TEXTOS DE PESCA - Adeus peixe… adeus Senegal.

Contar a morte de um país ….em meia dúzia de linhas. 


_ Esta sua mala tem 30 quilos!...isto pesa como chumbo! Obviamente não pode seguir!
_ Minha querida, por acaso trata-se da mala da roupa. É a mais leve. Essa até pode ficar cá, que eu pesco mesmo de tanga, à Tarzan. A outra é que tem mesmo de ir, a que traz os carretos, os cabeçotes de chumbo, os vinis, as Rapalas e os jiggs. Peça aí um empilhador à TAP para a levantar para cima do seu tapete.
_ Hugg!…Mas é impossível levantar isto. Não sabe que tem um limite de 20 quilos?!
_ Sei. Mas a minha avó Maria sempre me disse: “ netinho, quem vai para o mar avia-se em terra”. Ora é certo e sabido que eu vou para o mar. 
_ E as pessoas da Groundforce, que vão ter de carregar isto? Como é que eles podem ter capacidade para manusear esta carga? Vão ficar cheios de artroses!
_Quando é para levantar bem alto os cartazes a dizer que estão em greve, e que querem aumentos, não têm artroses. Aqui para nós que ninguém nos ouve, isso também é falta de genica sua. A senhora está franzina e escanzelada. Acabe com isso das dietas da internet. Ganhe forças! Coma pão com presunto, com azeitonas, com torresmos. Coma pão com toucinho! Quanto é a multa?
Nestas coisas da pesca, não convém facilitar. Muito menos quando a “guerra” é feita com pessoas como o António Pradillo e o Raúl Gil, de Valência. Eu sabia que eles iriam aparecer equipados até aos dentes. E apareceram, armadíssimos de canas e carretos. E pouca roupa. Seguiram num voo directo de Madrid para Dakar. Desta vez, solicitámos a um amigo comum, Carlos Rodriguez, da província de Leon, habitual fornecedor de filmes do canal Caza y Pesca, para captar algumas imagens com as suas camaras. A ideia era fazer um documentário da viagem. Riram-se quando lhes contei que na TAP, só para me fazerem o transporte de um tubo com 2.8 kg de canas, cobraram 200 euros de taxa. Malta amiga. Eles em Espanha pagaram zero, porque a companhia aérea deles entende que um pescador que vai a África,…tem de levar as canas. Ou não vai. 
O meu amigo Mohamed Cherif estava à nossa espera. Mais velho e mais gordo, com 48 primaveras, ainda é um dos melhores caçadores submarinos da sua aldeia, N`Gor. Mergulha todos os dias abaixo de 30/40 metros, para fazer uns peixes, para casa e para vender. Amigo de muitos e bons anos, mais de 25, tinha-me prometido barracudas gigantescos, pargos lucianos com fartura, e muitos badejos. Tangas…que queremos escutar antes de ir, porque nos animam. 
Alugar um barco no Senegal é neste momento muito fácil. E deve ser tratado no local, não feito previamente. Esqueçam a internet. Esqueçam os preços altos. Mais de metade da frota de pesca desportiva está à venda. Os proprietários de barcos estão pelos cabelos, com meses e meses de aluguer zero. Motivo: não há peixe! Motivo para não haver peixe: os senegaleses acabaram com tudo. “Lixaram” por completo todas as pedras até aos 80 metros. Dia após dia, cada pedra é visitada várias vezes, por uma matilha de “caçadores de garrafas”, que dizimam meros e badejos a um ritmo insuportável para a natureza. O peixe não se faz num dia.
 
Meros de 10 anos de idade, chacinados num segundo.


