TEXTOS DE PESCA - GO Fishing: Salvamento do veleiro Green Fingers

Fernando Pessoa escreveu um dia “ Tenho em mim todos os sonhos do mundo”. 
A importância de sonhar e de seguir adiante com aquilo em que acreditamos, faz-nos grandes, maiores do que a nossa terrena e minguada dimensão. Há pessoas que não sonham. Outras, recusam-se a viver sem sonhos, obrigam-se a sair da sua zona de conforto, saem de si próprias. São pessoas à parte neste mundo. São pessoas que não seguem uma rotina diária de acordar, tomar o pequeno-almoço, conduzir para o escritório, trabalhar, voltar a casa, jantar e deitar. São pessoas que empurram com a sua vontade e determinação os limites da capacidade humana. Tive a rara felicidade de poder conhecer uma dessas pessoas, o Andy, um inglês de Bristol, UK. 
Técnico de informática, equipou o seu veleiro Green Fingers com tudo aquilo que seria suposto ser necessário para cumprir uma viagem de circunavegação, em solitário, sem escalas. Uma sentida homenagem a 9 pessoas que o tentaram pela primeira vez há 50 anos atrás, naquilo a que se chamou na altura a Golden Globe Race. Para isso, investiu as suas economias num veleiro de pequena dimensão, e durante 8 anos planeou exaustivamente as suas rotas, os seus procedimentos, a sua logística. E sobretudo treinou a sua mente. 



Calculou em cerca de 1500 kgs a carga necessária de alimentos, comida enlatada, bidons de água, medicamentos e demais recursos, como o necessário para poder sobreviver durante um ano. Curiosamente, a água não era uma das primeiras preocupações, saiu apenas com 250 litros de água potável. O suficiente para 4 meses, sem chuva. Segundo ele, poupou água. Terá bebido cerca de 50 litros em 5 semanas, o que é pouco, sendo que apenas 5 a 6 litros por semana seriam dos depósitos fixos. Contou com as reservas recuperadas da chuva, e sobretudo da condensação nocturna. Confidenciou-me que durante as primeiras duas horas de chuva, não aproveitava a água, para evitar contaminar os depósitos com água misturada com sal. 
Numa travessia marítima sem paragens, logo sem contacto físico com terra, os pequenos detalhes contam. No inicio, abasteceu-se com 250 libras ( cerca de 300 euros) de….protector solar. A capacidade de 150 litros do depósito do motor a gasolina, garantia alguma segurança em situações de emergência, evitar contacto com rochas, recifes perigosos, eventuais manobras de afastamento de outros navios, atracagens de emergência em portos, etc. Pese embora a necessidade absoluta de manter o veleiro leve, ainda assim deu-se a alguns luxos Carregou uma prenda de Natal e uma prenda de anos, para …si próprio. Para além disso, um conjunto de 6 garrafas de champagne saíram com ele, para celebrar momentos marcantes, nomeadamente a passagem pelo Cabo da Boa Esperança. A primeira foi aberta logo no dia da saída, e o protocolo cumprido 1 copo para o Rei Neptuno, que vertia no mar. Mais 4 copos em honra de cada um dos ventos, sul, norte, etc. E um copo para ele, para dar moral!
Contou-me de experiências e espectáculos inolvidáveis em zonas de maior concentração de fósforo, ver passar os golfinhos à noite, a deixar uma esteira brilhante no seu rasto. Já próximo dos Açores, e em noites de grande calmaria, teve baleias a 10 metros do barco, a soprar água. Dizia-me “Vítor, não imaginas a sensação de tomar um banho de água que vem de um repuxo de baleia”…
 


Desde o momento da saída, fez contactos regulares com a família e com o Weston Bay Yacht Club, a dar conta do seu posicionamento. Até ao momento em que tudo começou a falhar falharam os geradores eólicos de energia, falhou o comunicador de satélite, o qual possibilitava as comunicações com terra, e por fim, falhou o motor, que lhe possibilitaria acercar-se de terra. Durante o mês de Agosto, sem vento, numa calmaria constrangedora, sem comunicações VHF, tudo se complica. Após 3 dias sem comunicar com ninguém, a família deu-o como perdido no oceano. Entraram em pânico. A Polícia marítima inglesa entrou em contacto com Portugal e Espanha e deu o alerta. O desaparecimento do Andy espalhou-se rapidamente, e não havia forma de obter noticias. Ao fim de 36 dias isolado no mar, esperava-se o pior.  
Foi nessa altura que o vento o empurrou para junto da ilha de S. Miguel. Com o resto de carga do seu telemóvel pessoal, e com alguma rede no aparelho, conseguiu dar conta da sua situação e do posicionamento aproximado, a sul da ilha. Quis o destino que eu estivesse a fazer uma saída de pesca com o meu companheiro de aventuras Gustavo Garcia, e o meu amigo açoriano Erling Clemens, para os lados dos Mosteiros, a cerca de 30 milhas de distância. Após um contacto recebido da Marina de Ponta Delgada, fomos informados de que havia alguém em apuros. Tempo para esquecer a pesca, marcar rota e seguir à procura do Green Fingers. Ao fim de 1 hora tínhamos o veleiro na nossa proa, e uma pessoa com um ar andrajoso, um mau cheiro terrível, mas com forças para receber o cabo que lhe lançámos. Estava tudo dito naqueles 40 metros de cabo. Estava toda a solidariedade entre embarcações que navegam no mar, estava a mão de pessoas amigas a apertar a de um desconhecido, estava a alma portuguesa e a vontade de ser útil e prestável a quem necessita. 
Ao fim de algumas horas, e já com o veleiro acostado ao cais, o Andy veio ao GO Fishing I agradecer e perguntar quanto era o custo do reboque. Há coisas que não podem ser reduzidas a um custo. A amizade não tem preço. Demos um abraço e recebi dele, com carinho, um pequeno quadrado de papel em que tinha escrito à mão o seu nome, o seu endereço de e-mail.  


