Cheguei por volta das duas da manhã, com o avião a ziguezaguear por entre pingos de chuva quente. Chovia, mas pouco. Infelizmente, porque a capacidade de retenção deste precioso liquido é nula, tudo se esvai em minutos e a árida terra clama sempre por mais. A ausência de reservatórios, de barragens, não permite fixar a pouca que cai. As estradas, sem canais de escoamento, inundam em minutos e tornam o trânsito algo de surreal.
Não é estranho que alguém vista a sua melhor roupa, e passado um minuto tenha o azar de lhe passar perto um carro que o deixa coberto de lama da cabeça aos pés.
Todos reclamam, mas pouco se faz para mudar.
A água, por escassa que seja, é sempre bem vinda a regiões semidesérticas, mesmo sob a forma de uma trovoada quase seca.
Estação das chuvas quer dizer relâmpagos e cuidado acrescido com canas de carbono empinadas aos céus.
Semanas antes, um italiano agradecido ofereceu uma dessas canas ao seu diligente barqueiro.
A ânsia de experimentar a sua cana “nova” foi tanta que este arriscou uma saída de pesca em plena trovoada. Ficou cortado a meio, com a cana apertada na mão, carbonizado.
À saída da porta de desembarque, os primeiros bafos de calor e humidade fizeram-me recordar cheiros antigos, uma insuspeita mistura de terra molhada e muita transpiração. Sem dúvida tinha chegado, estava de novo em África.
Sovacos pouco lavados, a revelar uma escassez absoluta de sabonete nas lojas. Os cheiros africanos são muito pouco europeus, acreditem.
Estas lojas têm um pouco de tudo, ou não fossem chamadas de supermercados, mas sabonete não. Não se vende |
O corpo sofre sempre com estes voos algo atribulados, conforme são todos os que se fazem para sul. Tenho a certeza de que, a usar placa dentária, ter-me-ia saltado boca fora na aterragem em solo senegalês. Foi uma valente queda, perdão, aterragem, com as pontas das asas a rasparem o chão.
Smart Wings, o nome da companhia de aviação, dizem eles, embora eu não acredite na questão do …“smart”. Trata-se de uma unidade com bandeira da República Checa, a qual vai ao mesmo sítio, no mesmo tipo de avião, mas por metade do preço da nossa TAP.
Hoje dou-vos de mão beijada, e sem anestesia, a minha viagem ao Senegal. Um país que queremos acreditar de gente boa, calma, pacífica, onde as nossas crianças correm baixo risco e podem desfrutar de férias na praia com qualidade, enquanto o pai sai a pescar uns peixes.
A temperatura da água do mar ronda os 29/ 30º C , o que a torna apetecível para gosta de ficar de molho muitas horas. Os senegaleses fazem da praia o seu café, o seu pub, o seu ponto de encontro.
Pode parecer-vos estranho, mas as crianças a partir de 1,5 anos são deixadas ir para a praia…sozinhas. O critério é apenas um: o de serem capazes de andar.
Há sempre gente nas vizinhanças, mas sabemos que quando os acidentes têm de acontecer acontecem mesmo e no momento decisivo não estará ninguém a olhar. Mas mesmo isso é encarado com uma naturalidade que nos incomoda: “ o bebé não era suficientemente bom…”
A relação com a morte não é a mesma que na Europa, e tenho bastos exemplos para poder pensar desta forma. Quando morre uma criança em África, normalmente em agregados familiares que contam com mais quatro ou cinco, isso é dor para um ou dois dias e a vida continua.
O quanto nós europeus estamos longe dessa frieza de raciocínio. Haverá muito mais diferenças, mas esta de encarar com esta ligeireza a falta de alguém é algo que nos choca, que choca frontalmente contra os nossos valores.
Tento entender as razões que levam a um quase desprendimento pela vida e as conclusões a que chego não me agradam de todo. Prefiro pensar que estou errado.
O resultado final é que aprendem a nadar naturalmente. É transversal a todos os cidadãos, todos o sabem fazer desde tenra idade. Isso é particularmente importante em populações residentes em aldeias costeiras, com os olhos cheios de mar, invariavelmente sempre de costas viradas para a desértica terra interior.
Na verdade, têm um ritmo de vida estranho, para os nossos hábitos europeus. Às cinco da manhã toda a gente acorda, para rezar. Uns vão a seguir preparar o seu trabalho, outros voltam para a cama mais alguns minutos. Reza-se cinco vezes ao dia, num ritual que se repete até à hora da morte.