Para que entendam como se chega a este estado, deixem-me fazer-vos uma breve introdução. Tratamos de um país que goza de uma localização privilegiada no continente africano. As águas frias a 12/ 13º C que descem da Mauritânia no início do Inverno, trazem um tipo de peixe de qualidade, os meros, os badejos, pargos semeas, e muitas outras espécies que nos são comuns. No fim do mês de maio, dá-se uma inversão tremenda: as águas quentes chegam do sul, da Guiné-Bissau, carregadas de barracudas, pargos lucianos, cobias, veleiros, enxaréus, etc. É o momento esperado pelos pescadores locais: com águas entre os 27 e os 31ºC, ei-los que chegam, prontos para a matança. Apenas as pedras são as mesmas, os peixes mudam radicalmente. Com a chegada de peixes novos, menos desconfiados, inicia-se um período favorável para caçar e pescar à linha. O peixe vem dos mangais, de águas verdes, de zonas baixas onde os arrastões não conseguem pescar, porque encalham. Estranho seria ainda assim que os pobres peixes tivessem um minuto de descanso: a solução passa por contratar pescadores locais, guineenses, e também muitas centenas de senegaleses, os quais, a bordo das suas pirogas de pequeno calado, pescam naqueles baixios com redes de emalhar. Vão posteriormente vender as suas capturas aos barcos de grande porte, que os esperam ao largo. A Coreia do Sul, um dos muitos países asiáticos a pescar no Senegal, não fez por menos: ofereceu a construção de um estádio de futebol em Dakar, por troca de licenças de pesca para os seus armadores. Assim se vendem os recursos marinhos de um país. O negócio é de tal forma lucrativo que permite aos comandantes destes barcos-fábrica desplantes como este: ir todas as noites aos casinos, gastar milhares de euros em poker, roleta, máquinas, etc. Segundo o encarregado de um desses espaços nocturnos, falamos de 30, 40 mil euros por noite…por pessoa. 



Na Mauritânia, as zonas classificadas de reserva, permitem a pesca desportiva, mas não a caça submarina. Não entram armas e não entram barcos a motor. O único tipo de barco autorizado é o pequeno barco à vela, utilizado pela faina artesanal. Na circunstância, aquilo que é pescado regularmente é a tainha, a qual, depois de seca, serve de moeda de troca com outros bens.  Fora das reservas, ….é a guerra, com barcos-fábrica de inúmeros países, incluindo Portugal, a operar em continuo. Como sempre, uns mais legais que outros. 

Meros e garrafas de mergulho - um crime ecológico!


Mas não se fica por aí a desgraça: um artista senegalês, rapaz com olho para o ofício, resolveu potenciar o negócio da pesca na Mauritânia, contratando no Senegal, nas aldeias de Yoff, Ouacam, N`Gor e M`Bour, cerca de vinte caçadores submarinos, para matar peixes por atacado. Pagava então a 1 euro o quilo, o mero, o badejo e tudo o que sejam peixes ou mariscos capazes de venda. Está em descanso merecido, preso pelas autoridades do país. Que o conservem por lá de “férias” muitos anos. Como medida de retaliação por este acto tresloucado, as autoridades mauritânias expulsaram todos os pescadores senegaleses das suas águas. Se as condições no Senegal já eram más, …muito pioraram com a chegada de mais umas centenas largas de embarcações, a fazer concorrência aos milhares de pirogas que já existem localmente. E que pescam todos os dias, numa pressão sobre o peixe absolutamente insuportável. 
 
À vista de todos: garrafas para “caçar”.


O povo senegalês é rijo, luta pela vida o quanto pode e agarra-se a tudo para poder sobreviver. Com ou sem ética, porque aquilo que conta é o dia de hoje. Aqueles que trabalham nos centros de pesca desportiva, e sobretudo os discretos ajudantes de skippers dos barcos de pesca desportiva, registam as coordenadas obtidas de cartas marítimas pelos seus patrões e …vendem os pontos de GPS. O sistema é simples e eficaz: O barco chega à praia, e vem carregado de peixe grosso. O ajudante é pressionado para dizer onde estiveram. Não diz à primeira nem à segunda. A seguir acenam-lhe com notas. Dar as coordenadas de forma discreta dá menos trabalho que transportar o equipamento de pesca. E a pedra é “vendida”. Trata-se de dinheiro fácil, uma boa pedra pode chegar a valer 300.000 CFA, cerca de 500 euros.
Todo o sistema montado ajuda a exterminar os recursos. Existem inúmeros compressores a carregar garrafas de mergulho, a operar em contínuo, dia e noite. 
 
