TEXTOS DE PESCA - A minhoca de molho


Poupem-me a dizer-vos quantas vezes já andei amargurado, ganindo, de caixa vazia, vagueando desorientado por essas pedras de Cristo, sem ter a menor ideia onde conseguir um bom peixe.

Para que tenham uma ideia, a minha Leninha, quando eu saio para a pesca, descongela sempre frango. É a falta de confiança em mim, no peixe, no alinhamento dos astros, na pesca, ou tudo isto junto. Porque há dias em que nada sai bem. 

Uns dias porque a água está fria à superfície, à conta do vento norte, é a vaga que revolve o fundo e o peixe fica alvorado, é a mudança da maré, é a termoclina, é o vento que entra ao contrário da onda, é a lua, é o raio que os parta, a verdade é que o dia seguinte é que vai ser o tal dia bom. Mas o dia seguinte é sempre o outro….e nunca aquele em que estamos, que é quando conta.

De quando em quando, muito raramente, consigo “safar a onça” com uns peixes de excepção. É o que vos vou mostrar hoje. Porque ninguém mostra caixas vazias, mas todos as temos. E quanto mais selectivos queremos ser, pior.

Só se mostram os êxitos, os dias bons, os peixes bons, aqueles de faltar o ar. Se a minha mulher tivesse uma ideia de quanto me fica cada quilo de peixe, ficava excêntrica, iria exigir-me uma limousine com chauffeur francês à porta, para ir comprar sardinhas à praça. Ou ia comprar uma dúzia de malas à Prada. E ficar-lhe-ia bem mais barato que qualquer um dos meus peixes. 

O preço de uma saída de pesca é uma obscenidade.


Os pescadores de linha pagam fortunas por cada quilo de peixe. Em gasolina, em iscos, em jigs, em canas e carretos, barcos, motores, revisões, taxas, …em missangas e pérolas coloridas que ninguém sabe para que servem! Excepto o próprio, que lhes vê uma utilidade extrema e acha que sem aquilo, nada feito!

Guardemos pois para nós este pequeno segredo dos custos, que a esposa só saberá por nós no dia a seguir à nossa morte, e vamos então concentrar-nos noutras questões mais importantes. Já se sabe que querem saber onde é que eu pesco, com que isco, com que material, etc. Como todos os pescadores também eu guardo os meus truques, nem melhores nem piores que os dos outros, mas que funcionam, ou teria outros.

Os custos de uma saída de pesca ultrapassam em muito o preço do peixe no mercado, sem dúvida.


Características indispensáveis a um bom pescador e a bons resultados de pesca: 

1 - A paciência. Tenho para mim que uma das grandes qualidades dos bons pescadores é a paciência, o saber esperar a sua vez. Os que compram anzóis tamanho mosca e vão fazer caixas e caixas de pequenos sarguinhos, e missangas de peixes que nem sequer chegaram a reproduzir uma vez, estão sempre entretidos. Os pescadores a sério, a isso respondem com um ou dois peixes, de qualidade.

É expectável que aqueles que pescam com minhocas, pesquem aquilo que come minhocas. Por isso, há quem apenas pesque peixinhos do tamanho de um relógio de pulso. Pescam muitos, mas pequenos. 

Aqueles que pescam com cavalas vivas, ou com lulas vivas, pescam os peixes que comem esses iscos grandes. São os que têm a paciência de esperar. Quem pesca uma cavala e a lança para o fundo com um anzol, pesca aquilo que come essa cavala: um bom pargo, um lírio, um peixe galo, um robalo grande, etc. Um pouco de paciência não faz mal a ninguém. Há quem avance cheio de boas intenções, e porque ao fim de 5 minutos não apareceu nada de “especial”, muda para as minhocas e passa a pescar ao pica-pica do costume, e pesca aquilo que se sabe, …o costume. 

