Frequentemente recebo perguntas sobre aspectos de logística, quantos quilos de carga levamos, o que comemos, que dificuldades enfrentamos, quando saímos do nosso país e vamos pescar uns peixes para outros lugares.
Vamos hoje analisar alguns destes pormenores, da viagem em si, a alimentação, as doenças. Tudo pode acontecer.
Depende sempre do país, em primeira instância. Num local mais remoto, o peixe é mais e maior mas as privações são proporcionais, …mais e maiores.
Por vezes a escolha dos locais depende sobretudo daquilo que estamos dispostos a sofrer para conseguir um peixe: da nossa idade, das nossas companhias, das perspectivas de conseguirmos peixes de excepção, e da nossa capacidade de adaptação.
O factor equilíbrio entre todos estes factores é decisivo na escolha dos lugares de pesca, e quase sempre condiciona os resultados finais.
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| Os Djabars, pargos de armadura coreácea, que aguentam “pancada”. Quando disparamos de frente os arpões resvalam. A solução é deixá-los passar e atirar de trás para a frente, a entrar na escama. Pescam-se bem com jigs. |
Se querem um local próximo com muito peixe, mas muito duras condições de permanência, aí vai: Mauritânia.
O peixe está lá, a rodos, Badejos, Raias Guitarra, Corvinas, Bailas, Pargos, Saimas, Chocos de 10 kgs, etc. Existem reservas marinhas em que é permitido pescar à linha, ( a caça submarina é proibida), e não há limites de pesca.
Mas em contrapartida há que dormir na praia, eventualmente numa tenda, comer o que o mar dá, ficar uma semana sem tomar banho, e saber que em caso e acidente, a distância até um possível ponto de socorro é de tal forma grande que muito provavelmente será fatal. Um corte, uma infecção, pode estragar umas férias. Os acampamentos mais conhecidos ficam a 300 km de um hospital, sendo que o caminho tem, pelo menos, 150 km de pistas que apenas são conhecidas pelos guias locais. Mais do que isso, não agrada saber que podem aparecer guerrilheiros que nos ficam com todo o material, ou connosco….a nossa vida ali vale aquilo que alguém quiser que valha.
Ter um contacto local ajuda muito, mas não resolve tudo. Não é permitida a pesca a embarcações de recreio, apenas se pesca de terra, (sendo a excepção os pequenos botes de 2 a 3 metros, que são operados pelos locais, para pesca de subsistência, e que não podem ser alugados). Para efeitos de comunicação, podemos levar uma pequena unidade de energia solar, que é suficiente para carregar um telemóvel. Mas não temos rede…
Como em tudo na vida, há que estabelecer uma linha, um limite, que não pode ser ultrapassado, sob pena de estarmos a trocar a nossa vida por um peixe. Vale a pena ir pescar nestas condições? Penso que não.
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| Aspecto dos nossos bungalows, quando ficamos em Sali, ao sul de Dakar. |
Faço pesca no Senegal vai para 30 anos. Sempre encontrei ali o melhor de três mundos: as condições logísticas, a segurança e a pesca. Trata-se de um país independente, francófono, com raízes profundas de ligação ao seu ex-colonizador. Por isso, e por haver a facilidade de comunicação da língua, muitos senegaleses procuram trabalho em França. Também por razões de baixo custo de passagens, e de proximidade, (a Guiné Bissau fica por baixo do Senegal), o tráfego guineense sempre aproveitou estas linhas aéreas para vir à Europa, fazendo escala em Dakar, aeroporto Leopold Sedar Senghor. Uma das companhias aéreas que mais transportes fazia, era a Air Afrique. O “modus operandi” era tão rudimentar que passou muito rapidamente a ser chamada de Air Tragique. E foi entretanto à falência.
