OSAKA NOVIDADES - CAP XXV - PARA ACABAR DE VEZ COM OS CHOCOS... PARTE I

Não, obviamente não queremos acabar com eles!
O título surge a partir de uma analogia da publicação de Woody Alen “Para acabar de vez com a cultura”, excelente obra de humor cuja leitura recomendo vivamente a quem gosta de ler, mas que nada tem a ver com pesca.
Gostamos dos nossos choquinhos, e queremos que eles continuem a reproduzir por aí, alegres e contentes. Os poucos que ainda existem…
Os tempos em que havia chocos a sério já não voltam, esses ficaram para trás, perdidos na memória dos nossos varinos, os homens das aiolas de madeira a remos, os grandes especialistas deste tipo de pesca.
São eles, os poucos que restam vivos, aqueles que nos podem dizer como era pescar chocos até encher os cestos de vime.
Sempre que tenho essa possibilidade gosto de conviver com eles, de os provocar, de apelar à sua memória, fazê-los recordar tempos duros, tempos tão difíceis que eles não os querem sequer lembrar.

Choco preso na rede de emalhar.

Longe vão os tempos de encher canastas de chocos a um palmo de água. Isso era feito nos esteiros do Sado, numa zona recôndita em que hoje em dia está implantada a Lisnave, a antiga Euro-minas, por aí. Custa-nos imaginar que se conseguiam centenas de quilos de chocos por dia, e mais ainda que esses chocos eram capturados à mão, na vazante. Os tempos eram outros e também as necessidades outras.
Se hoje a pesca do choco é entendida como um acto lúdico, e feita a cana e carreto, na época de que vos falo a recolha de chocos para dentro das canastas era feita por pessoas descalças, em calções, com as pernas enterradas na lama escura.
Há um fosso que separa estas duas épocas. Para os mais necessitados, sem outro recurso que o seu próprio corpo, o transporte dos chocos da Lisnave até Setúbal era feito …a pé.
Conseguem imaginar o quão doloroso poderá ter sido viver nesta época? Conseguem visualizar a forma como o faziam?
Duas canastas com cerca de 50 kgs de chocos cada uma, …um varal de madeira passado pelas asas de ambas, a assentar sobre o ombro de duas pessoas e 11 km de caminho a pé para fazer.
Com 100 kgs de carga ao ombro! Poderia isto ser feito hoje?....
Na verdade pode.


Se forem ao mercado do Livramento a Setúbal, vão encontrar na esquina que dá para o parque de estacionamento, zona obrigatória de passagem de quem visita um dos melhores mercados do país, algumas pessoas que vendem ameijoas, navalhas e …orégãos.
Esses são os desafortunados descendentes dos que sangravam dos ombros para trazer à cidade as canastas de chocos. O intuito é o mesmo: aproveitar aquilo que a terra e o mar dão, para ….sobreviver.
É só disso que se trata, sobreviver.
Pese o facto de as ameijoas serem colhidas em zonas de lama infecta (onde os metais pesados das decapagens e limpezas de porões de combustíveis e tintas de casco feitas aos navios da Lisnave atingem concentrações que não recomendam o consumo humano destes bivalves), esta gente não tem alternativa.
Estas pessoas não querem roubar, não querem cortar cabos eléctricos para vender o cobre, e aquilo que têm à mão é mesmo a apanha da ameijoa. Infelizmente imprópria para consumo e que apenas serve de alimento àqueles que estão por tudo, e até por uma disenteria…
Para ser cliente deste tipo de produto, a ameijoa da lama, há que cumprir duas premissas: não ter dinheiro para muito mais e …ser muito crente em Deus.

Aqui temos um exemplo de toneira com uma queda lenta, com um peso de 15 gr. Necessita chumbo de lastro numa segunda linha.

