TEXTOS DE PESCA - A Bela e o Monstro



Estes tempos de pandemia servem-nos pelo menos para termos …tempo. 

Depois de um primeiro estado de choque, em que todos nós tivemos de aprender a viver confinados, sem liberdade para fazermos aquilo que mais gostamos, sair para o mar, novas rotinas se instalaram. À falta de melhor, fui procurar textos antigos, situações vividas que hoje me parecem longínquas, mas que ainda guardo na memória. 

Em 1996, o jornal “Noticias do Mar” custava 270.00 escudos, o equivalente a pouco mais de 2,5 euros. Era, e é, um reputado meio de comunicação que deu e dá voz, passados 24 anos, a todas as pessoas do mar, nas suas mais variadas vertentes, da náutica à pesca à linha, da componente técnica de equipamentos de navegação aos motores, das embarcações à caça submarina. Sem fundamentalismos, porque sabemos de onde vimos, onde estamos e para onde queremos ir. 

Nesse ano, 1996, iniciei a minha colaboração com o jornal, sempre dirigido pelo seu mentor, o incansável e insubstituível Antero dos Santos. Ainda há meses um amigo me dizia ”o dia em que o Antero se cansar e desistir, a náutica em Portugal vai mudar, e para muito pior. Ele faz coisas que mais ninguém sabe fazer”. 

Permitam-me recordar o meu primeiro artigo para o jornal, numa altura em que Sesimbra ainda era um espaço aberto, com todos os tipos de pesca permitidos: 

Sesimbra. Águas limpas e a quantidade habitual de caçadores submarinos que se cruzam nos barcos de um lado para o outro, com meia dúzia de sargos, alguns polvos e o sonho de encontrarem “algo mais” que não está ao alcance de todos, apenas de alguns predestinados, aqueles rapazes que poem ir onde todos os outros não podem. As paredes do Cabo, os destroços do River Gurara, as pedras que se mantêm quase desconhecidas mesmo ao lado de onde todos os barcos passam. Continuam a pedir-se milagres a Sesimbra. Com mar fácil, águas sempre limpas todo o ano, a pressão exercida é enorme. Todas as capelinhas são passadas a pente fino várias vezes no mesmo dia, e os sargos já aprenderam que estar dentro de um buraco pode ser bem pior que sair para o largo e voltar à noite. 
Mas os milagres por vezes acontecem. Num buraco perto da Praia do Cavalo, o meu amigo João Nuno arpoou uma abrótea encostada à rocha. Como de costume, a barbela do ferrugento arpão não abriu. Os gritos habituais, a exaltação habitual, e a abrótea em fuga já tinha 3 kgs e era enorme, com tendência para engordar. No meu papel de pronto-socorro, cheguei ao local dos gritos e dei com um buraco sem dificuldades, baixo, amplo, aquilo a que normalmente chamamos de “galinha da perna”.  
Alguns mergulhos depois, e a constatação de que não havia abrótea nenhuma lá dentro. 

_ Não está aqui nada! Dei a volta a cada palmo do buraco e não achei abrótea nenhuma. Está um safio num recanto, mas não há mais nada.
_ Mas eu tenho a certeza de que lhe dei! E vi-a entrar para aqui. Tem de estar!
Voltei a baixar e a passar os olhos mais uma vez. Nada. 
_ A única coisa que está ali, é o safio, mas não há abrótea nenhuma….
O meu amigo João, desconsolado, respondeu-me: 
_ Bom, pelo menos levamos o safio, vai por ele, que eu não entro ali. 
Arpoado o safio, que nem era particularmente grande, demos por finalizado o dia. As fotos da praxe e a promessa de voltarmos. Na altura caçávamos em Sesimbra 4 vezes por semana, como mínimo. A forma física era excelente e os memoráveis finais de tarde para os sargos e robalos, depois o escritório,  eram um hábito que mantínhamos sempre vivo. 
Ao chegar a casa, liguei à minha mãe a perguntar como queria o safio cortado. Ao abrir o Monstro, estava lá dentro a Bela, a abrótea do João Nuno, que tinha sido abocada na sua fuga, e engolida viva. 
A cabeça estava moída da força das maxilas do predador, o corpo apresentava sinais de pelos menos três fortes dentadas, bem vincadas, e lá estava o tiro do João, a meio corpo.



Com um peso de 1,2 kgs, ou seja, quase um terço daquilo que ele dizia, mas ainda assim uma peça interessante. 



Isto mostra que, para quem acha que os peixes apenas comem miudezas e iscas muito bem cortadas, a natureza responde de forma um pouco diferente: comem quando podem o que podem!....



Vítor Ganchinho


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