TEXTOS DE PESCA - Os nossos combates - A Corvina

Tenho trazido aqui algumas memórias de peixes que lutam, que fazem sair linha dos nossos carretos, que nos disparam a adrenalina no sangue. 

São sobretudo peixes longínquos, de outros mares, outras paragens. E os nossos?

Também os temos, e pese embora cada vez menos, por má gestão da nossa parte, eles continuam a passar pelas nossas costas, pelas nossas praias, pela foz dos nossos rios. 

Falamos de corvinas, de meros, de safios, e de tintureiras, os tubarões azuis. Esses são os nossos pesos pesados, em Portugal continental.

Vamos nos próximos artigos passar os olhos por estes peixes bonitos que têm passaporte com carimbo português. 

 

É deste tipo de peixe que falamos hoje, as corvinas. São capturadas à caça submarina em África, junto a navios afundados, locais onde fazem a sua ronda à procura dos pequenos peixes que se escondem nas chapas. 

Não é um tiro particularmente difícil, é mais uma questão de oportunidade. Veja este vídeo, feito em águas verdes: 

As corvinas são um caso gritante de má gestão. Ao permitirmos a pesca, quer profissional quer lúdica, durante os meses de desova, e são basicamente Abril, Maio e Junho, estamos a dizer que não queremos que estes nobres peixes se reproduzam. Estive há dias no mercado de Setúbal onde um exemplar com 49 kgs tinha no seu interior cerca de 4 kgs de ovas, ou seja, quase 10% do seu peso corporal. Sabemos que um exemplar adulto com 1,20 mts pode pôr cerca de 800.000 ovos, logo, um peixe com cerca de 2 metros estará bem acima de 1 milhão de ovos, um milhão de possibilidades de termos este peixe multiplicado.

Pelo tamanho dos linguados, conseguem ter uma percepção do tamanho destas ovas. Um peixe, duas ovas, ...4 kgs de venda no mercado, milhões de promessas mortas. 

A nossa Argyrosomus regius, corvina-legítima, poderia ter-nos dado umas dezenas de filhotes, a serem bem sucedidos. Sabemos que apenas uma pequena e ínfima parte dos ovos irão resultar em exemplares adultos, mas ainda assim, a aposta tem de ser na reprodução, na tentativa de o conseguir...e não na morte do exemplar. Porque essa garante-nos continuidade zero. De resto, são estes grandes exemplares que mais possibilidades têm de ser decisivos na propagação da espécie nas nossas águas. Fazem falta ao nosso mar, onde, sem sombra de dúvida poderiam ser um atractivo extra para a pesca lúdica. Mais ainda porque comem sobretudo aquilo que nós não nos importamos que comam: tainhas do rio, chocos, cavalas e sardinhas. 

A cor cobreada deste peixe é uma maravilha. 

Sabemos alguma coisa sobre corvinas: Entram nos rios, em águas baixas, para reproduzir, e sofrem aí autênticos massacres. A sua forma de reprodução é em grupo, as fêmeas lançam os ovos, e estes são fecundados pelos machos, em águas rasas, turvas, de poucos metros de profundidade. Os locais são perfeitamente previsíveis, conhecidos de todos, e por isso, aquilo que se faz é uma chacina. Há muito poucos lugares de desova com a importância que tem o nosso Tejo, em todo o mundo: Nilo, Guadalquivir, Costa da Mauritânia e no estuário do Gironde, em França, junto a Bordéus, onde tenho um amigo que mergulha e as vê. Creio que farão o mesmo na foz do Guadiana, em Vila Real de Sto. António, de qualquer forma, a reprodução em grupo conforme é conhecida, é feita nestes locais. E é um momento dramático na vida destes peixes, porque é ali e naquele momento que se joga ao futuro da espécie: se quando as corvinas se juntam para reproduzir, as pescamos com redes e anzóis, se não as deixamos criar descendência, …o que fica? 

 

Capturam-se toneladas de corvinas num momento particularmente crítico para a espécie…bastava respeitar um defeso de 3 meses durante meia dúzia de anos e teríamos corvinas em abundância para todos.

