UM DIA É HOJE

Sabemos se gostamos mesmo muito de uma amostra quando, com a casa totalmente em chamas, e, já perto da porta da rua, e da salvação, voltamos atrás no meio do fumo, da aflição e das lavaredas, vamos à mochila da pesca e, no meio de todas as outras, retiramos uma para a levar connosco na fuga. 

Essa é a especial. Apertamo-la muito contra o peito para que, pelo menos aquela, a nossa favorita, não arda. O sentido quase religioso que devotamos a uma amostra em que acreditamos, o que sentimos por aquele pequeno objecto que nos propicia tantos dias de pesca inolvidáveis, não tem uma explicação minimamente racional. Olhamos para ela e sentimos algo. São emoções fortes, são experiências positivas, são memórias que marcam a nossa vida de pescadores. Há indiscutivelmente detalhes em alguns equipamentos de pesca que raiam o místico, o inexplicável. Têm qualquer coisa de diferente, algo que nos aproxima dos deuses do Olimpo.

Sem dúvida, uma cana, um carreto, e ainda mais uma amostra, ou um jig de estimação, podem ser objectos de culto. Os artificiais prestam-se muito a isso.  Mas também temos o oposto, aqueles que odeiam a ideia de pescar com algo mais que não sejam as suas minhocas. Há pessoas que não acham mesmo graça nenhuma a pescar com amostras / jigs, porque não acreditam na sua eficácia. São pessoas que fizeram todo o seu percurso, por vezes de dezenas de anos sucessivos, a pescar apenas com iscos orgânicos. E que ficarão desolados no dia em que sair uma lei em Diário da República a proibir a utilização de iscos naturais, por razões ligadas à preservação de alimento para peixes juvenis, sobretudo em estuários de rios, e óbvias alterações ambientais provocadas por quem remexe os fundos, e os estraga, pondo em causa alguns dos nossos sagrados santuários de criação de peixes. 

Se dúvidas existirem quanto a este ponto, vão ver as traineiras a utilizar ganchôrras à saída do Sado. Vejam o que fazem aos areais todos os dias. Vejam o resultado desse arraste. Mergulhem lá abaixo e vejam o estado em que ficam os fundos. 

A bordo das traineiras, espreitem para as caixas de separação de navalha. É aí que se juntam milhares de organismos mortos pela compressão a que são sujeitos nas redes de malha apertada e resistente. São bivalves, são caranguejos, búzios, e tudo aquilo que faz da areia o seu ambiente de vida. A quantidade de “desperdício” que cada uma dessas embarcações gera diariamente é significativa. Porque é apenas “by-catch” sem interesse comercial, é lançado ao mar, como lixo. Mas mesmo restituídos de novo ao mar, depois de partidas as conchas, esses animais morrem inevitavelmente. Os ferros das ganchôrras arrancam dos fundos, partem, esmagam e matam muita vida. Todos os dias. Exportamos para Espanha grande parte dos bivalves, sobretudo navalha e alguma ameijoa, que ficam em condições de serem vendidos. Muito há a fazer em relação a este tema. 

Por isso mesmo, a pesca com artificiais acaba por ser uma resposta directa a essa situação. E resulta. As capturas não deixam de se fazer, os peixes reagem positivamente ao estimulo de algo que passa perto, a imitar um peixe vivo. Pecar com iscos naturais irá resultar sempre, por ser em rigor aquilo que os peixes comem todos os dias. Mas não convém subestimar as potencialidades da produção humana. O sucesso dos artificiais é algo que é demonstrado no terreno, de norte a sul do país, e por isso tem vindo a ganhar mais e mais adeptos. Esses são aqueles que já estão ganhos para a ideia de pescar com algo, um pequeno objecto, que retiram de uma pequena caixa. E porque sabem que é possível, não têm dúvidas.  

E há os outros, os curiosos. Gostam de experimentar tudo o que existe de novo, consequentemente arriscam a pescar com amostras, ou o que seja. São aquelas pessoas que sistematicamente param na berma para ver um desastre de automóvel.


