Para todos os verdes de hoje, mesmo para os que nunca deram um passo fora do asfalto da cidade, que nunca abriram os olhos debaixo de água, e ainda assim se assumem como ecologistas. Para todos aqueles que defendem porque sim, porque defendem, sem se darem ao trabalho de questionar os porquês. Para o legislador da Reserva de Sesimbra. Queiram todos vós receber o meu muito obrigado pelo vosso esforço em manter este planeta habitável. Precisamos de todos. Há efectivamente todas as razões para defender este mundo em que vivemos, mas é bom que saibam porquê, que entendam o contraste do mundo de hoje e aquilo que havia há 80, 90 anos. Deixo-vos esta visão do “outro lado da ecologia”, dos tempos em que a palavra nem era conhecida. Este é um relato de uma outra forma de existir, que teve o seu tempo. Era assim em Portugal, um país cruamente, …pouco ecológico. Aqui vai um excerto de muitas conversas gostosas, horas e horas de puro prazer, com alguém que infelizmente já faleceu: o meu amigo Jaime Pereira, pescador profissional em Setúbal.
A poucos dias do seu falecimento, com 84 anos, ainda olhava o mar com ânsia de o ver. Ver e rever aquilo que toda a vida foi a sua mesa, a sua cama, os seus medos, as suas esperanças. No mar nasceu, no mar se fez homem, no mar encontrou o seu sustento. O tio Jaime nasceu na barca, de parto difícil, foi menino a trabalhar na barca, e só aos 17 anos experimentou dormir numa cama a sério, em terra. Um ano mais tarde, com o resultado de duas semanas de faina, comprou o seu primeiro calçado, umas botas de cabedal, na altura sempre feitas à mão. Situamo-nos em 1934. O pargo era vendido na praia, em canastas de vime, ao cento. As raias, qualquer que fosse o tamanho, (sendo frequentes os exemplares com 15 a 20 kgs), a 40 escudos, hoje 0.20 cêntimos, a dúzia. A santola a 10 tostões, 5 cêntimos, cada. Havia três compradores de santola em Setúbal. Curiosamente e segundo o acordo existente à época, trabalhava-se em jeito de consignação. Este acordo obrigava a que só se pagassem ao pescador as santolas vendidas…vivas. Nos meses mais quentes, dado o calor e a falta de meios, era frequente o pescador dos bichos ficar sem as santolas e sem o dinheiro. Perdia o resultado da faina do dia.
O Sado era outro, o azul mais azul. Havia pargos e pescadas dentro do rio. As raias eram salgadas e secas ao sol, e no tempo da guerra, enviadas para Itália, para alimentar os exércitos. Vinham homens do norte, sobretudo da Murtosa, fazer a safra do choco. Vinham e iam a pé. Apanhavam os chocos que subiam o rio para desovar, em dois palmos de água, na zona dos esteiros, (hoje Lisnave). Transportavam a dois as canastas com 100 kgs de chocos até á cidade, caminhando 8 km para vir vender ao mercado. Chegavam com os ombros em sangue. As pessoas hoje não sabem sofrer.
Ti Jaime era pescador de lagostas. Trabalhava na zona de Sines, ao tempo uma remota zona, com duas ou três casas. Por cada duas semanas de faina apanhavam trezentas lagostas, rejeitando todos os outros peixes que ficavam na malha das redes, largas, de 15 cm de lado. A safra durava de Maio a Setembro. Os mariscos, lagostas e lavagantes, eram colocados em sacos de rede fina, submersos no mar, os “redanhos”. Uma razão muito curiosa para serem redes de malha mesmo fina: as lagostas não deviam conseguir colocar as patas de fora, já que estas eram comidas pelos...sargos! Assim eram conservadas vivas durante 6 ou 7 dias, altura em que se procedia à descarga nos viveiros de Sines. Os principais clientes eram espanhóis, que as levavam para vender em Espanha. A dada altura, estes negociantes começaram a aparecer na zona com barcos espanhóis com viveiros no seu interior, e a pesca tornou-se intensiva. “ Os espanhóis abrasaram toda a costa em muito pouco tempo!” Não são de hoje os lamentos dos nossos pescadores, e os pescadores de todo o mundo. O peixe nunca será suficiente.
_ E escreve aí que no “Mar da Pôrra Azeda”, (em volta da Ilha do Pessegueiro), as lagostas tinham, no mínimo, 5 quilos!
Os exemplares com menos de 20 cm de carne eram devolvidos à água. “ Até porque os fiscais tinham sempre uma bitola no bolso. Para as lagostas e malhas das redes”... ria-se.