 
Quando o convidei para um jantar no dia seguinte, senti-o sensibilizado. À hora marcada, lá estava ele, com a roupa completamente amarrotada, com cheiro a bafio, a humidade de porão, a barba mal aparada, mas com um sorriso nos lábios de felicidade que significava tudo. Tinha debaixo do braço um objecto embrulhado num velho jornal inglês uma das suas garrafas de champagne, …que teve a amabilidade de nos oferecer. Estava assumida aí a impossibilidade de continuar o seu caminho, e a necessidade de proceder a reparações essenciais ao regresso a Inglaterra. 

Recordo-me de lhe perguntar se estaria bem para ele que o jantar fosse um arroz de lagosta. A resposta dele “ Vítor, eu a esta hora já era para estar morto….um arroz de lagosta vai bem”…


Gravei na memória a sua resposta quando lhe perguntei, certamente defraudado nas suas expectativas por não poder terminar a sua viagem, se eventualmente à partida tinha como objectivo fazer menos tempo do que os velejadores que o inspiraram a fazer esta volta ao mundo. Recordo a sua respiração mais profunda, o silêncio que se fez, e o tempo que levou a dizer-me “ Não Vitor, isto não era uma corrida. Eu não tinha pressa nenhuma em chegar a lado nenhum…eu quando estou no mar, estou onde quero estar…”
O Gustavo Garcia, uma pessoa que tem um coração do tamanho do mundo, ofereceu-lhe uma faca de ponta redonda Opinel, a qual será certamente muito útil ainda ao nosso amigo britânico. O Andy está agora a reorganizar a sua vida, a procurar voltar a ter um trabalho que lhe permita obter fundos para preparar uma nova aventura. Porque estas pessoas não baixam os braços, não capitulam, porque sabem que desistir dos seus sonhos é também desistir da sua vida. 
 


Felicidades Andy, encontramo-nos por aí! 
O GO Fishing I vai continuar a sair para a pesca nos Açores e o Green Fingers ainda vai fazer muitas milhas de mar… 


Vítor Ganchinho



2 Comentários

  1. Viva,

    “O sonho comanda a vida…” António Gedeão o disse no seu livro Movimento Perpetuo.

    Uma grande salva de palmas….

    Primeiro pelo sentido de aventura, superação e vontade de realização de um sonho por parte do Andy.
    Segundo pela prontidão e ajuda no salvamento por parte do amigo Vitor e Gustavo.
    Por último e não menos importante, a simplicidade de uma serie de gestos e bons costumes que felizmente persistem, mesmo contra mares e marés das mais várias sociedades do homem.

    Cpts,
    A. Duarte

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Boa tarde António

      O Handy continua a velejar, está a preparar uma nova aventura, em solitário.

      Ontem a pesca acabou por resultar, fiz duas pescadas grandes, um pargo bom, um ruivo, uma abrótea, alguns gorazes, e uma remessa de carapaus, que já se sabe, andam que nem loucos agora.

      Vamos ter de fazer a nossa saída. Eu tenho os dois próximos fins de semana comprometidos, com grupos de 7/ 8 pessoas. Se houver um dia de semana livre, ou de férias, eu posso ir. Desta vez, houve uma falta de informação, eu esperava a confirmação via mail, e ...não foi. Por isso disse ao Hugo para marcar outra coisa. Fomos fazer imagens com o Carlos Campos, da SIC.
      Não gosto de protelar estas coisas, porque quando é para ir, é para ir! Mas estou com tantos grupos que nem sei como fazer mais.....o corpinho já estala por todos os lados.
      Abraço
      Vitor

      Eliminar
Artigo Anterior Próximo Artigo

PUB

PUB

نموذج الاتصال