A. Pradillo a pescar na baía, enquanto os senegaleses carregam as garrafas para mais um dia de matança.


É ver pela manhã bem cedo, a juventude local a largar para o mar, carregando as pirogas com armas, garrafas e com a esperança de chegar às melhores zonas antes dos outros. São dezenas de pirogas a sair diretas para os destroços de barcos afundados, para pedras que ficam cada vez mais longe da costa, cada vez mais fundas. Não se trata de possíveis mortes anunciadas: já morrem semanalmente muitos destes mergulhadores.  A semana anterior, mais calma, registou apenas duas mortes. Motivo: mergulhar a 70/ 80 metros, sem fazer quaisquer patamares de descompressão, utilizando duas a três garrafas por dia, como mínimo. Muitos jovens estão a morrer, ou ficam estropiados para sempre, com braços ou pernas pendidos, sem ação. Creem fortemente que os cornos de carneiros, as inscrições em árabe nas pirogas, conchas e outros feitiços, os seus “gri-gris” benzidos, os tornam invulneráveis. Discutem entre si a força maior ou menor deste ou daquele feitiço. No fim, ficam lá, agarrados a pedras que estão fundas, são reais, e não perdoam. Um contacto local explica-me a razão de não proibir de imediato este flagelo: as eleições para as “autarquias” locais obrigam a que não se mexa no assunto. Os chefes das aldeias sabem que proibir as garrafas, de momento a forma de conseguir algum peixe e dinheiro para o dia, significa perder o cargo politico, o emprego. 

Garrafas da morte.


Em conversa com um deles, procurei explicar que um mero vivo pode valer centenas de vezes o valor de um mero morto. Com uma aposta franca no turismo de mar, poderiam desenvolver o país. Os hotéis poderiam empregar muito mais gente, os restaurantes poderiam ter muito mais clientes, os táxis transportariam mais passageiros, a construção empregaria muitos mais operários. O mesmo mero poderia ser visto por muitos turistas, a pagarem cada um deles o valor a que agora estão a vender o animal morto. Significa multiplicar por duzentos o valor de um mero. Resposta dele: “Isso até me parece bem. Mas nós precisamos de comer hoje”. 
Sempre o hoje, o imediato, e a ausência absoluta de planeamento. Com todos os dados à frente dos olhos, …escolhem o hoje. Os filhos desta gente pagarão uma factura muito alta, por esta opção. As redes dos pescadores vêm hoje cada vez mais vazias. As malhas, anteriormente de 15 cm de largo, têm hoje 3 cm. No mercado de Soumbedioune, os peixes que antigamente tinham 10 quilos, têm hoje 0.5kg. Ou menos.  Vimos sobretudo peixe miúdo no mercado de Dakar. Os meros, mortos a tiro, são exportados para a Europa. Comprados a 3 ou 4 euros, e vendidos a 20 euros/kg. 



