TEXTOS DE PESCA - Pesca rija à perca rija

Não estou aqui para enganar ninguém! Por norma vocês sabem que procuro encontrar motivos de interesse para escrever artigos de pesca diferentes daquilo que é mais corrente. Vocês sabem disso. O que sai da pena dos nossos lusos escritores são as habituais seis páginas sobre a bóia de pião, uma resma delas sobre a técnica de amassar o asticot na pesca à carpa, mais uma dúzia e meia de páginas a explicar como fazer um nó direito. Poupem-me a vulgaridades. Eu escrevo sobre temas originais, coisas que saem fora do trivial das revistas da especialidade. Ou não escrevo. 
Pese embora a fraca aceitação da generalidade dos meus artigos, e do já habitual e dispensável coro de assobios e lançamento de tomates, penso que nem sempre foram justos. Foi miserável a vossa análise a um dos meus melhores textos:  “ A pesca à rã nas valas dos pomares de Pinhal de Frades”. Ainda assim, e a pedido de várias famílias, volto desta vez à carga com algo de novo: a pesca no gelo à perca rija!. 

Uma perca que vive neste ambiente tem de ter coragem e um cobertor de lã…


O cenário desta vez são os bonitos lagos finlandeses. A Finlândia é o país com mais lagos na União Europeia, com cerca de 188.000 reservas de água, ou seja, superfícies de água parada com uma área superior a 500 m2. 
Com mais de 10.000 m2 eles têm cerca de 55.000 lagos, o que diz bem da importância que estas massas de água têm para este país. 
E todos os lagos têm peixes! A perca é o peixe mais comum. 

As paisagens são de cortar a respiração, mas a pesca é de fugir a sete pés.


Temperatura ambiente de dia a rondar os -12ºC, céu cinzento chumbo, e neve. Muita neve! Neve até cair de costas, um manto branco até perder de vista, a sugerir que alguém se diverte lá em cima a polvilhar de farinha tudo aquilo que podemos ver, nas poucas horas de dia que temos. Na Finlândia temos agora cerca de cinco a seis horas de luz, sem sol visível. Trata-se de um país frio, com um registo mínimo de -51.2 ºC, o que impõe algum respeito a um alentejano de Moura como eu, sem o tradicional capote de lã de ovelha à mão. Os lagos, gelados durante grande parte do ano, escondem uma surpresa agradável: têm peixes. Logo, fomos a eles! Enchouriçado em roupa até mal conseguir dobrar os braços, com uma colecção de pares de meias até caber nas botas de neve, feitas em pele de rena, lá fui marchando sobre o gelo até meio do lago. O nosso guia, o simpático Joonas Hokkanen, nascido na zona de Oravi, é um optimista por natureza. Porque só um individuo muito optimista consegue encontrar motivos para sair à pesca num dia em que a sensação térmica ronda os – 20 ºC, com vento. Um vento cortante, que gela os ossos em segundos, que nos faz amaldiçoar este vício pela pesca, pelos peixes. Pior do que tudo…o vento. É ele que nos gela o nariz vermelho, que bloqueia as articulações e nos faz pensar que a qualquer momento algo se vai partir. Mas cair uma orelha será sempre apenas mais um contratempo a juntar a todos os outros, e por isso, adiante. 
Falo-vos do material se prometerem não rir: a cana, carreto e demais equipamento, cabem no bolso do fato de neve. E na verdade não faz falta mais, a cana de 30 cm é mais do que suficiente. O carreto em plástico poderia ter saído em qualquer máquina de brindes para miúdos, e tem pouco mais do que 10 metros de linha de nylon 0.30mm, um anzol mosca e um peso para levar aquela tranquitana para o fundo, que é logo ali. A profundidade não excede os 2 metros. 

 equipamento é de rir.


Como isca, um anestesiado asticot branco que, de tão enregelado, não sente sequer ser cravado pelo anzol. E perguntam vocês sem curiosidade nenhuma: _Então e a essa profundidade, para que serve o peso? Pois, …tem a ver com o aquecimento global. Eu explico: há uns anos atrás a camada de gelo teria em algumas zonas do lago uns bons 80 a 90 cm de espessura. Agora, e dadas as mais altas temperaturas médias essa camada não terá mais de 40 a 50 cm, sendo que a parte de cima, a que fica em contacto com o ar acumula uma camada de 10 cm de neve que derrete e forma poças de água por onde temos de caminhar. Esta camada abate sob o peso dos nossos pés, e molha-nos as meias, os pés e a alma. Os buracos fecham ao fim de algum tempo, e o peso serve para vencer a primeira barreira de flocos de gelo, que se acumulam no “pesqueiro”.

