TEXTOS DE PESCA - O Lago Rosa

Nem só de pesca vive o homem. Quando chegamos ao fim de uma expedição de pesca grossa, os músculos começam a estalar e é cada vez mais difícil arranjar argumentos para obrigar o corpo a levantar-se da cama de manhã cedo. 
Tenho para mim que um dia de intervalo a meio, depois de três dias de esforço, é o ideal. Três dias, descanso e mais três dias de pesca parece-me ser uma combinação perfeita, e tenho feito isso no Senegal. Inevitavelmente, e pese embora a utilização de luvas de pesca, que recomendo vivamente, vão acontecer cortes e raspadelas nas caudas e barbatanas dos peixes. Não esquecer que tratamos sobretudo de peixes de grande porte, com poder, e que nos deixam marcas, há sempre um ou outro lanho. 
Manusear aqueles colossos implica sempre alguma dose de risco. E para além disso, é o esforço físico, feito em ambiente algo húmido, com calor, e ao longo de muitas horas por dia. Não há forma de a pesca não deixar marcas.
Com o corpo castigado por tanto puxar pelos jigs, sobretudo por tanto esticão inútil, porque não se cravam peixes a cada lance, descansar e ir ao Lac Rose, a 30 km de Dakar, é sempre uma boa opção. 



Trata-se de um lago grande, muito sui generis, onde antigamente terminava o Paris –Dakar, de boa memória. As suas margens planas e compactadas permitem que as viaturas rolem a altas velocidades sem problemas. A cidade de Dakar fica relativamente perto, e sempre foi uma festa para aquelas pessoas receber os carros e motos no fim de uma aventura sobre rodas. Chegar ao Lago Rosa, à meta do Paris-Dakar, era chegar ao fim de semanas de muito sacrifício e sofrimento. Mas desenrola-se ali uma outra luta, outro drama, e esse é diário. 
No Lac Rose, emigrantes da Guiné e sobretudo do Mali, extraem à custa de um trabalho violentíssimo, extremamente duro, o seu sustento para o dia-a-dia. 



Posso dizer-vos um pouco mais sobre este lago: com uma profundidade máxima de 3 metros, tem uma película de cerca de 1,5 mt de sal, agarrado ao fundo. 
A percentagem de sal é de cerca de 34%, quase dez vezes mais do que o nosso querido Atlântico, o qual ronda os 3,5%. Podemos retirar de um litro de água algo como 380 gramas de sal. 
A área do lago ronda os 3 km2, está situado a noroeste de Dakar e fica no interior, isolado por dunas de areia, afastado algumas centenas de metros do oceano Atlântico. 
Porque a água tem uma densidade enorme, quando na horizontal, os nossos corpos flutuam sem se afundar. 
Para quem está habituado a ir à praia em Portugal, aquela é uma sensação estranha, de flutuabilidade acrescida, que confunde as nossas certezas. 



O trabalho é duro, mesmo muito duro e consiste em, com água pela cintura, bater no fundo com uma lança, partir a crosta de sal e apanhar o que se pode com uma pá. 
Carrega-se o barco de madeira com cerca de uma tonelada de sal, literalmente até o barco ficar com as amuras a 5 cm do nível da água, e atravessa-se o lago impulsionando o barco com uma vara de madeira, para vir descarregar. 
Encher um pequeno bote é um trabalho de 6 a 8 horas, duríssimo, para vender esses 1000 kgs de sal por apenas 45 euros. 



O sol castiga o corpo com temperaturas altas, e isso tem de ser compensado com a ingestão de líquidos.
Os corpos dos homens que ali trabalham, são cobertos por uma camada de gordura, para que a pele não abra chagas. Qualquer ferida é um tormento, porque não fecha. A gordura a que me refiro, é a manteiga de karité, obtida a partir de um fruto, a noz de uma árvore africana. Esta manteiga é obtida por pressão, por esmagamento do fruto e tem particularidades que a tornam indispensável à indústria cosmética e farmacêutica. 
A árvore karité apenas existe na costa ocidental de África, numa região muito delimitada. O grande produtor deste tipo de noz é o Burkina Faso sendo a recolha feita por mulheres, agrupadas numa associação de cerca de 3000 senhoras, que se ocupam da comercialização por grosso. Estas mulheres obtêm assim um importante e decisivo salário, numa região inóspita e pobre. O lucro da venda é utilizado no pagamento de cuidados de saúde, alfabetização, furos de água, etc. 
Sendo um produto artesanal, é muito rico em fitosteróis, vitamina A e E, e é pois utilizado como anti-inflamatório pelos homens que passam os seus dias meio submersos no lago, enquanto protector de raios UV, protegendo-lhes a pele. A manteiga de karité é ainda utilizada na alimentação, e na indústria do chocolate, em substituição da manteiga de cacau. 

Aspecto da manteiga de karité, depois de muito filtrada. Esta destina-se a ser utilizada na alimentação.



