O criminoso volta sempre ao local do crime. Eu e o Pedro Rosa não nos temos portado muito mal no que diz respeito ao número de assassinatos cometidos. São raros. De resto somos até bastante comedidos nesse aspecto, mas quem vai ao Japão uma vez, volta sempre mais vezes. Desde logo porque somos muito bem recebidos pelos japoneses. Estávamos ainda a voar a 11.000 metros de altitude por cima de Osaka, muito antes da torre de controlo dar instruções ao “motorista” para baixar o aparelho e começar a fazer-se à pista, e já tínhamos os nossos amigos japoneses Fuminobu e a sua colaboradora, a querida Yuki, a acenar com os dois braços, a fazerem-nos resmas de vénias em japonês, de rabo para o ar. Viam-se os dentes deles quilómetros acima das nuvens. A nossa chegada ao terminal do aeroporto foi apoteótica, com vivas e sorrisos que normalmente apenas estão reservados ao Mick Jagger e ao nosso presidente Marcelo. Temos agora a certeza de que uma vénia bem feita, a preceito, implica tocar com a testa nos atacadores dos sapatos, o que no meu caso e considerando a quantidade nós cegos que tenho na coluna, é uma mera utopia. Forçando bem, mal chego com as pontas dos dedos aos pés, quanto mais conseguir dobrar a espinha vezes sem conta, naquelas bombadas intermináveis. Borrifei-me para aquelas marmeladas e fiquei-me por dois beijinhos repenicados na pequena, que ficou em estado vermelho tomate. Para que tenham uma ideia, um beijo é algo só reservado aos casais, …depois de casarem.
Fomos ao Japão pescar. E o Gustavo Garcia, meu amigo e companheiro habitual de pesca, não quis ficar em Almada. Veio também. Ao que parece, deu por bem empregues os seus passos de vir connosco tomar um cafezinho a Osaka, pese embora os efeitos do jet-lag tenham sido catastróficos e devastadores. No meu caso, e dada a diferença enorme das horas locais para as horas a que habitualmente costumo dormir, umas nove, deu-me para andar a desenroscar e mudar de sítio as lâmpadas dos candeeiros do meu quarto de hotel. No caso dele, a coisa ficou-se por fazer de homem estátua na cama, hirto, com os olhos fixos no tecto, a contar sarguetas pequenas a nadar em ritmo certinho.
Nem preciso de vos dizer que a ideia de irmos pescar para Kochi não foi minha. Eu já acho que ir de Setúbal a Sines é uma estopada de longe. É que o sítio fica a 400 km de carro, de Osaka. A seguir fizemos mais hora e meia para chegarmos ao porto de abrigo onde estava o barco. Ou seja, 1200 quilómetros de carro para ir lançar uns jigs. Para quem tinha feito no dia anterior dois esticões de 6.000 mais 8000 km, um dia inteiro a viajar, foi duro. Vou ter de impor a mim mesmo uma regra rígida: não saio a pescar a mais de 9.000 quilómetros de casa!
Depois de uma tarde na fábrica Deep Liner, em Kochi, e de ouvirmos com muita atenção o director de produção Shintaroh Tsutsumi, ficámos a saber de uma infinidade de pequenos detalhes de pesca que passam despercebidos a quase todos os apaixonados do Jigging, mas que são vitais para quem tem a responsabilidade de produzir jigs e canas…de alta cilindrada.
O autor com Tsutsumi, o responsável técnico da fábrica. |
A convite da marca, jantámos num restaurante a roçar a perfeição: comida de alta qualidade, ambiente acolhedor, boa companhia, pessoas interessadas em ouvir histórias de pesca passadas do outro lado do planeta. E chegou finalmente o grande dia: uma saída de pesca com o grande Masayoshi Higashimura, discípulo do guru do slow jigging, Master Sato. O nosso amigo Higashimura é o dono da Deep Liner, empresa que desenvolve serviço na construção de canas e jigs de alta qualidade.