Paulo Braz, com um robalo feito com um jig da marca Deep Liner. 


Amostras, jigs ou vinis, os artificiais vieram para ficar. Basta-nos saber como tirar partido das suas potencialidades. Não há amostras milagrosas, mas há amostras mais indicadas para esta ou aquela situação. Temos é de saber qual é a boa! E para isso, temos de saber de pesca. Se alguém vos disser que saiu um génio de uma garrafa e tinha a amostra X na mão, por sinal super boa, não acreditem. Os génios não pescam. Quem pesca somos nós, pessoas normais. 

E no leque de pessoas normais, há algumas que dedicam a sua vida a um fenómeno que se chama pesca. E que por isso mesmo, progridem muito, passam a ser capazes de encontrar soluções para fazer peixes onde e quando todos os outros só veem impossibilidades. Se pescamos a profundidades mais significativas, é natural que se escolha um jig. Desce mais rápido e precisamos disso. Mas também podemos optar por pescar cá em cima, na primeira capa de água.  

Fazer pesca spinning não é mais que aproveitar os momentos em que o peixe está mais próximo da superfície, para lhes lançar uma amostra que imita um pequeno peixe em movimento. As horas boas são aquelas em que a maioria das pessoas está em sua casa: logo de manhã cedo, ao raiar do dia, ou ao final da tarde, ao crepúsculo, quando o sol se põe. Se eu tivesse de escolher um momento ideal, seria indiscutivelmente de manhã, pela fresquinha. Ou não fosse verdade que “o pássaro madrugador é aquele que encontra e come a minhoca”. 

Temos uma tendência nata para querer impôr o nosso relógio próprio a tudo aquilo que nos cerca. Porque temos um ritmo biológico natural, de bichinhos diurnos, custa-nos sair dele, da nossa efectiva zona de conforto, e passar a outras regras. Queremos as nossas. Impomos a tudo e todos o que mais nos convém, e estranho seria que isso não acontecesse em relação à pesca e aos peixes. 

Acontece que neste caso, queremos empurrar a comer, leia-se obrigar a morder os nossos jigs ou amostras, um ser que se rege por diferentes regras. E que não as pode alterar porque isso nos convém. Come quando quer, pode, e tem melhores condições para o fazer. Está biologicamente formatado para seguir as suas leis naturais, e não aceita as nossas regras. Assim, teremos de ser nós a adaptarmo-nos a estes pequenos bichinhos. Os peixes têm relógios biológicos que são algo previsíveis, para quem os conhece. É verdade que sim. Mas têm vontade autónoma, e nem sempre seremos capazes de entender a enorme quantidade de factores que contam no momento final da decisão: comer ou não comer. 

Amostras/ jigs com melhor design, melhores características técnicas, mais próximos da realidade que o peixe conhece, ajudam. Quanto mais pontos de identificação a nossa amostra tiver com uma presa habitual, melhor.  E isso não passa necessariamente apenas por cores, tamanho ou formato. Também a animação que conseguimos imprimir-lhe conta, e quantas vezes é mesmo aquilo que mais conta. 

Se olharem para um jig …”às riscas” não conseguem vislumbrar nele nada que se assemelhe a uma presa natural. Todavia, ele é impiedosamente atacado pelos peixes. Logo, a “imagem” simples do jig não é decisiva.  Dou-vos exemplos que explicam este ponto de vista: 

   


Estes jigs super ligeiros da Xesta funcionam bem. Dão peixe. No entanto, dificilmente lhes reconhecemos quaisquer parecenças com peixes nossos conhecidos. Aquilo que temos aqui são brilhos, são formas, são movimentos provocados que emitem vibrações, é um tamanho, uma deslocação. Algo no meio disto tudo irá fazer o peixe morder. 

Um dia entenderemos que os peixes procuram mais que uma forma, uma cor, um brilho, um movimento, uma vibração, um detalhe. É tudo junto. Não é apenas um factor, são todos em conjunto. E isso explica que jigs que nada têm a ver com uma presa possam ter tal nível de eficácia. Mas há mais. 

