TIRAR CARTA DE PESCADOR - 7

Os nossos peixinhos não enjoam!
Eles nascem naquele meio, e estão habituados à ressaca das ondas, à força das correntes, e a ter de fazer tudo no meio daquela agitação. 
Por vezes tenho alunos que me perguntam como posso manter a calma e ser capaz de raciocinar em situações em que o mar me empurra contra o barco, ou que o levanta e baixa de forma desordenada, ou quando há um peixe grande na linha a puxar desenfreadamente. 
A razão é simples: se há um peixe a “espernear” muito, pois isso é exactamente aquilo que estava à espera, e por isso, quando acontece, não tem nada de estranho. 
Tudo vai do hábito, da forma como olhamos aquilo que está a acontecer. Manter a presença de espírito ajuda bastante. Não resolve tudo, mas ajuda. 
O tema de hoje aqui no blog prende-se com isso, com a capacidade que os nossos peixes têm de escolher a cada momento aquilo que é melhor para si. 



Há que ser capaz de seguir uma linha de pensamento claro e preciso, pese embora as vicissitudes do estado do mar, ou daquilo que possa estar a acontecer. 
Quem mergulhou dezenas de anos como eu, sabe que a última coisa admissível é perder a calma numa situação de stress, estando no fundo. Isso pode originar um acidente e na maior parte dos casos ser fatal para quem está a uma ou duas dezenas de metros abaixo da linha de água. Paga-se com a vida qualquer tipo de descontrolo. 
O comandante de uma embarcação não tem qualquer possibilidade de equívoco, da mesma forma que um piloto de aviação não pode distrair-se com o que está a fazer no momento da aterragem.  
Quem pesca tem de saber controlar cada situação de acordo com um código de comportamento que o faça reagir no sentido certo, da actuação certa, dos movimentos de mãos certos. 
De cada vez que executamos menos bem, perdemos, e ficamos com menos um peixe. Eles exploram as nossas fragilidades e aproveitam-nas, até ao último suspiro. 
Mesmo em situações de stress máximo, os peixes não deixam de executar de acordo com aquilo que seria o seu melhor perante aquela adversidade. 
Os peixes fazem isso a cada instante. Um rascasso, ou um peixe aranha, sacodem violentamente a cabeça, no momento em que sente que as nossas mãos estão perto deles. Essa é a sua última cartada.
E por vezes ganham. Deixem um polvo à solta dentro do barco e vão ver quantos minutos são necessários para que ele se esgueire de volta ao mar. 
Há bem pouco tempo, um safio, já depois de desferrado, e estando eu a tentar colocá-lo na caixa do peixe, conseguiu voltar à água. Percorreu o único trajecto que o poderia salvar…
Eles conseguem executar em situação de stress limite, e por isso, por vezes, salvam-se. E não querem saber das ondas, da agitação. Eles não enjoam….



Ontem vimos situações em que uma ou várias as rochas do fundo marinho proporcionavam zonas de deflexão de corrente, aproveitadas pelos robalos para permanecerem na corrente sem demasiado esforço. Hoje vamos ver uma situação diferente: como aproveitam as possibilidades de um cruzamento de correntes. 
Quem sai ao mar na barra de Setúbal já sentiu os efeitos do cruzamento de correntes de vazante do Sado. 
Existem dois canais bem distintos, o que segue para as fábricas de papel, adubos, etc, e o canal que leva à Lisnave, os estaleiros navais. 
Na vazante, a água desses canais encontra-se. É mais visível já numa fase de saída, quase junto ao Hospital do Outão, em que inúmeros remoinhos evidenciam uma turbulência acrescida. 
Todos sabemos que a zona da Restinga, onde a contracorrente mais se faz sentir, é um local privilegiado para encontrar robalos. 
Faz sentido. Toda a zona estuarina é rica de alimento, é ali que o peixe vai depositar as suas ovas, é ali que nasce grande parte do peixe que capturamos mais tarde nas pedras adjacentes à boca do estuário. 
Nesse local temos, a determinadas horas de vazante, correntes que podem chegar a ser muito fortes. 
Temos de resto duas correntes diferentes, que se encontram. Vence, como de costume, a que tem mais força, e empurra a outra. 
Há um canal principal, que avizinha os 47 metros de fundo, e a seguir diversos veios menos profundos que, todos juntos, fazem o escoamento de água do rio. 
Não devemos pensar que há peixe em todo o lado, apenas por haver água. No meio de toda a estrutura de canais de saída da vazante, há os que são bons e aqueles por onde nunca passa um peixe. 
Os nossos velhotes pescadores sadinos conhecem-nos todos. 
O raciocínio a ter é este: onde pode um robalo encontrar o melhor de três mundos, zona que favoreça todo o seu potencial de caça, segurança e comida? 
Se pensarem bem, não são muitos os locais que podem oferecer isto. Dou-vos algumas pistas: 
O canal principal pode servir de zona de caça. É por ali que a comedia entra na enchente, quando adentra o rio, vinda de fora, da Reserva Natural da Arrábida. 
Não servirá de poiso em permanência, dado que a dada altura a corrente será forte demais, mas há escapatórias onde isso será possível. 
Há rochas altas na zona da Restinga. Estão de resto marcadas à navegação, bem visíveis, uma a vermelho e outra a verde. Há uma zona de águas baixas, com uma corrente ténue, sempre contrária à corrente principal, 
seja esta de enchente ou vazante. E há, no Verão e Outono, as boias de amarração dos barcos de recreio, que funcionam como salvaguarda da colocação de redes. 
Há ainda um local onde ninguém pode pescar, os pilares da cimenteira Secil, por efeito da acostagem de navios de carga. E ainda tudo aquilo que está por debaixo da estrutura do cais da empresa, onde ninguém consegue colocar uma arte profissional. Qualquer que seja. 
Existe uma parafernália de cabos, ferros retorcidos, blocos de cimento, pedras, etc, e nada pode ser utilizado com garantia de retorno à superfície. 
Para bom entendedor, meia palavra basta. O que gostava de vos dizer é que a natureza tem a sua forma de reagir às dificuldades e encontra sempre forma de as tornear. 
 


Gastaria ainda que ficassem com a noção de que esta situação que aqui vos trago, pode ser replicada em centenas de outros locais do nosso país, onde certamente existirão situações análogas. 
Basta pensarmos como um peixe, e encontramos. E aí, nesse local que elegemos como sendo o perfeito para o nosso peixe poder encontrar comida, ser capaz de a enganar e capturar, e ter segurança, é onde está o nosso robalo. 
É aí que devem lançar!


Vitor Ganchinho


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