MORDEM E... VOLTAM A MORDER? - CAP IV

Podemos considerar que o efeito “pressão de pesca” será eventualmente um factor limitativo da predisposição de um peixe atacar uma amostra.
A frequência com que um peixe percebe e reage aos movimentos de uma série de pescadores que insistem num mesmo local, às suas inúmeras, estafadas e repetitivas intenções de o enganar, os “truques” a que cada um recorre, poderá induzir a um esfriamento da fogosidade natural dos seus instintos de predador. O peixe retrai-se. Cansa-se de ser aliciado com amostras, com borrachas, com iscos, mesmo que esses iscos correspondam ao que pretende encontrar para matar a fome.
Porque é quase sempre de fome que se trata. As pontuais excepções são defesa de território de caça e defesa de criação/ reprodução.
Há imensos locais da nossa costa que são pescados todos os dias, dia e noite. E não porque possam “produzir” pesca em quantidade e/ ou qualidade para todos esses pescadores, tão só porque se tratam de sítios acessíveis, onde alguém resolve ir lançar umas amostras, junto com dezenas de outros, e sempre que há tempo para isso. A questão é que isso é feito vezes sem conta, e se os pescadores não são sempre os mesmos …os peixes não são necessariamente sempre outros.
Para a maioria dos pescadores que encontramos num pontão a lançar amostras, a esperança renovada é a única coisa que os move. Uma esperança que não passa de um estado de fé, algo como “esta é a primeira vez que aqui estou neste pesqueiro, desde a última vez que aqui estive”….
O “cansaço de pesca” sofrido por um peixe que vê passar à sua frente amostras de todas as cores e feitios, leva-o a inibir-se nas suas reacções naturais. Tentem imaginar o que pode sentir o “objecto” das nossas tentativas de pesca, somadas às tentativas de pesca anteriores, que facilmente podem ser na ordem das muitas centenas. Multipliquem por 24 horas e a seguir por 365 cada lançamento de amostra feito num dos inúmeros pontões onde encostam carros a cada instante. Pois sim…
Mas temos por outro lado a considerar que o peixe tem de comer todos os dias e que cada um deles é um mundo de interrogações. Nunca sabemos o passado recente do peixe que procuramos enganar.
Já comeu nesse dia? Passou o período de reprodução e precisa de ganhar peso? Passou por uma série de dias sem se alimentar por existirem más condições de tempo? Há alimento natural disponível em abundância nesse local?
Nunca sabemos e tudo importa saber quando se joga um jogo de vida e morte. Porque é disso que se trata…

Garoupa pescada por Luís Ramos, Benguela, com jig de 150 gramas.

Se um peixe recusa sistematicamente todas as amostras da nossa caixa, mesmo a mais “esperançosa”, aquela que tantos peixes daquela espécie já nos deu, se nada do que lançamos consegue uma resposta, então temos um problema.
Os peixes difíceis são uma maravilha porque são precisamente eles que nos motivam a levantar cedo da cama e ir ao mar. E são tanto melhores e mais interessantes quanto mais tempo passa sem conseguirmos resultados.
Há peixes que se tornam, pela sua irredutibilidade, autênticos clássicos. Lembro-me de uma carpa de uns 15 kgs que vivia na sua santa paz numa pequena lagoa adjacente à Barragem do Rôxo, lembro-me de um barbo que olimpicamente ignorava todo o tipo de minhocas e pão que eu lhe lançava para dentro do poço de aldeia no Alentejo. São peixes que se especializam em recusar iscos, porque têm outras fontes de alimento e porque são tentados centenas ou mesmo milhares de vezes, por centenas ou milhares de pescadores.
Até um dia…
Um dia têm um descuido e passam a ser objecto de intermináveis conversas à mesa do café, conversas de pesca que esgotam muitas grades de cerveja fresca.
Adoramos reflectir sobre as nossas tácticas, sobre os truques que cada um guarda na manga para peixes como estes, difíceis, irredutíveis.
O barbo em questão sabia que não valia a pena ter pressa. Sabia que depois de desaparecerem as cabeças que assomavam ao bocal do poço, teria tempo para lamber todos os pedacinhos de pão anteriormente lançados. E as minhocas.
Estava só no poço, sem concorrência, podia esperar…
Naturalmente todos nó sabemos de locais onde existem peixes mais fáceis. Eu levo os miúdos a pescar os cardumes de pampos, porque sei que é diversão garantida. Trata-se de uma espécie que, sendo pelágica, e porque faz grande parte da sua vida longe de terra, acredita na bondade dos homens.
Por defeito, um pampo é um peixe fácil. Mas também todos nós conhecemos espécies de peixes bem mais difíceis, e nem vale a pena chegarmos aos espertíssimos sargos em águas rasas, paradas e limpas.

Peixe-zebra, Branchiostegus semifasciatus, mais uma das raridades que eu puxei para cima, em Angola. De aspecto, é uma versão longínqua das nossas douradas…

Analisamos os peixes pela sua espécie, e quase nunca o fazemos tendo em conta o seu perfil individual. Que experiência com artes de pesca tem esse peixe? Já foi libertado antes? Já passou por alguma situação de stress à conta da pesca à linha? E se sim, há quanto tempo?
O estudo do tipo de diferenças comportamentais entre peixes da mesma espécie é algo de novo e que vale a pena ser abordado. Se os tomamos sempre pela espécie e nunca pelo seu passado individual e experiência prévia, podemos ser surpreendidos.
A variação de comportamento entre indivíduos de uma população de peixe de uma determinada zona é normalmente descartada, não se lhe atribuindo demasiada importância.
O que é comum e tido como importante, pensa-se, é o padrão geral de comportamento, a média comportamental de um determinado grupo de peixes.
Todavia, a variedade de atitudes apresentada pelos peixes, enquanto indivíduos singulares e autónomos, justifica uma observação mais cuidada. Já não basta pensar que alguns peixes são mais difíceis de capturar porque são mais tímidos, ou mais ariscos, nem que outros são fáceis porque mais ousados e mais agressivos. Isso é conversa de psicólogo, de divã. Na pesca, aquilo que verdadeiramente conta é se o peixe tem fome, e se acredita que aquilo que lhe propomos é algo que pode matar essa fome.
E já agora, se nós somos ou não capazes de fazer com que aquele pedaço de plástico, ou aquele chumbo pintado, pareça mesmo aquilo que o peixe procura.
Chama-se a isso técnica de pesca e uns têm e outros não.

Vamos continuar nos próximos números a escrever sobre este tema, que me parece interessante.


Vítor Ganchinho


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