Pediu-me um leitor do blog que redigisse algumas linhas sobre ...”linguagem a bordo”.
Confesso que a minha primeira reacção foi a de declinar, por saber que nada posso fazer para mudar quem quer que seja, muito menos tentarei alguma vez corrigir quem faz do vernáculo uma ferramenta sempre à mão.
Mas o pedido foi feito e eu posso dar a minha opinião sobre o assunto.
Se é verdade que a pesca de um peixe é um acto muito imediato, muito localizado no tempo pois demora apenas segundos, já a decisão de ser pescador e a de aprender a pescar é algo que leva anos e por isso de incubação prolongada.
Não nascemos pescadores, fazemo-nos pescadores.
E vejo isso enquanto processo mental de captação de experiências, de aprendizagem gestual, de aprendizagem técnica, mais do que o imediatismo do acto de lançar uma linha.
Isso de lançar linhas todos podem fazer, até os não pescadores.
A construção de um pescador é algo que exige tempo, sabedoria e será sempre um processo individual, único, uma criação que nasce de uma contemplação interior feita por cada um de nós.
E necessariamente um acto de introspecção, de análise, o qual deve ser desfrutado pelo próprio, de preferência em silêncio absoluto.
E quanto vale o silêncio?
A pesca enquanto actividade lúdica pode ser praticada em grupo, com grades de cervejas e gritos pelo meio, mas enquanto momento de harmonia e equilíbrio é de um desempenho individual muito marcado. É só nosso.
Só vejo duas possibilidades, e francamente não acredito que se toquem entre si. Por absurdo, algo como ter de escolher uma destas duas variantes: ter saúde, e por isso desfrutar do silêncio da ausência de sintomas e queixas, ter um perfeito equilíbrio, físico e emocional.
A segunda, estar em estado de doença generalizada, em stress físico extremo, ter o corpo a gritar de dores e infeções em todos os lados, ser refém de tabaco, bebidas alcoólicas, drogas, etc.
A pesca a sério, a que implica recolha de saber nunca será esta última. Dificilmente se poderá aprender a pescar quando se tropeça a cada instante em copos vazios.
A pesca mais intelectualizada, a que aporta conhecimento, essa não é compatível com o naufrágio emocional que é ir ao mar apenas para beber copos de vinho. Há demasiado ruído a bordo de um barco onde se bebe em excesso.
A pesca a sério é de tal forma um desafio para os sentidos e exige uma quantidade e qualidade de introspecção e absorção de dados que a tornam incompatível com grandes …”festas”.
Escutar o mar, aprender com ele, não tem muito a ver com atirar-lhe garrafas de cerveja vazias, se me faço entender.
Tenho amigos pescadores que pontualmente saem em embarcações de pesca MT.
Fazem-no em grupos grandes e com pessoas desconhecidas por não terem outra alternativa. Gostam de pesca, anseiam pelo fim de semana para espairecer, apanhar algum ar puro e pescar.
Alguns deles chegam mesmo a levar as esposas. Arrependimento garantido.
A chegada é sempre penosa, e a saída do barco sempre apressada, sempre a não olhar para trás.
Prometem a eles próprios não repetir, não voltar a cometer o mesmo erro.
É verdade que a pesca é um excelente escape para a pressão do dia a dia, e mais verdade que aquilo que aparece a bordo de um desses barcos de pesca não só não pode ser selecionado por quem aluga a embarcação como não deixa de ser um retrato fiel daquilo que somos enquanto sociedade.
A bordo de muitas das nossas MT, o ambiente é bom, é saudável, mas infelizmente isso não é regra válida para todas.
Algumas são mesmo …penosas, sobretudo para quem espera encontrar ali um espaço de convívio onde caibam todos e todas as sensibilidades. Não é assim.
Há barcos onde o nível é de tal forma baixo que apenas cabe quem se sente bem a esse nível rasteiro.
É ali, num espaço ao ar livre, pressupostamente descontraído, que cada um revela aquilo que lhe vai na alma, e se mostra enquanto pessoa. O nível da linguagem baixa e a partir daí tudo parece valer.
Pior quando o álcool toma conta das decisões de cada um.
E aquilo que poderia ser um agradável dia de pesca, uma oportunidade de testar técnicas, de aperfeiçoar gestos, no fundo de …pescar, torna-se um martírio sem fim.
Todos perdem...
Vítor Ganchinho
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Como costumo dizer: vou à pesca para ouvir o silêncio do mar.
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