A técnica de pesca ao choco, pese embora não o pareça, mudou muito ao longo dos anos.
Podemos tentar entender algumas nuances daquilo que mudou e escalpelizar algumas das razões de isso ter acontecido.
É muito curioso acompanhar a evolução técnica dos materiais, das montagens, e as razões que a elas conduzem. Há enormes incongruências e desencontros em todo este processo, como vão ver.
Se na génese da captura de chocos para consumo alimentar a regra era a captura em baixios, à mão, (aproveitando a maré baixa, no fundo a recolha dos chocos entrados no estuário aquando da enchente nocturna e que ao alvorecer ficavam sem água por baixo), a dada altura os resultados deixaram de ser satisfatórios. Como em tantas actividades humanas em que o exagero é levado ao limite, ….a promissora mama acaba por secar.
Neste caso foi a colocação de redes de malha fina cravadas na lama, a impedir a saída dos chocos. Salvaram-se os que não subiam os esteiros.
Obviamente aquilo que se seguiu foi a exploração crescente da profundidade, e a forçosa adaptação da técnica a essa nova realidade. Mais fundo exigia equipamento mais pesado e é aí que surgem as piteiras de chumbo armadas de alfinetes.
Todavia a carga de chumbo era ainda relativa, e porque se pescava ainda na cota dos 8/ 10 metros, os pesos não excediam os 30 a 50 gramas. Para que se situem, digo-vos que à falta de melhor, a linha de nylon, sempre “zero grosso” porque os polvos grandes assim o exigiam, era enrolada num quadro de madeira, um H, em que a linha e piteira eram depositadas, enroladas num lenço e …metidas no bolso do colete.
Nesta época, a “amostra” de chumbo era ainda a peça única da montagem. Uma linha e um chumbo, e era tudo. E assim foi durante dezenas de anos.
Porque mudou, porque utilizamos hoje duas linhas e duas peças, perguntam?

A mesma versão, mas de queda rápida, peso de 30 gr, a ser utilizado para lançamentos longos, e recuperação horizontal.

Se quiserem uma retrospectiva rápida, temos que há uma centena de anos havia piteiras e nada mais.
Eram feitas em chumbo derretido, com um anel de alfinetes a todo o perímetro, e passadas a linha branca e vermelha. E era isso o que era lançado à água, para capturar chocos às centenas.
Podem ver alguns exemplares artesanais com cerca de 100 anos em exposição na loja GO Fishing em Almada. Peçam à Helena Neves e ela mostra…


Constatada que foi a premência de ir mais abaixo procurar os chocos (hoje são por sua vez procurados a profundidades bem superiores às de antanho, não raramente a 30, 40 metros…), eis que quase ao mesmo tempo surge um producto novo: a toneira que hoje conhecemos.
Quando apareceram os primeiros artificiais em plástico asiáticos, com cobertura de tecido colorido, os resultados imediatos foram bons, os chocos pegavam-lhes efectivamente bem mas havia um senão: as toneiras flutuavam demasiado tempo.
Com tempo, lentamente, por conta do pequeno chumbo ventral, baixavam sozinhas. Mas a espera era demasiado longa até que atingissem o fundo e quando o faziam o barco já estava longe, deixando a linha “espiada”, oblíqua. Não era viável.
Não esqueçam que as embarcações eram a remos e pese o seu baixo calado e peso, logo com deriva lenta, ainda assim estavam sujeitas às correntes do Sado, por vezes fortes.
Tecnicamente havia um handicap a resolver: a extrema leveza dos palhacinhos.
Por conterem ar dentro, (e daí o efeito de planagem, de queda lenta que traziam de novo e que tanto excitava os chocos), os pescadores sentiram a necessidade de fazer evoluir a montagem.
Este é um caso evidente em que um novo elemento obriga a que toda a técnica no seu global seja forçada a evoluir. E é aí que surge a peregrina ideia de utilizar uma chumbada, levar ao fundo de areia onde estavam os chocos aquele milagroso tipo de toneira.
Aplicar um peso a arrastar consigo a toneira para as profundezas resolveu a questão.
No fundo, esse foi o dado novo: a um artificial mais eficaz, a toneira conforme hoje a conhecemos, mas leve, foi adicionado um peso para a carregar para baixo.
E foi aí que surgiu a necessidade da linha extra que hoje todos utilizam na montagem, ligada ao destorcedor duplo.

Vamos continuar este artigo no próximo número.


Vítor Ganchinho


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2 Comentários

  1. Boa tarde Vitor.
    Gosto muito destes relatos "históricos"!
    Muito obrigado.
    Forte abraço. Paulo

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    Respostas
    1. Aquilo que sei tem muito a ver com muitas centenas de horas passadas com os pescadores mais velhos.
      Profissionais do choco, do lançamento de redes, gente que tem mesmo de conseguir pescar, sob pena de não haver dinheiro para os medicamentos, para a escola dos filhos...
      O pão em cima da mesa aparece do saber fazer.

      Não perdemos tempo quando lançamos uma provocação a um pescador já retirado. Diga-lhes algo co mo isto: " vocês no vosso tempo não pescavam nada"....

      E deixe passar o tempo a escutar...



      Abraço
      Vitor




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