A “mão do mestre”, a experiência de quem maneja a cana, o olho clínico de quem observa a água, a linha, a movimentação do peixe pelos fundos, também contam. O ritmo a que se trabalha o jig, a animação que lhe damos, a precisão que imprimimos a certo tipo de movimentos nos momentos certos de cada camada de água, (ensino isso a quem sai comigo nos cursos de pesca), pode ser mais importante que a  cor da peça, ou mesmo que a forma. 

 


Quando chegamos a uma zona de pesca, há factores que nos ajudam e outros que nos prejudicam. Ser discreto, não dar nas vistas, leia-se fazer ruídos potencialmente ameaçadores para os peixes, ajuda. Costumo parar o barco umas centenas de metros antes do ponto onde quero começar a pescar. É aí que irão ser feitos todos os preparativos de equipamento, é aí que as geleiras serão colocadas nos seus sítios, que as canas vão ser armadas com amostras ou jigs. 

Todos os ruídos de arrastar isto e aquilo, muda de posição, etc, são feitos nesse momento. A seguir, queremos discrição, silêncio, queremos estar integrados naquilo que é a natureza no seu estado puro, sem interferência humana.  No fundo, no comportamento natural do peixe. E os jigs descem e ferram peixe.  Os entusiasmos excessivos, os facilitismos, os ruídos de caixas a cair no fundo, de canas a bater, resultam em capturas sumidas, mirradas.  Nunca poderemos contabilizar a quantidade de peixes que não morderam à conta de asneiras feitas por nós. Esse é um segredo guardado pela natureza, mas posso dizer-vos o seguinte: saio com 3 ou 4 pessoas no barco, e visito uma pedra. 

No sítio certo, sobre as zonas de querença do peixe, alguém deixa cair o cabo da cana sobre o barco, alguém resolve arrastar a geleira para outro lado. E não entra peixe. A sonda marca actividade no fundo, mas nada de valor aparece. No dia seguinte, com condições idênticas, vou sozinho ao mesmo sítio. Faço aquilo que tem de ser feito, sou discreto, e lance a lance, encho uma caixa de peixe bom. Dir-me-ão que é um acaso. Seria, não fora o facto de isto acontecer com demasiada frequência. Quando pesco em zonas carregadas de peixe, e sobretudo zonas onde a pressão humana não se faz sentir, é quase indiferente. Mesmo com os motores do barco ligados, a reacção do peixe é morder, e saem peixes bons. 

Estou agora a sair para pescar no Senegal. Em zonas que raramente são pescadas, e naquele país há muitas, o comportamento dos predadores é padronizado: completa ignorância da presença do barco. Não querem saber.  Ao pescarmos nas nossas zonas, aqui no nosso cantinho português, em locais normalmente muito explorados, a discrição ajuda bastante. E porque nunca sabemos se estamos no tal dia de sorte, se é nesse dia que vamos ter um super peixe a morder a nossa amostra/ jig, um daqueles pesos pesados que tanto ambicionamos, é bom adoptarmos comportamentos de discrição absoluta. Isso ajuda-nos sempre. 

Porque um dia, esse dia especial….é sempre hoje. 



2 Comentários

  1. Boa tarde Vitor,

    Obrigado pelos pareceres que cedeu neste excerto.
    Boa visão crítica sobre os temas e muitas das situações acontecem com muitos pescadores, diariamente. Nomeadamente a questão do barulho no barco e a preparação prévia do material num local remoto.
    Depois há os que se apercebem da diferença que o silêncio e vibrações fazem, e há os que não se apercebem e é só mais um dia bom ou mau.

    Os meus melhores cumprimentos,
    Bernardo Mendes.

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    Respostas
    1. Bom dia Bernardo Mendes

      Há detalhes que podem influenciar decisivamente o resultado de uma saída de pesca.
      Vamos continuar a chamar a atenção das pessoas para eles.

      Um dia todos saberemos valorizar a questão dos ruídos, porque os resultados são substancialmente diferentes. E há muito mais coisas....

      Abraço
      Vitor

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