Fundo típico do Senegal, com pargos mulatos, cirurgiões, safias, sargos, saimas, e algo a que não vão prestar muita atenção: dezenas de pargos de 2 kgs ao fundo da foto, quase no espaço invisível. |
Levo cerca de 28 anos de Senegal, conheço o suficiente para poder relativizar quase tudo. Se me ligam e dizem que há peixe às paletes, que agora é que vale a pena, entendo isso como a vontade de me verem. E volto outra vez.
Com efeito, o peixe é cada vez menos, o esforço para conseguir um bom exemplar cada vez maior, as distâncias percorridas são tremendas. E ainda assim vale sempre a pena. Quando valorizamos tudo o que envolve a pesca, e não apenas o peixe, encontramos sempre motivos para voltar.
Sentimo-nos voltar às raízes, a tempos de escassez, de ter de fazer tudo com nada. Quando chegamos ali para passar uma semana, e dadas as limitações que as companhias aéreas nos impõem a nós pescadores, sentimos não ter quase nada nas mãos. Os 20 kgs de carga permitidos implicam uma difícil escolha, no meu caso apenas 19.5 kgs de material de pesca e todos os restantes 0.5 kgs em… roupa. Mesmo assim, e dada a quantidade de varáveis de pesca que queremos fazer, é nada. Parece-nos sempre ter pouco equipamento, falta-nos tudo.
E todavia continuamos a ter muito mais que os habitantes locais. Vive-se com pouco naquele país, mesmo muito pouco! A vantagem que temos sobre os senegaleses é curta, temos mais informação, horizontes mais largos, mas eles são mestres catedráticos em descobrir soluções a partir do zero.
Eles fazem roupa na rua, em qualquer lugar. Chegam, tiram as medidas, e passados minutos já estão a sair com um traje novo.
É difícil viver naquele país. Muito duro. Bem pior que um mau odor pontual é o meu amigo Mohamed meter-me numa fila de trânsito atroz, com milhares de carros com mais de 40 anos, e motores a condizer, a queimar gasóleo como chaminés.
O fumo cega-nos, deixamos de ver a estrada, e se perguntamos se eles ali fazem inspecções periódicas aos veículos, eles respondem: “ inspecções quê”…?
As alternativas não são muitas: ou aguentamos tubos de escape a debitar fumo preto, a mascarrar de negro os nossos pulmões, ou fechamos os vidros. Com estes fechados, parece ser pior, o calor sufoca-nos. A pele destila suor e não conseguimos nunca secar as camisolas.
Ao fim de tantas horas de transpiração , sem banho, pensei ter criado asticots debaixo dos braços.
O meu amigo Chérif, de nome próprio Mohamed Fadel Sow, tem carro. Uma conquista recente, uma pechincha que chegou dos Estados Unidos, em quadragésima mão. O conta quilómetros em milhas indica a proveniência. Mas nós fazemos o mesmo a partir de cá, sobretudo de França.
Impingimos-lhes trastes velhos com rodas. Os carros novos no Senegal não passam de sucata que já ultrapassou em muito aquilo que é admissível ser vendido. Quando já não há qualquer possibilidade de venda na Europa, mesmo por míseros euros, são despachados para aquela gente.
E ao chegar lá….são novos e bonitos outra vez. A poluição ambiental é evidente, as cidades cobrem-se de fumo preto, mas na ausência de outra possibilidade, serve. Vejam o filme:
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Fazer meia dúzia de quilómetros é algo que deve começar por uma benzedura e duas ave-marias. Nunca sabemos quando vamos chegar.
Em última instância depende da quantidade de barragens de estrada que aconteçam. A polícia pressiona os carros, qualquer que seja o seu tipo, de particulares a camiões de carga, à procura de tudo aquilo que eles não mostram aos nossos olhos.
O haxixe está escasso, praticamente em rotura de stock em todos os dealers, à conta da pressão intensa da polícia nas estradas. A proximidade com a Guiné Bissau é muita e se a porta de entrada de drogas é aquela, a distribuição tem mesmo de passar por aquelas estradas.
Fazer uma deslocação que aqui na Europa nos consome meia dúzia de minutos, dura horas. Depois de me deitar por volta das 5 da manhã, dormi o exagero de uma hora, levantei-me às 6, para ir pescar. Para nada. Às nove horas estávamos ainda a comer croissants numa pastelaria, à espera que alguém fosse comprar gasolina. Adquirir combustível (a menos de 1 euro o litro….) é trabalho para horas. Tudo demora uma eternidade.
Comprámos mangas para a viagem. São deliciosas. O troco foi deixado a cinco miúdos que passavam na rua, algo como 40 CFA, ou seja a exorbitância de cerca de três cêntimos de euro. Considerei a possibilidade de os avisar para não esbanjarem o dinheiro em futilidades, telemóveis, irem às meninas, e muito menos comprar tabaco.
Amanhã vou levar-vos à pesca.
Vítor Ganchinho