O pesqueiro…


Onde pescamos? Todo o lago é potencialmente pescável. Recorrendo a um driller, uma maquineta manual que mais não é que um abre buracos afiado, cortamos gelo até conseguir um buraco com cerca de 15cm de diâmetro, por onde iremos pescar. O nosso guia animou-nos: “o peixe nesta altura tem um período de actividade de cerca de 10 a 15 minutos por dia. Acontece e não se sabe nem quando, nem onde, nem porquê”. É reconfortante saber isto, sobretudo para quem faz da pesca uma boa razão para correr mundo com a família. 

As minhas filhas, a Maria Teresa de 14 anos e a Mafalda, de 10 aninhos, olhavam para mim a abrir buracos com um frenesim só comparável a um empenhado cabo-verdiano das obras.


O critério é nenhum, é tudo gelo por todo o lado, logo aplica-se um princípio de fé, toda a fé que se pode ter naquele cenário dantesco. Mais cépticos ficámos quando o guia nos disse: 
_ Vocês abrem um buraco e experimentam durante uns cinco minutos. Se não der nada, voltam a abrir outro a alguns metros. Eu ontem estive aqui e abri uns 100 buracos. Não tive nenhuma picada. 

Cerca de 100 buracos e zero picadas. Um trabalho de cantoneiro…


Convenhamos que para quem está habituado a pescar em Setúbal, terra de peixe, não deixa de ser desolador. E explica o ar extasiado dos finlandeses quando contratam os serviços de guias de pesca da GO Fishing Portugal. 
Connosco, eles fazem uma centena de peixes, e param quando estão cansados. 
Ao fim de uma hora e meia de pesca, o resultado era de uma simplicidade olímpica: zero peixes. Explicação do guia: 
_ É o que dá estes calores…os peixes deslocam-se um pouco mais debaixo do gelo e por isso nunca sabemos onde estão. Podem estar em qualquer lado e podem estar todos juntos. 

Com zero picadas, ..o artista arrefece de corpo e alma. 


Ao fim de mais meia hora, o nosso guia levantou os braços e exclamou: 
_ Finalmente um peixe!
Fomos todos a correr na sua direcção. Eu não via nada. Aproximei-me mais uns metros e não via nada. A menos de dez metros continuava a não ver nada. Já disse à minha Lena que tenho de mudar as lentes, que tem de me marcar uma consulta para o oftalmologista. Quando cheguei junto do eufórico Joonas, vi então o “peixe”. Ora bolas! Com o moral mais em baixo do que a gelada temperatura ambiente, perguntei o que iria ser o almoço. 
_ Vamos comer peixe. 
_ Qual peixe?
_ O peixe que pescarmos hoje... 

Isto era o maior e único peixe do dia.


Tenho corrido o mundo de cana na mão e não me lembro de sentir tamanha sensação de desconsolo. A Mafalda pregou um grito. Um peixe, pensei. Afinal não, ela tinha apenas espetado o anzol no dedo. Mas o nosso guia tinha uma cartada na manga: 
_ Como nos últimos dias as pescarias têm sido menos boas, ( ….!), nós deixámos umas redes estendidas, para garantir o sucesso da pescaria. 
A palavra sucesso fez tilt na minha mente, como se de uma máquina de flippers se trata-se. Afinal íamos mesmo ter algo para o almoço, algo mais do que aquele “saramugo” minúsculo de 30 gramas, para dez pessoas. Porque quer queiramos quer não, mesmo comendo as barbatanas e as espinhas, um peixe de 30 gramas a dividir por 10 pessoas dá…3 gramas a cada um. Não é caso para termos de tomar uma pastilha Rennie a seguir, para auxiliar a digestão. 

Fomos então levantar as redes. 

