncton e são uma importante área de berçário para peixes jovens.
Estes peixes juvenis serão alimento para outros seres que chegam a reclamar a sua quota parte: os chocos, e as lulas, pela calada da noite. Mais uma vez, aqueles que comem as lulas irão aparecer... falamos de grandes robalos, pois sim.


Estes dois peixes são para quem tem bons olhos. A meio da foto, um pouquinho mais acima, estão duas douradas de 2 kgs…a passar quase incógnitas...


Em resumo, estes espaços são abrigos de peixes e assim devem continuar, em toda a essência da palavra: a ser abrigos.
Nada mais que isso.



Vítor Ganchinho



2 Comentários

  1. Belo post. Lembro-me perfeitamente da marina que visitei em Gibraltar. Fiquei estupefacto com a quantidade e a qualidade do peixe que se via a vaguear entre os barcos, desde douradas kileiras até lrios muito grandes a caçar pequenos peixes reis. Sargos grande no meio de cardumes de dobradas e até um robalo de uns 3 kgs vi a passar calmamente como numa rotina de patrulha. Belos sitios de proteção ao peixe, e bastante importantes, porque se o peixe fizer desse local residência temos ali uma fonte de nova população que quando o peixe crescer grande parte dele sai da marina e entra no ecosistema da ria ou do mar. Na figueira da foz temos um caso desses, onde uma população de douradas reside na marina e em certas marés sai até ao locais legais de pescar para comer. Muitas douradas que se apanham na figueira nasceram ou fazem parte dessa população da marina.

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    1. Bom dia André Matos

      Penso que tem toda a razão. Não tenho dúvidas de que, ao ler o seu texto, entendeu a ideia do artigo, e o alcance dele.
      As marinas, (bem como outras zonas: portos de pesca, cais de desembarque de passageiros, ais comerciais de mercadorias, etc), são pontos de permanência de peixe que se sente protegido e por isso mesmo ali fica.
      Aquilo que viu em Gibraltar, é uma constante em muitos outros lados. Seria importante não perturbar esses peixes porque, como diz e bem, serão eles a reproduzir para um dia mais tarde termos peixes nas nossas zonas de pesca.
      O André Matos entendeu na perfeição o intuito do artigo. Valeu!

      Um grande abraço e obrigado pelo seu comentário.

      Vitor

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