Os ciganos não gostam de ver bons princípios aos filhos. Nesse aspecto, as nossas pescarias começaram de acordo com o figurino cigano: mal que nem cobras pretas venenosas. Dou-vos o relato de alguns dos meus dias de pesca, para que tenham uma ideia geral de tudo o que pode acontecer por aquelas paragens. Calce o leitor os meus sapatos, ponha o meu chapéu, e venha daí, para fora do hotel: 
São 6.00h da manhã. Acordo sobressaltado com o despertador, com mais vontade de ficar que de sair. A minha mulher anima-me a ir embora, dizendo que está pouco vento. Por vezes penso que se quer livrar de mim. Ao fim de 20 anos de casados, deve estar farta de mim e das minhas parvoíces da pesca, até à raiz dos cabelos. Depois de a Lena ter passado com a roda do carro por cima da nossa cocker branca, acho que sou o próximo na sua lista de assuntos a tratar. Deixei de comer o seu esmerado pequeno-almoço, ovos mexidos com cogumelos vermelhos com pintas brancas. Davam-me azia e espumava da boca. Mas ela não desiste. Tenho a noção de que o facto de ela saber que pode vir a receber uma indeminização choruda de mais de 125 euros do meu seguro de vida, a leva a tentar de tudo para acabar comigo. 
O hotel só abre a sala de refeições às 7.00h da manhã. Saí sem comer nada. Os lobos também saem da toca sem comer, e não é por isso que se empenham menos nas suas caçadas, pelo contrário. O primeiro taxista da fila abriu-me a porta. Quando a fechei, fiquei com o manípulo na mão. A porta não caiu, mas isso não seria surpreendente de todo. Depois de cento e vinte tentativas de pegar o motor, e depois de eu já ter contado todas as rachas que tinha no pára-brisas, (não há táxis com vidro da frente da frente intacto, e muito menos algum que tenha menos de 30 anos), perguntei-lhe se achava que iria pegar. Garantiu-me que sim. Olhei para a quantidade de imagens do profeta que tinha pregadas ao tecto do carro com pioneses. É bom que se tenha fé, quando temos um carro daqueles. Inspirou-me a fazer o mesmo: pregar fotos de peixes no tecto do meu carro. 
Escusado será dizer que não pegou. Resolvi então sair para o segundo carro da fila. Pegou. Fiz em 15 minutos o percurso entre o hotel e a aldeia onde mora o Cherif. Uns 12 quilómetros. Paguei 3 euros. O taxista achou que eu era um cliente interessante, e perguntou-me se devia ficar na praia à espera que eu chegasse, para fazer o trajecto inverso. Disse-lhe que nesse dia iriamos pescar para o Kounke Djabar, a 70 quilómetros de Dakar, pelo que seria melhor não. Não havia ideia nenhuma sobre a hora da chegada. Podiam ser 8 horas, podiam ser 12 horas. Resposta: “Pelo sim pelo não, eu fico aqui à espera”. E quando cheguei, …lá estava à espera! Se querem um taxista fixe, aqui têm o contacto:  Ngagne Niang, chauffer de “táxi com climatização”, (lol), todos os destinos: 00221-777687913. Aquilo da climatização só podia ser brincadeira, porque eu passei horas dentro do carro e o pó e o vento entravam por todos os lados. O carro é um passador. Mesmo umas rezas valentes e a preceito não chegariam para vedar tantas rachas e buracos. Nem tapando com os livros do Corão que sempre faz questão de trazer no tablier. Mas a verdade é que nos dias seguintes, saiu sempre comigo de madrugada, e à hora da chegada, bem ao final do dia, lá estava ele na praia, à espera do barco. 
 
A. Pradillo e Raúl Gil, dois dos melhores pescadores europeus. Dupla de lírios feitos com jigs metálicos.


Primeiro dia de pesca, e primeira decepção. Pese embora os amigos valencianos tenham feito de início uma dupla de lírios de médio porte, até aos 10 kgs, e um ou outro pequeno atum, ficou-nos sempre um travo amargo na boca. Aquilo não era o que estava previsto. Estava francamente difícil. Nesse dia, apenas tivemos uma picada boa. Um peixe forte, que encostou a barriga do Raúl Gil à amura do barco. A cana toda vergada deixou-o a gritar por socorro. Este peixe, seguramente muito bom, roçou a linha de nylon de 1mm nalguma aresta do destroço, a 60 mts, e partiu. Visitámos mais barcos afundados, na zona existem dezenas, e o resultado era invariavelmente o mesmo: uma ou duas picadas de início, e adeus peixe. As segundas e terceiras passagens eram nulas. Terminámos o dia a pescar junto às ilhas Madalenas, a fazer light-jigging, aos peixes miúdos. Um dia decididamente para esquecer. 
 
Raúl com um lírio dos destroços. Há centenas de barcos afundados, ..com lírios por cima. 