Trata-se de um peixe magnifico, pelo seu comportamento, pelo seu poder, pelo facto de suportarem águas salobras, com muito e pouco sal, enfim, um peixe que merecia melhor atenção e mais carinho. Porque raramente têm água com visibilidade nas zonas estuarinas, a corvina tem perfeitamente desenvolvida a solução de recurso dos peixes que não podem ver: A linha lateral destes peixes é muito eficaz, perfeitamente visível, e de resto, aquilo que primeiro se vê quando as encontramos, porque brilha e chama a atenção. Vejam este pequeno vídeo, feito em águas verdes, e por isso com muito pouca qualidade: 

A corvina tem no seu interior, junto ao ouvido interno, três pares de otólitos, dos quais apenas um é visível, pela sua grande dimensão. Trata-se de uma substância dura, a lembrar pedras brancas. Na verdade, forma-se a partir de carbonato de cálcio e proteínas, que se vai formando ao longo dos anos, como os anéis de crescimento de uma árvore, e permite determinar a idade do exemplar. Estes otólitos fazem parte do mecanismo de equilíbrio corporal do peixe, e o curioso é que em França, no século XVI, eram conservadas como um amuleto para proteger o seu portador do aparecimento de cólicas renais. Tinham mesmo o nome de “Pedras de Cólica”. 

Trata-se de um peixe que cresce rapidamente, pelo que a sua criação em cativeiro já é praticada no nosso país. São capturadas por todo o sotavento e barlavento algarvio. Aí, as corvinas de Vila Real de Sto António, Pedra do Gigante, Pedra do Cajado, Pedra da Galé, Arrifana, etc, dão alegrias a quem as pesca com lulas vivas, ou chocos. Os exemplares capturados mais a norte, rio Sado, são peixes mais pequenos, no Tejo aparecem alguns exemplares de grande tamanho, mas a maior densidade de capturas refere-se a juvenis, com cerca de um quilo, as rabetas, o que não deixa de ser uma lástima. Significa que não sabemos ou não queremos gerir aquilo que o mar nos dá. Estes exemplares juvenis passam os seus primeiros anos de vida em estuários, fazendo migrações entre as águas dos rios e as zonas costeiras baixas, de 20 a 40 metros, ao longo da costa, e tendo como factor determinante a temperatura da água. Com águas mais quentes da Primavera, de 17 a 22ºC, entram nos rios e de Inverno, quando arrefecem a 13 a 15ºC, fazem a saída para o mar. Aí, o caranguejo pilado pode também fazer parte da sua alimentação, e faz o nosso peixe crescer um mínimo de 30 cm/ano, o que é notável.

As cores deste peixe são espectaculares. José Vilarinho com mais uma das suas lindíssimas corvinas algarvias. 

 

Tratando-se de um peixe que aos 40 anos de idade atinge os 2 metros de comprimento, e cerca de 60 kgs de peso, este é um bom exemplo de algo que deveria ser preservado por nós, para as gerações futuras. Não o estamos a fazer. Para quem se refugia no facto de a legislação apenas referir 42 cm como tamanho mínimo de captura, pois a minha opinião é de que este tamanho deveria subir aos 100 cm, e rapidamente. Temo que se venha a passar com elas o mesmo que com o atum vermelho: quando começou a escassear, o preço subiu. Porque o preço subiu, a procura deste tipo de captura foi mais incisiva, mais dirigida, mais apelativa, e daí levou ainda a uma maior escassez…. 

Por este andar, vamos acabar com as corvinas, da mesma forma que acabámos com as grandes douradas de Setúbal. Já as estão a pescar com 30 cm….e a justificação é que a lei permite capturar indivíduos com….19 cm. O que é uma dourada de 19cm?....e se fossem todas lançadas à água até atingirem 40 cm? Se não deixam descendência, quebra-se um ciclo de vida e ficamos todos mais pobres. 