 
O sal é transportado dos barcos para grandes pilhas, pelas mulheres. É posteriormente ensacado e vendido no mercado local, e dos países vizinhos, carentes deste produto. África é altamente deficitária deste produto, e recordo-vos que a salga do peixe capturado é imprescindível para que este seja transportado às aldeias do interior, mais longe do mar. 
Parte da colheita deste sal é ainda transportada para a Europa, onde se utiliza para derreter a neve das estradas, no Inverno. Quando conduzimos os nossos carros pelas estradas da Europa, muito provavelmente estaremos a beneficiar do facto de o sal derreter a neve e possibilitar a nossa passagem. Esse sal chega do Senegal, em grandes navios de carga. 

São seis a oito horas de trabalho para conseguir encher uma barcaça.


Este trabalho de mineração é feito desde o ano de 1970, não sendo evidentes para já os efeitos de uma recolha tão intensiva. Depois de ensacado, o sal é transportado em camions que o levam ao porto de Dakar, iniciando aí a sua viagem para outros continentes.

Partindo o sal no fundo, com uma lança.


Não deixei de pensar para mim próprio: “Ainda nós nos queixamos de puxar pelos jigs”….esta gente faz isto para sobreviver. Não têm sábados nem domingos, nem feriados, e trabalham enquanto aguentam. Se nós nos queixamos de trabalho duro quando chegamos ao fim de um dia de escritório, o que dirão estas pessoas? Quantas delas não davam tudo para trocar connosco?!

Quando se destina a lançar sobre as estradas, o sal não precisa de qualquer trabalho ou tratamento adicional, não é sujeito a qualquer processo de refinação.


Pese embora a altíssima salinidade do lago, há bactérias que conseguem viver naquele ambiente. Trata-se de uma cianobactéria, uma alga verde microscópica que suporta viver em ambientes salinos e em determinados periodos do ano, liberta astaxantina, um betacaroteno, se quiserem um pigmento rosado. Não serão muitos os organismos vivos que suportam viver num ambiente com tamanha concentração de sal como tem o Lago Rosa. A sua côr, que pode chegar a um quase vermelho, advém pois desta alga halófila, de cor original verde, a Dunaliella Salina. Em dias de sol, a produção deste pigmento é superior, e no fim da época seca, de Novembro a Junho, a côr do lago está já muito próxima do vermelho. Ver foto seguinte. 



Tenho algo de muito curioso a dizer-vos. Pese embora a proximidade do mar, e a incrivelmente salgada água do lago, ainda assim a vida não pára de nos surpreender! 
Contra todas as possibilidades, existe uma pequena fonte de água doce, a cerca de 100 metros de lago, e numa pequena poça, com pouco mais de três metros de diâmetro, existe uma colónia de pequenos peixes, dois tipos de ciclídios, que teimam em contrariar todas as naturais expectativas de quem passa por aquelas paragens. Estes peixes são um símbolo de resistência e a certeza de que a vida consegue operar verdadeiros milagres…

 Ei-los, peixes de água doce, numa poça que fica junto a um dos mais salgados lagos do mundo. Reparem nas conchas depositadas sobre a areia, que indicam que não estamos longe do mar.


Existem duas espécies, os peixes escuros são predadores dos outros. Comem as gerações mais novas, as crias dos mais claros. 
Que por sua vez comem as ovas dos seus predadores mais escuros, inibindo-os assim de prosperar demasiado. Este é um incrível exemplo da relação umbilical que existe entre presa e predador. 
Ambos fazem falta. Sem uns, os outros morreriam. Na ausência de predadores, os ciclídios claros iriam procriar até esgotar as reservas alimentares e morreriam todos. A poça tem cerca de 3 metros….

Incrível, não é?!


3 Comentários

  1. Muito bom! Obrigado por mais uma fantástica publicação.

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    1. Obrigado pelo seu incentivo. Para quem está deste lado e tem a preocupação de escrever sobre temas diferentes, originais, que possam interessar às pessoas que lêem, nada melhor que saber que há alguém que acha que a pesca pode ser mais do que meter isca e tirar peixe.

      O fenómeno da pesca é um conjunto de situações e quase impossibilidades, e que no fim, faz sentido, sobretudo se tivermos espírito crítico, e tivermos tempo para análise. Seguramente vai muito para além de se saber ferrar um peixe. Neste caso, achei que devia partilhar convosco esta informação, e acho uma maravilha a forma como os pequenos peixes se controlam uns aos outros, numa situação de caçador/presa, em que a falta de uma conduziria a outra espécie à morte. E tudo isto numa poça com 3 mts de diâmetro. Só o facto de haver água doce ali, já é um milagre da natureza.
      Obrigado pelo seu apoio, fico feliz por ter gostado!...

      Vitor Ganchinho

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  2. Bom dia Vítor,

    Mais um excelente artigo!


    Abraço,

    A. Duarte

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