Temos vindo a analisar detalhes relacionados com o comportamento dos peixes perante o excesso de pesca, o aumento da pressão exercida por parte dos pescadores.
O tema em si é bastante polémico, as opiniões divergem e por isso mesmo poderão suscitar por parte de quem lê reacções completamente antagónicas.
A questão da “memória de incidente” dos peixes tem vindo a ser abordada nos últimos artigos e decorre da capacidade volitiva de um peixe aceitar investir contra uma amostra depois de ter tido uma má experiência com essa ou outras amostras.
Se não é difícil encontrar pescadores que são capazes de jurar que um peixe ferido na boca nunca mais toca num artificial, também não é impossível encontrar gente que assegura precisamente o contrário.
E há dados objectivos sobre isso? Se sim, onde estão?
Pois bem, temos exemplos reais, concretos, casos em que o peixe voltou a atacar e não há a menor dúvida de que seria o mesmo peixe porque trazia consigo a amostra anteriormente perdida.
Os lances de pesca nem sempre correm bem, e por isso dificilmente algum dos leitores não terá já perdido um jig, uma amostra, um anzol, na boca de um peixe.
A maior parte deles nunca mais voltamos a encontrá-los, a história parece acabar ali, o que não quer dizer que o exemplar não sobreviva a esse mau trato. Conseguem-no e alguns deles como que “desvalorizam” o facto de estarem limitados, e avançam de novo ao engano.
O que é raro é que seja o mesmo pescador a “re-capturar” o peixe que lhe escapou. O Luís Ramos tem casos desses.
Peixes ferrados pelo Luís, peixes adultos, enormes garoupas que levam os equipamentos de pesca ao limite, que vendem cara a sua vida e, por qualquer vicissitude atacaram um jig e acabaram por se soltar.
Não interessa para o caso se apenas se desferraram, ou se romperam a linha, porque em ambos os casos tratamos de peixes que conseguiram a sua liberdade. Depois de soltos, esses peixes poderiam decidir por sua vontade própria o que queriam fazer a seguir.
E o que é estranho é que alguns deles…voltaram a morder.
Nestes casos, e mesmo ficando o jig e os anzóis cravados na sua boca, esses peixes voltaram a tentar alimentar-se, atacando de novo um jig.
Os makos, tubarões comuns na nossa costa, são tão rápidos que por vezes batem nos nossos artificiais. E é corrente que cortem as linhas... |
A reflexão a fazer passa por tentarmos entender de que forma o peixe vê o jig, ou qualquer outro tipo de amostra, e de que forma a relaciona com “comida”, com o alimento de que necessita diariamente para sobreviver.
Já perceberam que há “pano para mangas” a dizer sobre esta questão, pois ela considera realidades tão díspares quanto a fome, a necessidade de comer, a crença de que aquele artificial é mesmo alimento verdadeiro e a agressividade que leva ao ataque de algo que parece comida, na circunstância um jig.
Acompanho com entusiasmo as aventuras africanas do Luís Ramos e sei de pelo menos três casos em que ele recuperou jigs seus da boca de peixes que lhe escaparam alguns dias antes, ou até mesmo no próprio dia.
Sabendo ele que eu sou um pescador que se interessa sobremaneira por estas ocorrências estranhas, e que para a minha formação enquanto pescador preciso desesperadamente de saber todos os detalhes para meditar sobre eles, não deixa de me pôr ao corrente daquilo que lhe acontece.
Provavelmente terá muitos mais casos e era interessante saber o que pensa sobre isto. Ele tem episódios em “carteira” suficientes para nos falar com propriedade sobre este tema, dando a opinião de um profissional de pesca à linha, de quem conhece o fenómeno, e por isso lhe solicitamos daqui que nos escreva um texto a relatar algumas dessas experiências. Luís, vamos ficar à espera!