 


Digo-vos que se trata de um super engenhoso sistema de colocação da rede, debaixo do gelo, com séculos de utilização. Um “Sputnik” de madeira com um grampo circular de ferro é lançado a partir de um buraco. O grampo faz de mola, e impulsiona a tábua. Esta, porque flutua, vai sempre encostada à camada de gelo inferior, fazendo barulho. É esse ruído que diz onde se encontra o sistema. Quando se conseguem deslocações de cerca de 60 metros, é aberto um novo buraco, na zona de localização do ruído. A madeira, com uma ponta da corda atada, permite depois puxar a rede, que fica esticada entre os dois pontos. Os buracos são sinalizados com um ramo de cada lado. Os buracos não fecham porque é colocada uma prancha de madeira grossa, que o impede. 
Há porém um senão: enquanto no nosso mar existem correntes, ventos, marés, que fazem deslocar os cardumes, ali, naquele mundo congelado e escuro como breu, nada acontece, nada mexe. Logo, as deslocações de peixes são menores, lentas e isso dificulta muito a acção da rede. As capturas são diminutas. E foi isso mesmo que se passou: depois de recolhidas as redes, apenas dois peixes pequenos, de cerca de 25 cm, estavam presos. 



No espÍrito de cada um de nós uma ideia começou a formar-se: o almoço iria ser curto e minguado. A Lena, preocupada com as crianças, disse-me: eu estou sem muito apetite, deixo a minha parte para as meninas…



Retornámos à cabana de apoio. Assistimos a seguir a uma exibição de escortanhar peixe digna de um samurai japonês. Golpe daqui e dali, e reparei como ainda se pode reduzir mais aquilo que já é pouco. 
Ficou em nada. A minha gata Carlota iria certamente protestar daquele almoço reduzido à sua expressão mínima: um belisco de peixe a cada um. Esqueçam os Alka Seltzers, os bagaços digestivos, as voltinhas a pé para desmoer…

 

O famigerado guia dizia-me: _ Nunca sabemos quando é que vão picar. Amanhã até pode ser melhor….
Sim abelha, que eu agora vou ficar aqui de ameijoada à espera que os ditos comecem a picar desenfreadamente. Ir ali sofrer aquela inclemência de tempo, fazer 2500 km para aquilo…



No dia seguinte fomos todos fazer ski, conduzir trenós com cães, com renas e tudo aquilo que se pode fazer longe dos lagos gelados. Deixámos a pesca rija para os finlandeses de barba rija. 
Vão-se lá catar com a pesca no gelo, os pés embolados em neve, água a entrar por tudo o que é lado, …

 

Nem pensar em ir pescar outra vez, até porque tínhamos um encontro marcado com uma pessoa que vocês provavelmente também conhecem: o Pai Natal. 
Porque estávamos a 11 km da Rússia, em Kuusoma, na Lapónia, junto ao Circulo Polar Árctico, pareceu-me por bem fazer uma visita a casa deste amigo de longa data. 
Pese embora seja das pessoas mais viajadas do mundo, tivemos sorte: estava em casa. 

A minha Mafalda em estilo, a viver um grande dia.


Trocámos presentes: nós oferecemos sorrisos e alegria, e ele retribuiu com amizade e paciência com estes portugueses que não param de fazer fotos de tudo e todos. 

A Teresa a enviar postais de Natal para as amigas em Lisboa. O curioso é que esses postais chegam mesmo ao seu destino, o Pai natal trata disso.


Enquanto as miúdas faziam bolachinhas com a Mãe Natal, eu comentava aquilo em que se tornou o Natal hoje um dia: consumo e consumo. 
Ainda assim, e porque estávamos ali, no sítio certo, todos recebemos prendas e tivemos a possibilidade de escrever um postal a pedir um desejo para o Natal de 2020. 
A título de curiosidade, aqui têm o resultado dos pedidos de prendas da família: 

Vitor Ganchinho: um carreto Stella 8000, da Shimano.
Mafalda Ganchinho: um pai novo.
Teresa Ganchinho: um pai novo.
Helena Neves Ganchinho: um marido novo. 



De retorno a casa, em Palmela, dei por mim a pensar que finalmente iria dormir num sítio mais quentinho do que aquele paraíso finlandês: ocorreu-me ir para o congelador do meu frigorífico…

Mais vale ir fazer umas descidas de sky, do que apostar na pesca. Para isso, ficamos em Sesimbra.


Na próxima oportunidade vou escrever-vos um artigo que também pode ter muito interesse para vocês: como retirar um anzol cravado na retina do olho. 


Vítor Ganchinho


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