2 - O material. Ocorre-me que as diferenças sejam muito mais de ordem pessoal do que de equipamentos. É verdade que ajuda, e muito, o cuidado prévio que se tem a escolher e comprar os materiais. Sem dúvida ajuda estar bem equipado, mas sem conhecimento não serve de nada. Com o mesmo material, há quem pesque, e quem não pesque nada, de certeza. Basicamente, pesca-se na nossa zona com uma cana longa, um chumbo entre as 60 e as 180 gramas, linhas trançadas 0.18 a 0.30, estralhos em nylon de 0.35 a 0.50mm, com a tradicional montagem de dois anzóis. Outros fazem a variação para a chumbadinha, mas não se sai muito daí. Os gestos são copiados, repetidos à exaustão e os melhores são sempre melhores. 

3 - O cuidado na escolha da zona de pesca e do pesqueiro. Há locais que são pescados todos os dias, durante todo o ano. Não se lhes pode pedir que, sem qualquer tipo de repouso, possam dar aquilo que não têm: peixe de qualidade. Fazer rotação de pesqueiros, dar uma folga de algumas semanas mesmo a zonas menos pescadas, é avisado, e a longo prazo, uma boa medida. 

Uma boa abrótea, que pesquei ao fundo, com carreto eléctrico.


4 - Se as diferenças se vêem de barco para barco, elas são também muito visíveis entre pessoas do mesmo barco. Com pesqueiros a 60 metros de fundo, quatro pessoas que pesquem num barco de 6 metros estão basicamente a pescar no mesmo sítio. No fundo, o raio de acção das pescas será pouco maior que o tamanho do barco. Com linhas iguais e chumbadas iguais, as possibilidades de obter diferenças, à partida, seriam nulas. E no entanto, elas existem e são perfeitamente visíveis ao final do dia de pesca. 

5 - A quantidade de toques que cada um tem não são iguais. Nem sequer o número de toques que são percebidos por cada um. Deus não deu o mesmo dom a todos, e por isso, acontece que um deles vai ter mais toques, pesca mais, e os outros acham que ele está na melhor zona de pesca. Não está. Seria igual caso houvesse mudança de lugar no barco. Em termos gerais, poderemos considerar que a pessoa que está mais concentrada, nota melhor aquilo que se passa na ponteira da sua cana. A seguir, é uma pescadinha de rabo na boca: porque detecta mais toques, ferra mais peixe. Os restos das iscas ficam no fundo, na sua zona. Porque ferra mais peixe lança mais vezes, a sua isca está sempre fresca no fundo, a largar cheiro, gordura, sangue, e isso “força” o peixe a estar na sua zona, e não nas outras. É ali que as coisas acontecem, é ali que o peixe se concentra. O peixe está onde está a comida. Quem não tem toques, mantém a mesma isca, “lavada”, sem interesse. E por isso, não tem toques. Esta espiral negativa é difícil de inverter. Nestas condições, insistir é pior que bater na sogra! Se não houver consciência do que se está a passar no fundo, os resultados serão sempre desanimadores. Neste caso, aquilo que há a fazer é pensar a pesca. Pensar que há algo que faz com que uns pesquem e outros não, pese embora estejam a retirar a isca da mesma caixa, tenham os mesmos anzóis, …etc. Aquele que está a puxar peixe está bem, está concentrado naquilo que faz, os outros estão mal e cabe-lhes a eles mudar a situação. No fundo, o que seria importante seria entender a pesca pela perspectiva do peixe, que é aquilo que a maior parte das pessoas não faz. 

6 - Ter espírito de observação. Saber o que se procura e lutar para o conseguir. A perseverança, o acreditar, a concentração, o saber fazer, a técnica individual que permite maior economia de gestos e tempo. Claro que sim. Um exemplo: se esperarmos pela subida da pesca para irmos cortar e preparar as iscas, estamos a perder tempo de pesca no fundo. Porque não fazê-lo quando a isca está a afundar, a ir para baixo, e não podemos fazer nada mais que esperar?  