De que forma podemos separar uma situação de caça em que o peixe, ainda debaixo de um estado de excitação predatória momentâneo, volta a morder passados alguns segundos ou minutos, o que é corrente, e algo que acontece a esse mesmo peixe passado um ou mais dias.
Ou seja, quando teoricamente esse estado de euforia de caça já teve tempo para ser atenuado e o animal já voltou ao seu estado de repouso.
A questão que se coloca é saber se podemos entender como normal que um peixe tendo experienciado uma situação dolorosa e que lhe deixou marcas físicas, volta a acreditar e a morder um artificial.
Em teoria, peixes que rompem linhas, conseguem escapar para os seus refúgios de segurança, e carregam consigo jigs de 200 gramas cravados na queixada, não deveriam querer repetir a experiência.
É impossível que esses peixes não sintam o incómodo causado pelos ferros cravados na sua boca, e todavia, por razões que se prenderão com a inevitável lei da vida e morte….voltam a comer.
Por vezes lançam-se a outro jig, …no próprio dia.
O que não deixa de ser espantoso.
Eu tenho inúmeros casos desses, mas quase todos relacionados com insuspeitos peixes miúdos, desde lírios a pequenos atuns, de pampos a douradas.
Já este ano lancei um micro-jig num fundo baixo e ferrei uma dourada. Ao querer desferrar o animal achei estranho ver a ponta de um anzol saído do ventre do peixe e não o libertei.
Em casa, a dourada de cerca de 800 gramas revelou um anzol de tamanho inusitado, muito maior que os anzóis com que se pescam douradas, talvez um 6/0, cravado no estômago, enquistado, e já desgastado dos ácidos e da ferrugem.
Teoricamente aquele peixe devia estar morto, e no entanto conseguiu sobreviver e ali estava ele a tentar alimentar-se e a morder o meu jig.
Comida, mas... |
Até que ponto pode um peixe acreditar “piamente” que aquilo que está a comer é alimento igual ao que costuma encontrar no seu dia a dia?
Podemos extrapolar esta questão para o âmbito de pesca com isco orgânico, porque toca a muito mais gente e não deixa de ser paradoxal: se em águas revoltas e tapadas a margem de tempo de que o peixe dispõe para decidir comer ou não comer é de fracções de segundo, já em águas paradas esse tempo é o suficiente para que a decisão possa ser tomada... “em consciência”.
Porque estamos ainda em período de pesca à dourada, e porque há muita gente que utiliza o sistema de lançar um caranguejo vivo para o fundo na esperança de conseguir cativar uma dourada de alguns quilos, podemos interrogar-nos sobre o seguinte: tratando-se de uma pesca de espera, e sendo o isco algo que não está acessível senão a peixes de grande porte, (um caranguejo adulto tem seis ou sete centímetros de diâmetro logo estará longe das possibilidades de bocas pequenas), podemos pensar que o peixe que tenta esmagar esta isca não teve tempo para detectar a linha e a chumbada que lhe está adjacente? Neste caso, e atendendo aos longos minutos, ou horas, que medeiam cada picada, é presumível que sim, que houve tempo para que esse peixe pudesse observar todo o entorno.
E se sim, se não obstante conseguirem ver o engano, os fios, as missangas, a chumbada, aceitam ainda assim morder com os seus fortes dentes essa isca, porque o fazem?
A boca desta dourada é especializada em triturar conchas. Mas também captura peixe miúdo e por isso a fiz com um jig. |
Não falta comida a quem a sabe procurar, e os peixes grandes chegaram a velhos porque o sabem fazer. A experiência de vida de um peixe adulto não dá aso a dúvidas sobre a sua capacidade de se alimentar. E assim sendo, o que leva estes peixes a arriscar a vida engolindo um anzol?
O tema “fome” é algo bastante intuitivo, sabemos o que é, temos a certeza de que não podemos estar enganados sobre ele, mas poucas pessoas o saberão explicar.
Vítor Ganchinho
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