_ Nunca mais vi linguados acima de 1,5 kg! Apanhávamos muitos nas trinta braças. Eram pescados na Malha Grande e muitas vezes tínhamos de os ir vender a Sesimbra, aos restaurantes. A malta de Setúbal apanhava os que queria, com um tridente, em Tróia, não se conseguiam vender. Ninguém os queria.
Quando lhe perguntei como iam para Sesimbra, riu-se e respondeu-me:
_Daqui até ao Cabo Espichel, era canja! Eram só três horas até Sesimbra e mais uma hora e meia até ao cabo. À Pedra do Arcanzil era uma hora certa. A remos, claro. Saíamos com a maré a vazar, e depois era à força de braços. De quando em quando metíamos umas velas, mas era preciso cuidado porque aquilo faziam uns “salseiros de vento” na Figueirinha e não podíamos arriscar a virar as bateiras.
A minha cara séria, de quem acha que com um motor de 175 CV de Setúbal ao Espichel já é uma viagem maçadora, fez o Ti Jaime reagir:
_Olha, aponta aí que na lua Marçalina, ia-mos daqui a remar até à Arrifana, e vínhamos daí para cima a fazer em postas, a ver o que dava. Era até as mãos fazerem sangue. Os calos das mãos eram tão duros que os alfinetes dobravam e não espetavam na carne. Levávamos dias a remar….
_Mas Ti Jaime, então não aproveitavam as correntes?
_ As correntes aqui em Setúbal só são muito fortes à saída do rio. A partir do Cabo Apontado existia um veio de areia chamado “as Sepulturas”. Era o final da zona de correntes. Tinha este nome por ser o sítio onde iam aparecer os cadáveres dos marítimos que caíam à água. Cair era quase sempre sinónimo de morrer, porque a maior parte de nós não sabia nadar.
_ Então mas sendo assim, quantas horas levavam daqui até Sines?
_ Eh!...Saíamos daqui ao final da tarde, aproveitando o garruaço de noroeste que soprava sempre até às 9, 10 horas da noite, e depois era a remos. Chegávamos no outro dia de manhã, ao raiar da alvorada. Tínhamos remos de 25 palmos, e à vez ia um ou outro dormindo um pouco, com a cabeça deitada em cima da vela recolhida.
E o Ti Jaime desembrulhava as memórias gastas pelo passar dos anos:
_Olha filho, nós abrigávamo-nos na Ilha do Pessegueiro, protegidos dos ventos de Verão, de noroeste. Largávamos as redes à volta da Pedra Casca ( S. Torpes). A zona do Burrinho estava cheia de lagostas. Toda essa zona era pedra. As pedras aparecem e desaparecem, areiam e desareiam, temos de estar sempre à procura delas. Nos dias de água lusa, vêem-se cá de cima, as mais baixas, até aos 25 metros. Puxávamos as redes sempre à mão, já se sabe.
Perguntei-lhe como era possível conservar vivos os mariscos durante tanto tempo.
_Olha, nós atávamos um cabo com bóias a uma rocha no Pessegueiro, e esticávamos a outra ponta desse brandal com um ferro. Era daí que pendurávamos os redanhos, sem nunca tocarem na areia, senão as lagostas morriam todas. São coisas que a gente aprende com o mar. Eu quando nasci já tinha o cuspe salgado…
_ Mas Ti Jaime, e quando vocês vinham de longe, elas não morriam até chegarem a Sines?
_ O pior era vir para Setúbal do lado de Melides. Saíamos de lá ainda de dia, tínhamos de tapar os bichos com as nossas mantas de dormir molhadas, para não aquecerem, e só chegávamos no outro dia de manhã. No Verão não há ventos de sul que cheguem para encher as velas. Era sempre a remos. As algas (laminárias) eram em tal densidade que nem conseguíamos remar capazmente. Hoje já não há disso.
De facto, hoje já não há nada disso, os arrastões encarregaram-se da “limpeza” das algas, dos fundos, e a poluição ajudou a acabar com aquilo que era um verdadeiro viveiro de reprodução de peixe.
_Olha não sei se queres saber isto: as lagostas machos tinham de ser capadas. Elas têm umas “bocas” com uns bicos, e agarravam as outras pela barriga e matavam-nas. E mortas ninguém as comprava. Vai daí, partíamos-lhes os nervos dessas pinças, e já se acomodavam.
_Porquê as lagostas? Porque não pescar outro tipo de peixe?
