Ao longo dos anos, e mercê de milhares de horas de mar a mergulhar, a espreitar nos recantos, a meter a cabeça nos buracos, sempre tive e guardei alguns animais de estimação.
Alimentei safios e moreias, fiz festas a santolas, tratando-os como trato os meus peixes em casa, com o carinho que os seres vivos que dependem de nós exigem e merecem.
Um desses bichinhos de estimação, foi o meu querido lavagante Zacarias.
Descobri-o numa toca de safio, há muitos anos, e porque era muito pequenino, cerca de 200 gramas, resolvi dar-lhe “colo”, ou seja, passei a fazer daquele pequeno crustáceo “Homarus gammarus” nacional o meu lavagante de estimação. Assisti ao seu aumento de peso, com o enlevo de um “pai” que o tratou bem, que o alimentou com fígados de abrótea, filetes de tainha, bodião, etc. Aos poucos, fui testemunha da sua reacção positiva aos meus tratamentos, vendo-o crescer a olhos vistos.
Passou a fazer parte do meu roteiro, e admito que tive dias de ir ao mar apenas para colocar um filete na ponta do arpão e deixar essa comida na frente dele.
Reparei que cada vez tinha mais camarão à sua volta, o que quer dizer algo como isto: os camarões são comensais que estão sempre ligados a lavagantes e safios, aproveitam os restos de comida e ali estão protegidos dos sargos. Um lavagante não tem possibilidades de prensar um camarão nas suas pinças, mas tem a capacidade de dar uma apertadela valente num peixinho que se aproxime. Por sua vez, cumprindo a sua parte na simbiose, os pequenos camarões comem pequenos restos que seriam inacessíveis ao hospedeiro, o lavagante, e limpam a toca.
Um dia, um amigo do Alentejo veio visitar-me. O objectivo era o mesmo de sempre, dar um mergulho, fazer alguma água e caçar uns peixes para lhe oferecer.
O peixe fresco no Alentejo não tem o mesmo valor que tem em Sesimbra, vale muito mais!
Porque passámos perto da pedra onde tinha o lavagante, na altura já com uns 600 gramas, resolvi fazer as “apresentações”: Tenho ali um lavagante bebé, o meu Zacarias”.
Ao interesse demonstrado, acedi em dar-lhe as coordenadas do buraco, que de resto era fácil, a pouco mais de 3 metros. E lá foi ele, ver o bichinho.
Dei-lhe a informação de que, umas dezenas de metros mais à frente, havia uma mexilhoeira que costumava ter sempre alguns sargos a mariscar, pelo que não achei estranho que levasse a arma na mão.
Fiquei no barco a comer uma sandocha.
Daí a pouco, apareceu-me ao barco, e na ponta do arpão trazia…o meu filhinho Zacarias!
Fiquei tão furioso e aborrecido comigo próprio que acabei ali a caçada: Como pode ter feito isso ao meu animal?!!
_ Então, …isto come-se, vou levá-lo……
A partir daí, nunca mais cometi a mesma asneira. Sempre que adoptei um bichinho, e fazia-o muitas vezes com safios, passei a olhar para o lado e assobiar para o ar, ou passava longe, quando tinha um amigo no barco.
Também é verdade que as possibilidades que tive de “aperfilhar” outro foram reduzidas. É algo que apenas aparece em zonas muito pouco batidas, e normalmente muito fundo, fora do alcance do caçador submarino.
Eu, que caçava bastante ao buraco, não terei feito mais de cinco, em tantos anos de actividade.
Lembro-me da primeira vez que encontrei um. Estive a caçar no Espichel, e já de regresso a Sesimbra, resolvi baixar a uma pedra que fica mesmo em frente à vila, a 10 metros de fundo. Trata-se de uma pedra muito conhecida, e cuja dificuldade maior é mesmo a quantidade de barcos que passa por ali. Exige ao nosso barqueiro uma atenção redobrada, para não ficarmos feitos em hamburguer. Depois de ter feito dois bodiões e uma tainha para alimentar um safio que me ficava a caminho de Setúbal, acabei por dar com uma pequena fenda na rocha, e que tinha lá uma santola e um lavagante. Tanto azar quanto isto: o bicho tinha falta de uma pata!
Ei-lo, a coxear. Não deixa de ser uma pena porque o trabalho que dá é o mesmo. Sesimbra ao fundo.
Vítor Ganchinho