A perda de malas, roubo do interior de malas, etc, fazia desta companhia uma coisa tétrica. Uma das medidas que era tida como obrigatória à saída de Lisboa e também no retorno de Dakar, era a pulverização de uma série de latas de spray insecticida sobre a cabeça dos passageiros. Era pressuposto não acontecer a propagação de insectos de um lado para o outro. De qualquer forma, há zonas piores que outras. Se tivesse de eleger duas das piores, seriam sem dúvida S. Tomé e a Guiné Bissau/ Bijagós. Aí, a prevenção e uma mala com medicamentos podem ser a diferença entre a vida e a morte.
Perguntam-me então porque razão eu e as pessoas que iam comigo escolhiam esta companhia e não outra. É ponto assente que os africanos que vêm à Europa pretendem levar no retorno a casa alguma coisa. Nesse pressuposto, e para evitar perda de clientes, a Air Afrique permitia transportar até 40 kgs de carga!! As malas são feitas quase sempre utilizando o sistema D de que já vos falei, o desenrascanço: a pessoa não traz malas, traz rolos de fita gomada. Compra o que pretende e a seguir passa fita à volta de tudo, roupas, objectos, até à exaustão. E faz uma bola, inclusivé com uma pequena asa, para ajudar ao transporte. Não me perguntem porquê, mas um dos ícones dessas compras, algo que todos transportam para África, terra de calor, são …edredons de penas, quentes. Para nós europeus, era interessante poder carregar sacos e malas de equipamentos de caça e pesca, sem ter de pagar excesso de carga, ou pagando menos. Muitas vezes, entre canas, carretos, amostras, material de caça sub, arpões, tínhamos 70 kgs. Naquela altura, era corrente transportar os cintos de chumbos às costas para dentro do avião, como bagagem de mão. Hoje é proibido, já que é considerado “arma de arremesso”.
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| Os incríveis voos da Air Afrique. Bem visível o cinto de chumbos do mergulho às costas. |
Recordo à data as minhas dificuldades de entrada no país, e dou-vos alguns exemplos para que entendam que fígado é preciso ter para ir lá e trazer as fotos dos peixes: à chegada, ficávamos dentro do aparelho durante o tempo necessário até a gare estar vaga de outros voos. Isso podia significar uma hora, a aquecer. Em seguida, era feita a saída direito a um autocarro estacionado a 20 metros do avião. Mais 30 minutos de martírio, porque o calor exterior é muito e as portas do autocarro são fechadas, para evitar saídas. Os passageiros agarram nas pegas do autocarro, e para isso levantam o braço. Com o pessoal meio anestesiado do cheiro intenso a sovaco, ao fim deste tempo, o autocarro faz 10 metros, abre as portas e deixam-nos sair. Ou seja, estivemos apenas a marinar, porque a porta de entrada do aeroporto era a que estava em frente ao autocarro, e por sua vez em frente ao avião, que está a 30 metros. Lá dentro, um artista de chinelos de enfiar no dedo, calções, camisola de alças, recolhe todos os passaportes da nossa mão. Vai perguntando a toda a gente se já entregaram os documentos. No fim disso, sobe a uma cadeira e chama as pessoas, que estão todas em seu redor, e começa a tentar dizer os nomes, sendo pressuposto que nós consigamos entender o que ele diz. Ouvir a nossa versão de nome dita daquela forma, é sempre um momento único, sobretudo alemães, nórdicos…que têm nomes que um senegalês nunca saberá pronunciar. Ao ser chamados, vamos levantar o passaporte. O resultado prático disto é uma nulidade, já que aqueles que não lhe deram o passaporte, …não são chamados, e estão ali ao nosso lado. A seguir, entramos para uma outra sala, onde é pressuposto mostrarmos novamente o passaporte. Na verdade, era o momento de começarmos a ter de pagar. Recordo-me da minha primeira vez, em que o “agente” que me calhou, ao olhar para a foto do meu documento, me disse. _Este passaporte é falso! Não é a mesma pessoa!... Eu, com a paciência que os anos de África me deram, peguei no passaporte, respirei fundo, introduzi uma nota de 10 francos lá dentro, e voltei a dar-lho. Resposta: _” Ah bom, este sim! A questão aqui é que a pessoa é a mesma, mas está com uma camisola de cor diferente. Parecia outro. Pode passar”...
Vítor Ganchinho