Conto-vos duas situações e que participaram corvinas: 

Situação 1- Estava com o meu amigo Francisco Amante, o Chiquinho, rapaz de Beja. Uma alma boa, alguém que nasceu para ser amigo de toda a gente. Já para o mergulho, menos bom. Tínhamos ido para o Regueirão dar um mergulho numa zona com cerca de 15 a 18 metros de fundo, com água super limpa, azul vidro. A dada altura eu encontrei uma fenda cheia de sargos e douradas, e como de costume, deixei-os calminhos, para que fosse o meu convidado a fazer uns peixes, ele que vinha de tão longe. Desceu duas vezes e não encontrou a fresta. Desci com ele, indiquei-lhe o sítio, e aí percebi que estava o assunto controlado. Com a zona marcada por uma bóia, com um fio e um chumbo encostado à fenda, não podia falhar. Fiquei à espera dos resultados. Baixada após baixada, não acontecia nada. Fui perguntar-lhe de que estava à espera para lhes dar, antes que fossem todos embora. Que estava à procura das douradas, mas não as via. Trata-se de um peixe que deve ser deixado para o fim, mesmo que sejam grandes, porque a dourada entocada é muito pouco esperta, não se defende, apenas fica estática e encostada às paredes escuras. Por isso, os sargos devem ser tratados primeiro. Mas dado que o objectivo dele era uma dourada, resolvi descer e trazer uma para cima. Havia umas dez na fresta, e todas do mesmo tamanho, cerca de 1,5 kgs. Arpoei a que estava mais fora do buraco, para obrigar os outros peixes a entrar um pouco mais, para se resguardarem, e é nessa altura que, com a mão no arpão e a puxar a dourada para cima, olho em frente e vejo cerca de duas centenas de corvinas com os seus 10 kgs de peso, paradas, a olhar para mim. Com água azul, aquela visão é algo que nunca esquecerei, e aqueles quatro ou cinco metros de distância que me separavam delas pareciam nada. Senti-me parte do cardume! Muito calmas, brilhavam aos raios de sol que entravam na água e os seus pontos da linha lateral reflectiam uma lindíssima cor cobreada. Não voltei a vê-las. Fui ao barco à procura de uma arma maior e mais potente, e quando cheguei tinham desaparecido. 

Situação 2- Estava na Arrifana, a caçar com o meu grande amigo Zé Vilarinho. Ele caça bem, desce bem, e é rapaz para fazer coisas grandes. Procura trazer os melhores peixes que existem na zona e não …muitos peixes. 

Naquele dia, eu estava infernizado com uns robalos que teimavam em aparecer e desaparecer, junto à Pedra da Agulha, hoje reserva, e que sempre teve e continuará a ter das maiores concentrações de sargos e robalos do país. A dada altura vi que o meu colega se tinha afastado umas centenas de metros. Na caça sub, a grande verdade é que estamos sempre sós, mesmo quando temos alguém a dez metros de distância. Esqueçam a história de nos vigiarmos uns aos outros, de zelarmos pela segurança dos outros, etc. Quando se mergulha, estamos por nossa conta, e ninguém nos vai valer quando acontecer um acidente. Somos encontrados a seguir, mas já fora do tempo. Se querem saber a minha opinião, só há uma forma de termos o nosso colega sempre atento ao nosso desempenho, e vice-versa: TER UMA ARMA PARA DOIS. Nesse caso, e aconteça o que acontecer, o nosso colega vai estar sempre junto a nós, porque sabe que a seguir é ele a descer. E precisa da arma. 

Neste dia, eu achei por bem ir ver o que ele estava a fazer, tão longe do barco. Contou-me então que tinha ouvido o roncar delas (as corvinas roncam debaixo de água e comunicam umas com as outras dessa forma) e por isso, deixou-se descair na corrente para as encontrar. Em boa altura o fez, porque trazia uma debaixo do braço com uns ….45 kgs!...

Fiz esta foto há muitos anos, a bordo do Foca, um barco que era uma lástima. O Zé Vilarinho era mais novo, e estava seguramente em muito melhor forma, mas quem sabe nunca esquece, e estou seguro que ele continua a saber onde estão as grandes corvinas algarvias. Este peixe tinha 45 kgs.

Vítor Ganchinho