Segundo dia de pesca. Durante uma hora, entre as 6.30h e as 7.30h da manhã, estive na praia da baía de N`Gor e assisti à saída de cerca de 50 pirogas. Mais de metade eram “caçadores submarinos” com armas e garrafas. Uma lástima! Encontrámo-los mais tarde no mar, a matar peixe sobre uma pedra a 55 metros de profundidade. Várias garrafas de reserva estavam ainda a bordo, esperando a sua vez. Ao fim do dia, uns quantos meros, badejos, e mais uma pedra vazia. Este não é o Senegal que sempre conheci. Tenho mais de vinte anos de experiência de pesca à linha e mergulho naquele país. Muito sofreram estes braços e estes pulmões naquelas águas. Isso dá-me hoje uma razoável capacidade de análise e permite-me comparar o que vi, e o que vejo agora. É outro mundo. Bem sei que aqueles mergulhadores podem fazer num dia, matando peixe, o mesmo que fariam num mês de trabalho em qualquer outra coisa, mas a verdade é que o bem que têm em mãos é finito, e cada vez estará mais fundo, mais dificil, mais massacrado. E a provocar mais mortes. 
Solução para nós no imediato: sair para longe, para pedras afastadas, espreitando a possibilidade de estarem menos batidas, mais descansadas daquela horda de “caçadores”. Saímos pois para o Kounke. Pedra mítica, muito longe da costa, a duas horas de navegação, onde já vi peixes gigantescos. Meia dúzia de lances, e já tinha a equipa toda a dormir: zero peixe. Pedi ao meu querido corvo cormoran negro, o sempre bem disposto Cherif, para ir ao fundo, ver o que havia por lá. Apenas alguns carangídeos, os blue runners, a meia água, e alguns pargos pequenos no fundo, a 35 metros, muito desluzidos. Muito fraco. Também ali, ao largo, se faz sentir a pressão dos caçadores. O peixe leva pancada um dia e outro, e sai das pedras, ou afunda para outras onde não é incomodado. O Cherif fez um pargo de 7 kgs para o jantar. Sei que em condições normais nem consideraria a possibilidade de atirar um peixe de semelhante peso, a 62 quilómetros da costa, numa pedra a 35 metros de profundidade. Ele que já ali fez peixes de 80 kgs….estava a apurar tudo pelo mínimo. 



Duas horas de caminho, sob vento e vaga forte, para nada. Os jiggs de 200 gramas rebentavam os braços num instante. Muito trabalho, muita expectativa, para nada. Já de retorno, a meio do caminho, um imponente peixe-vela passou à superfície. Colocámos o barco a navegar em paralelo e um de nós preparou-se para lançar. Desta vez, calhou ao Raúl tentar o lance, mas dado o vento que se fazia sentir, foi infeliz e a amostra caiu atrás do peixe, que se apressou a dar à cauda e a desaparecer nas vagas. Os veleiros são pescados de forma artesanal, com o sistema de bóia, cinco metros de fio e anzol iscado de sardinha. Ou muito recentemente, com uma novidade assassina: redes derivantes. Segundo o Cherif, podem recolher aos 300 de uma só vez. Não há forma de sustentar este ritmo de pesca. Os veleiros, anteriormente tão abundantes no Senegal, são agora escassos. Peixes que levam anos e anos a reproduzir, são dizimados em poucas horas, nas zonas de trabalho das redes. 
No dia seguinte, o plano era sair ao sul, e tentar as pedras mais baixas, especialmente a famosa Pedra S, uma língua de rocha a 20 mts de fundo, com cerca de 2 km de comprimento, uma parede contínua de 1.5 mts de altura com muitos buracos, toda furada por baixo, com galerias e esconderijos escuros, onde já vi toneladas de peixe de qualidade, lagostas, cavacos, etc. Era ali que eu achava que poderia bem melhor. Alugámos um auto-boubou, um miniautocarro, para fazer os 80 quilómetros que nos separam de Saly, ao sul. Antigamente, eram lindos, quando pintados de cores azuis e amarelos. Com toda a tinta e arte africana em cima deles. O novo presidente resolveu que era bem mais moderno ter os autocarros todos de branco, e não se ensaiou muito: fez um decreto a obrigar todos os proprietários a pintá-los. Estragou tudo. Neste momento, perderam o charme, são caixotes sujos e nada mais. 

