TEXTOS DE PESCA - Profissão: Pescador de linha adormecido


Conto-vos isto em três tempos.


Há trinta anos atrás, comecei a visitar o Senegal com regularidade. Fiz daquele país o meu refúgio de férias, pela quantidade de peixe que tinha, quer para caça submarina, quer para pesca à linha. Mas também pela forma calorosa e amiga como eu e os meus amigos eramos recebidos, cada vez que saíamos de férias para a ponta mais ocidental de África, a ponta de Les Almadies.
Situada na altura a 12 km de Dakar, hoje, muito mais evoluída, com algum comercio local, com um  pequeno hospital, pouco tem a ver com a aldeia remota que eu conheci.
Na verdade, com construções ao longo da estrada, já não se consegue distinguir onde acaba a cidade e começa a “petit village” de N`Gor, onde passei tantas semanas seguidas de férias. 

Sempre me deixou curioso o facto de existir uma pessoa numa ponta de pedra que, com bom ou mau tempo, com sol ou com chuva, estava no seu posto, a pescar. De manhã, à tarde, à noite, o Soni não arredava do seu posto.
Pescava aquilo que entrava na baía, baixa, de poucos metros de água, com aquilo que havia na baía. Começava com caranguejo que apanhava na zona baixa das pedras onde se sentava.
Com o caranguejo pescava pequenos peixes, e com esses peixes vivos, pescava os grandes peixes.
Invariavelmente, oferecia-os. Nunca pescava para ele, nunca levava um peixe para casa. Pescava todo o dia, todos os dias, todo o ano, e o resultado da pesca era aquilo que menos lhe interessava. 

Comecei a simpatizar com ele anos depois de o conhecer. Pessoa muito reservada, de poucas falas, tinha um ritmo de conversa que me esgotava a paciência, de tão lento. O Soni nunca tinha pressa. 
Para mim, era bizarro ele colocar a cana sempre no mesmo sitio da rocha, um pequeno buraco onde ficava firme, lançar sempre para o mesmo sitio, e cruzar os braços sempre da mesma maneira. Era desesperante olhar para ele, porque normalmente um pescador esforça-se por pescar, quer saber se pode melhorar, quer saber se há peixe no sitio para onde lança a sua isca. Ele não queria de saber de nada. Era-lhe indiferente.
Depois de pescar um ou dois peixes, pura e simplesmente deixava-se dormir. Com ou sem peixe a picar, ele dormia. Quando acordava do seu cochilo, retirava o peixe da linha e voltava a lançar de novo.
Por vezes, os atuns entravam na baía e era a guerra total, com pequenos peixes de meio quilo, um quilo, a saltar por todo o lado, no meio da espuma. Vi isso dúzias de vezes. Os atuns entravam, comiam e saiam, no espaço de minutos. Mas nunca o vi tentar pescá-los. 
Onde tinha a linha era onde esta ficava. 

Reparei a dada altura que guardava os seus anzóis e pedaços de fio de nylon, …no seu cabelo. Espetava os anzóis na carapinha, sempre suja, sempre mal cuidada. 
Recordo-me de pescar lagostas ao mergulho para ele. Oferecia-lhas e vinha a saber que minutos depois por sua vez já as tinha oferecido ao primeiro que passava. E eu continuei a oferecer-lhas….


As lagostas vivas que oferecia ao Soni.


Ao longo de muitos anos, sempre me interroguei o que estaria a fazer aquele estranho personagem, sempre virado para o mesmo sitio, sempre encostado à mesma pedra, em tom contemplativo. 
Uns anos mais tarde, por curiosidade, perguntei a outras pessoas o que fazia o Soni na vida. A resposta não podia ser mais desconcertante: “ele limita-se a estar vivo”.
O Club Med Almadies, nome que advém do tipo de barcos locais a que os portugueses chamaram de “almadias”, nos tempos em que fazíamos negócio com escravos naquela região.
Visitar a ilha de Gorée é visitar um mundo do qual nós portugueses não nos podemos orgulhar nem um pouco, mas que existiu. Trata-se de um local onde os negros eram colocados dentro de cubas quadradas com água do mar, durante dias, atados de mãos e pés com correntes, para poderem ser embarcados rumo à Europa. As misérias humanas da Europa estão ali bem expostas para quem as quiser ver. Nunca senti da parte dos meus amigos senegaleses qualquer ressentimento ou mau estar. 

Estas crianças trabalham desde tenra idade, para garantir o seu sustento. Os nossos filhos teriam vergonha das suas exigências europeias, se soubessem aquilo que é pedido por estes miúdos ao fim de um dia de trabalho de 16 horas: …pão. 


Voltando ao tema, fiquei a saber que todo o espaço de terreno de alguns quilómetros quadrados em que estava instalado o Club Med, tinha sido propriedade de seu pai.
A venda à organização francesa apenas tinha sido possível depois de conseguido um acordo escrito, que garantia ao pequeno Soni permanência vitalícia naquele pontão de rocha, uma cabana e comida suficiente para cada dia.



Quarenta anos depois, o Soni fazia aquilo que tinha aprendido a fazer desde miúdo: pescar e esperar a passagem do tempo. De pesca sabia o suficiente para obter algum peixe, de que não necessitava. Penso que ele era bem melhor a gerir o tempo. 

Será essa a figura que fazemos quando nos dirigimos à nossa cadeira de escritório? Quando assumimos a mesma posição, dia após dia, horas e horas, matraqueando as teclas do nosso computador, colocando os braços na mesma posição, olhando o mesmo ecrã? Que estaremos a fazer de diferente?


Vítor Ganchinho


1 Comentários

  1. "Cada dia que passa é uma página do livro que nos compete escrever". Viver não custa, custa é saber de quê, como e porquê e dessa equação resulta o quanto se vive. Saber estar em paz e harmonia
    com os semelhantes e com a Natureza, tranquiliza nossos dias e faz-nos felizes no desfrutar deste belo paraíso chamado Terra, que dizemos nosso.
    Obrigado por partilhar estas linhas, com anzóis que nos prendem à vida.

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