7 - A sensibilidade de saber escolher o momento da ferragem, essa nasce com a pessoa. Ou se tem, ou não se tem, embora possa ser algo melhorado com tempo e treino. Mas haverá sempre um que é melhor que os outros. Os anzóis ajudam. Porque me aborrece fazer cirurgias bocais aos peixes, e outros trabalhos de “motricidade fina” a bordo, prefiro anzóis maiores. As iscas com que pesco não se compadecem de miudezas. 

Aí vem pargo grande!!


8 - A qualidade das iscas. Os peixes não costumam alimentar-se com pedaços de sardinha cortados à faca. A natureza é rude, agreste. No meu caso, quando isco com sardinha, arranco os beliscos com a unha, e aplico, deixando várias farripas de peixe penduradas. O anzol está meio tapado, e o peixe começa por comer aquilo que está pendurado, quase solto, e é fácil de roubar. A seguir, ganha confiança e come o resto. O resto é onde está o anzol. 

Isto é aquilo que é natural para o peixe. As coisas muito certinhas, muito direitinhas, …são estranhas.


9 - É no entanto por aí também que o peixe miúdo pega e é isso que nos trama, ao início. Com uma câmara subaquática, poderíamos ver uns quantos “piços” de volta da nossa isca. Não têm boca para o anzol, mas têm dentes que roubam a comida e têm sempre apetite. E para eles um pequeno belisco basta-lhes. 

10 - Nada como fazer uma “limpeza” prévia, retirar aquilo que tem de ser retirado, as judias, serranos, etc. A partir daí estamos a tratar de gente graúda. De qualquer forma, deve pensar-se que os peixes grandes nos descobrem utilizando como ponto de referência o ponto em que os pequenos estão, em frenesim alimentar. O movimento dos pequenos peixes acaba invariavelmente por chamar a atenção dos grandes, que começam a rondar o pesqueiro. Na gíria, chama-se a isto “ fazer o pesqueiro”. Não há que mudar de zona, por se pescarem meia dúzia de miudezas. Isso acaba logo ali, e a seguir vem aquilo que nos faz levantar da cama. Ter paciência, deixar o mar cumprir a sua sequência lógica e saber esperar. No fundo, entender o que se passa lá em baixo. 

11 - Outro pormenor que me parece importante, é entender que as iscas têm de estar em equilíbrio com os anzóis que as suportam. Se quiserem em detalhe é isto: há um equilíbrio certo entre a quantidade de isca, a sua densidade, o peso e tamanho do anzol. Não adianta ter um anzol enorme com um pequeno belisco de isca, ou uma isca muito grande com um pequeno anzol. Ou ter um anzol grande com uma linha de empate muito fina. Anzóis de grande tamanho grossos, pesados, com isca muito frágil, são uma má combinação. Não adianta pescar com um anzol de espadarte e uma linha de sargo. Não se pesca nada, nem o espadarte, porque a linha rebenta de seguida, nem se pesca o sargo, porque o anzol não cabe na boca do sargo. O equilíbrio da montagem deve ser uma constante. O fio não necessita de ser mais forte que o anzol, e vice versa. Esta coisa da pesca não é exactamente ver quem tem mais força, e por isso, linhas e anzóis sobre dimensionados, são perdas de oportunidades. Tudo tem o seu equilíbrio. A seguir, é a embraiagem do carreto que funciona, são as nossas mãos que trabalham. Cada coisa no seu lugar. Nós não limpamos a sanita com a escova dos dentes, nem escovamos os dentes com o piaçaba da sanita! 

Este anzol é um pouco grande para o sargo.