Auto- Boubou senegalês. Alguns trabalham….


Colocar 20 canas de pesca e respectivos carretos, Rapalas e Jiggs com anzóis montados, nunca será fácil. A logística envolvida é impressionante. Centenas de quilos de material, entre material de pesca, roupas, comida, sacos. Ainda em N`Gor, parámos numa “pastelaria” para comprar algo para comer. Falo de pão e de manteiga. A dieta diária naquelas paragens é sempre muito simples, só se come bem à noite. Encontrei algures numa caixa um croissant perdido com um recheio interior escuro. Coisa estranha. Sabia decididamente a gasolina de avião. Provavelmente terá sido a minha mulher a fazê-lo. Tenho sempre a ideia de que me quererá envenenar. Não sei se não virá a arrepender-se, porque encontrar um homem bom, bonito e atlético como eu está cada vez mais difícil. A meio do caminho, comprámos as melhores mangas do mundo, ao preço mais barato do mundo: por 0.60 cêntimos de euro, quilos delas! Os amendoins torrados, excelentes! Os cajus, muito bons. A estrada está cercada de uma floresta de cajus, comunitária, onde qualquer um pode colher os frutos, separar a semente, e comer. São bem melhores torrados.
 
Quem trabalha num escritório não sabe o que é trabalhar de sol a sol para ganhar …nada. Estas mangas, de espectacular qualidade, são vendidas a cêntimos. 


Chegada a Saly. Adivinhem quem estava no barco à nossa espera… sim, esse mesmo, o barqueiro Doune Gay. Detesto o nome Doune. Logo ali a sorte da expedição ficou comprometida. O barco, outro barco que não o do ano passado porque ele destrói tudo, parecia …razoável. Os motores não, esses só com muito amor à arte se poderiam considerar motores capazes. Cheios de esperança na pescaria, saímos para o mar, bastante calmo. Primeira paragem, numa célebre bóia amarela de meteorologia, com cerca de 3 mts de diâmetro. Onde o ano passado fiz um dourado depois de o mesmo artista ter embatido contra o “monumento”. Desta vez, o Raúl foi o único com sorte, pescando um bonito dourado, com cerca de 11 kgs. Equipamento ligeiro torna esta pesca emocionante. No fim, o peixe e o Raúl, ambos exaustos, cumpriram com o seu destino. Seria pois o jantar dessa noite, um magnífico “carpaccio” com alcaparras e muito sumo de limão por cima. Evidentemente, comemos o dourado, …não o Raúl. 
Mais dois dourados entrariam a bordo, mas sem glória: os senegaleses pescam muito com um sistema de bóias soltas. Já aqui vos falei deste método, sobretudo para a pesca do peixe vela. Largam umas dezenas de bóias, com um fio de nylon grosso, um anzol de bom tamanho iscado com uma sardinha. E esperam. Se o artista não está atento, se o atleta se deixa dormir a sonhar com um frango assado, acontece o que aconteceu a estes dois dourados: picam e largam a correr com a bóia atrelada, até esgotarem as forças. Um deles teria cerca de 15 kgs a 17 kgs, nunca menos. O outro cerca de 13 kgs. Vejam as fotos.
 
Dourado capturado c/ linha ligada a bóia derivante. Uma morte sem glória para um lutador nobre…