_ Porque era o que dava dinheiro. Em Sines não pescavam com redes. Nem em Sines nem em Setúbal e Sesimbra. Era só ao anzol. Depois lá começaram a pescar a sardinha nas zonas de areia em frente ao Burrinho, para as fábricas de conserva de Sines. Mas eles não sabiam largar as redes! Eram uns artolas! O pessoal da Murtosa é que sabia fazer aquilo, e foi quem os ensinou…!
_ Então e os motores, quando é que apareceram, Ti Jaime?
_ Filho, eu era um progressista naquele tempo! A minha barca foi das primeiras a usar um motor. Era de 7 cavalos, a petróleo. Uma bomba! Arrancava com um depósito pequenino, a querosene, e depois passava a petróleo. Comprei a barca nova, por treze contos, (65 euros). Era a “S. Jorge”. Foi ao fundo com um magano de um vendaval. Ficaram lá dois empregados meus. Depois comprei outra barca com um motor semi-diesel, cuja cabeça tinha de ser aquecida com fogo, com um maçarico. O motor era um Scandia de 12 cavalos que comprei na casa Catela, em Lisboa. Aquilo já era um barco a sério, profissional. Praticamente voava dentro de água….
_ Imagino, Ti Jaime, o que não devia voar uma barca com 12 cavalos….por isso é que você já não tem cabelo.
_ Olha, com essa barca, apanhei muitos temporais, muito mau tempo. Julguei tantas vezes que ia morrer ali naquele instante…
Mas não morreu Ti Jaime. Nem a memória morre quando é transmitida. Isso fez de nós homens de mar, pescadores. Passamos aos mais novos aquilo que é ser português e havemos de continuar a fazê-lo.
Contou-me que, pelo ciclone de 1941, apanhavam-se grandes quantidades de peixe dentro do rio. Bogas e sardinhas obrigavam a limpar as redes rapidamente.
_ Aquilo era um Brasil!...peixe por todo o lado, a querer abrigar-se da tempestade, que ele havia uns vagalhões monstruosos lá fora. O peixe entrava para dentro do nosso rio, para se abrigar da tempestade. Grandes tempos! Em Sesimbra, apanhavam peixe-espada preto. Ia fora porque não prestava. Agora já presta. A sardinha é porque era peixe azul, peixe reimoso, fazia mal. Agora já faz bem. A cavala, no final de Fevereiro, princípio de Março, para as conservas, lá safava a gente, ia aguentando as nossas posses. Hoje ninguém a quer. Isto está tudo mudado. Se calhar já estou a maçar….
_ Vá falando à vontade!...diga-me lá como era essa coisa dos golfinhos….
_ Esses filhos da mãe?! Esses bandidos?! Rasgavam-me as redes, pá!...cheguei a levar oito dias em terra, a remendar redes dia e noite, à luz de petróleo. Quando ia, lançava-as de novo e num repente, já estava tudo rasgado outra vez. Num fósforo ia-se o trabalho todo embora. Aproveitava uns talhos aqui outros ali…eles conheciam as bateiras, e iam lá ter com a gente. Eramos nós a recolher as redes à pressa e eles a rasgar. Já os conhecíamos. Havia um que era o “Ribeiral”. Esse magano tinha a barbatana dorsal caída. Esse era um velhaco, um pulha! Comia-me os salmonetes todos. As redes eram de linha de ticum, fiado pelas mulheres varinas, e não tinham capacidade para aguentar os esticões daqueles gajos! Só deixavam passar a pata-roxa e os peixes que arranhavam na garganta...o resto mamavam tudo! E termina: “e ainda há quem proteja esses sacanas”!!?
_Tem de ser, Ti Jaime, senão qualquer dia não temos bichinhos daqueles no nosso mar…
Pouco crédulo, ele olhava para as mãos, outrora fortes, ásperas de remar contra a força das águas, do vento, a força da vida. Mas o braço mais forte, a mão mais forte, também se cansa, também tem um tempo. É de pessoas e mãos que falamos. O Ti Jaime faleceu com 86 anos, com Parkinson. As mãos que tanto lutaram pela vida, nos seus últimos dias já não serviam para agarrar nada mais do que memórias longínquas. Quanto saber, quanta experiência têm os nossos pescadores. Deixou-me a mim um legado de sabedoria, de conhecimento, que a cada dia me serve, me ajuda a decidir nas minhas saídas de mar.
Descanse em paz, amigo, nunca esquecerei aquilo que me ensinou e que um dia hei-de passar a quem vem a seguir. Porque vem sempre alguém a seguir.
Vítor Ganchinho
Muito intressante.
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