12 - Ter a noção dos timings do peixe para atacar as iscas no fundo também é importante. Se o faz logo quando a isca chega ao fundo, e isso acontece com pesqueiros ricos em peixe, habitats preservados, ou presença massiva de peixe miúdo…não adianta esperar uma eternidade por outra picada que nunca mais chega. O mais provável é que já nos tenham comido a isca, inclusive no fim da descida. Por vezes é questão de 3 ou 4 segundos, se a pessoa está “distraída com o serviço”, não nota nada. Poucos peixes comem anzóis desnudados. Exceptuam-se os carapaus e as cavalas, quando estes estão em movimento. Mais se forem na cor branca, brilhante, imitando pequenos alevins. Estes, sendo peixes de cardume, têm pouco tempo de reacção. Se hesitarem, ficam de fora daquela oportunidade de comida. Quem já viu cavalas e carapaus no fundo sabe que estão em bola, juntos. As cavalas num tubo alongado, quase oval, ao correr da água, e normalmente todas do mesmo tamanho, os carapaus numa massa mais circular, mais compacta, com os maiores por baixo, (por isso é tão corrente acontecer que venham presos pela barriga, o que picou foi um dos peixes de baixo). Perder uma fracção de segundo é não conseguir garantir a comida para a sua boca. Por isso os pescamos sem isca nenhuma, apenas com o anzol descoberto. Como não têm mãozinhas a primeira coisa que fazem é morder, e a seguir logo se vê. Há que estar atento, e em caso de dúvida, mais vale não esperar e voltar a iscar. 

13 - A simplicidade naquilo que se faz. Obviamente os fabricantes de produtos de pesca dirão que tudo é necessário. Enquanto o pescador novato não tiver a linha carregada de missangas e pérolas coloridas, enquanto a baixada não estiver parecida com uma árvore de Natal, não está bem. A pesca é algo simples, logo, seja racional naquilo que faz: uma cana, um carreto para enrolar a linha, um chumbo para levar para baixo, isca para obrigar o peixe a engolir o anzol. É isso que se pretende, deixar o peixe fazer a sua parte, engolindo o anzol. O resto, você faz.

14 - Poderá parecer estranho a quem pesca com lingueirão ou minhoca, que alguém utilize um atum de 10 kgs como isca, mas no Senegal pesca-se assim o pargo. Falamos dos Pargos Lucianos, que atingem ali os 80 kgs, e engolem esses atuns vivos. 

Pargo de 37 kgs. Este é menos de metade daquilo que estes pargos atingem. O meu amigo senegalês mede 1.90 mts.


O meu maior peixe, um tubarão tigre com 230 kgs, 3,32 mts, foi pescado com um enxaréu de oito kgs como isco, a 12 metros de profundidade.



Seria interessante conseguir explicar que não é estranho que alguém pesque pargos com cavalas vivas, ou um safio com tentáculo de polvo, ou que se tentem as abróteas com sardinhas inteiras, porque há pessoas que fazem mais do que limpar os pesqueiros de peixe miúdo. Há aqueles que preferem sair da triste rotina de levar um dia inteiro a pescar coisas pequeninas, e arriscam. E por isso, conseguem. Um choco vivo, pescado à saída de Setúbal, pode ajudar. E depois, uma dose infinita de paciência. Um acreditar até ao fim que resulta, mesmo quando os colegas nos dizem que estamos a um pequeno passo de ser internados. Há que aguentar firme como uma rocha pela tal picada, mesmo que já venham aí os dois enfermeiros de bata branca que nos levam em braços para o hospício. Há que acreditar. Experimentem um dia a pescar um  grau acima daquilo que fazem habitualmente. E no dia seguinte, se não tiverem sorte no primeiro. Antes de cortarem as veias dos pulsos, tentem entender que a riqueza do ecossistema onde estão a pescar está directamente relacionada com os resultados obtidos.

Não adianta tentar pescar peixes que não existem na zona onde pescam. Nem adianta imaginar que o mar é todo igual, porque não é. Perceber o que o peixe está a fazer ali, àquela hora, e porquê, é o mais importante. O resto deixe com os fabricantes das canas, dos carretos, das linhas. Eles são competentes a produzir bons materiais.

E você, é competente naquilo que faz? Sabe dizer com segurança o que vai pescar nesse dia, antes de pescar?


Vítor Ganchinho




1 Comentários

  1. Um belo e precioso texto de se lhe colocar o chalavar. Paciência e peixe é uma boa ligação...quando aplicadas com a técnica conveniente, acresce às boas memórias o registo de belos troféus... dos pequenos não reza a História,
    Abraço!!!

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