Quando estávamos a caminho da Pedra S, encontrámos o jovem Mamadou, meu antigo pirogueiro, ajudante de muitas das minhas saídas de caça submarina quando eu tinha 30 anos e ele os seus 18 aninhos, a …“caçar” de garrafas. Uma piroga com meros e garrafas será sempre, para mim e para todos os que gostam de peixes, um desconsolo. Uma dor de alma. Não consigo aceitar! Vem-me sempre à ideia um “caçador” a disparar tiros para dentro de uma gaiola de coelhos…absolutamente miserável. 
Quando estávamos então a concretizar a chegada à pedra, eis que o motor principal, resolveu falhar. Coisa rara…no Senegal. E logo por azar, a pôrra do motor auxiliar, um minúsculo motor de 25 cv, velho e cansado, a dar rateres. O pobre engenho, connosco a 40 quilómetros da costa, aquecia em poucos segundos, e desligava. Era necessário deixá-lo arrefecer, para voltar a empurrar novamente o barco de 10 mts de comprimento, carregado com 5 pessoas a bordo. Começámos a estimar em meses o regresso a terra. Lembro-me de perguntar ao Cherif: “este mocinho já alguma vez ouviu falar de “manutenção ao motor”? Que dia é hoje? Vamos chegar a Saly lá para o Outono." 
Felizmente, ao fim de algum tempo, conseguimos rede para ligar para terra e pedimos socorro. Os problemas em África resolvem-se, mas sempre a custo. A questão era que os que estavam em terra e que nos podiam auxiliar, não tinham dinheiro para ir comprar gasolina. Ao fim de 3 horas lá apareceram. Passámos o carregamento de canas e tralhas para bordo de outro barco, e voltámos a terra. O Doune, por penitência, ficou a bordo do barco, em deslocação lenta para a costa. Dois dias depois, recordo-me de me vir à cabeça a seguinte questão: haverá serviço de entrega de pizzas no mar? E em caso afirmativo, será que chegam ainda quentes ao nosso querido Doune Gay, perdido no mar? Terá o pequeno motor sido suficiente para aproximar a embarcação de terra? 
O autocarro esperava-nos na lagoa de Saly. Carregar todo o equipamento tornou-se penoso, depois de um dia miserável, que ficou a meio gás. No regresso, o auto-boubou teve um pequeno problema técnico: o pouco óleo que tinha saiu em definitivo e tornou-se impossível meter mudanças. Passámos a ter de empurrar para o pegar de cada vez que o carro afrouxava. Ao fim de meia dúzia de vezes, já nem de empurrão. Foi necessário arranjar outro autocarro para fazer o regresso. Mudar todos os equipamentos e tralhas outra vez! É assim África. E quem não tiver estômago para estas coisas, é melhor nem aparecer por perto. O Raúl Gil, herói do dia com o seu belíssimo dourado, cantava uma moda da Andaluzia, a solo. 
 
O Raúl Gil com um dourado de cerca de 11 kilos.


Último dia de pesca: mais do mesmo. Os meus amigos valencianos conseguiram mais umas duplas de lírios, sempre na casa dos 10 kgs, e deram algumas alegrias ao Carlos Rodriguez, nosso homem da imagem, que muito agradeceu cada minuto de combate titânico. Mesmo quando, por manifesto azar, aconteceu que o António Pradillo deixasse fugir um peixe bom junto à borda do barco. Os filmes são feitos de conquistas, mas também de insucessos. Homens do mar sabem que uns dias são do pescador, e outros têm de ser do peixe. Mas ali, foram demasiados dias a perder. Tudo muito bonito, mas não era só aquilo que nós íamos fazer àquelas paragens: sonhavam-se outros peixes. Infelizmente, o povo senegalês deve começar a mentalizar-se para uma realidade muito nua e crua: vão passar fome! 
 
As tropas desoladas com a escassez de peixe.


Um povo que vive virado para o mar, que não tem industria, que depende quase em exclusivo daquilo que o mar lhe oferece, deve preservar de outra forma o seu maior e melhor recurso. Aldeias inteiras dependem, de uma ou outra forma, do mar e do peixe. Uns porque fazem redes, outros porque constroem pirogas, outros porque descarregam peixe, outros porque pescam, outros porque reparam motores marítimos,…não podem aceitar que se destrua em poucos meses aquilo que a natureza leva dezenas de anos a construir. A natureza não tem possibilidades de responder a esta demanda diária. Quando não houver peixes, os turistas vão deixar de ir ao Senegal para pescar. Eu não volto. 


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