A GO Fishing a aprender com quem sabe de jigs. Vitor Ganchinho e Gustavo Garcia em Kochi, Japão. |
O objectivo era testar os produtos em acção real de pesca, antes de os lançarmos no mercado português, na loja GO Fishing de Almada, ou através da nossa loja on-line, em store.gofishing.pt. Isto não é publicidade, sou eu que estou a brincar. Tivemos oportunidade de visitar as instalações e ficar maravilhados com a atenção ao pequeno detalhe. A dada altura, quando me falou na utilização de jigs de 1,5 kgs de peso, pensei para mim que poderia ser uma forma prática e não muito onerosa de me livrar da minha mulher. Um jig daqueles bem atadinho ao pescoço, uma montagem bem apertada com nylon forte, em ar de jóia preciosa, versão Blue Iwashi, azul sardinha, …..e lá vai ela para os abismos. Que pena.
O simpático anfitrião, com um barco de 15 metros excelentemente equipado, (segundo ele com cerca de 10.000 pontos marcados no GPS…) o que excede em 2 pontos os meus sítios especiais e infalíveis em Sesimbra), recebeu-nos com produto local, feito por si.
Serão raras as situações em que alguém pode ir à pesca com jigs e canas …produzidas por si próprio…na sua fábrica. Excelente material. Fizemos uma adaptação ao equipamento no porto de abrigo, às canas e carretos, desafortunadamente com manivela à direita, muito popular no Japão, mas pouco habitual entre nós. Logo aí se deu conta da grande habilidade do Gustavo Garcia, o meu Gustavinho, para estas questões do jigging pesado: arrancou os trabalhos com uma peruca de linha trançada de fazer aflição a um controlador aéreo. Seria apenas a primeira cabeleira de umas largas centenas. O homem levou o tempo enleado! Num dos raros momentos de possibilidade efectiva de pesca, e já a pescar a 260 mts de fundo, dizia-me o Garcia: “Vem aí obra. Acho que isto pesa muito, …parece que ferrei um pé-de-galo”! Era apenas o jig de 500 gramas a fazer das suas…a pesar nos braços. Quando a peça chegou cá acima e viu que não tinha mais nada no anzóis, pousou a cana, passou a mão pela testa, retirou o suor e foi sentar-se a descansar um pouco.
O Pedro Rosa recorria a todas as suas forças para conseguir recuperar a “isca”, um jig pesadão que o deixou prostrado nos três dias seguintes, a precisar de garrafinhas de ginseng de hora a hora. Até nisso se vê a diferença entre os dois povos: ele, porque fraquejou dos braços e apanhou um ligeiro resfriado, teve direito a quatro garrafas de elixir de raízes amarelas, para revigorar. Quando eu estou constipado, a Lena dá-me Anti-Gripine! Já nem digo ginseng, mas pelo menos que me desse uma ginjinha, que vai dar ao mesmo. E depois admira-se de eu não dar rendimento. É por essas e por outras que eu estou reformado das gajas. Aos 56 anos, as raparigas para mim deixaram de ser uma prioridade. Já pouco mais posso fazer que não seja pescar, ou seja, pôr a minhoca de molho. Deixo as miúdas novas para quem tem vontade de andar aos pulos. Vejam por exemplo o aspecto de uma americana que saiu connosco no barco GO Fishing III, que não era mal apessoada. Na mesma foto está um balde com mau aspecto. Sou eu. É difícil conseguir dedicar-me ao engate com este handicap. Por isso ela está de costas voltadas.
Mas voltemos à pesca: eu estive naqueles dias em que tudo me corria bem. São raros. Era cada tiro, cada pardaloca. Adaptei-me perfeitamente ao ritmo a imprimir aos jigs, o peixe precisava de uma recuperação lenta, pausada. As águas estariam a pouco mais de 10ºC, frias. Com o metabolismo mais baixo, pedir aos bichos para darem mais que três barbatanadas na direcção do jig era pedir muito. Mas com uma recuperação lenta, entravam. As canas têm uma acção perfeitamente controlada, nervosas, com capacidade para activar o jig para cima, depois de uma ligeira queda. Para 5 pessoas teríamos cerca de 40 canas disponíveis, com comprimentos diferentes, e comportamentos diferentes. A Deep Liner produz três modelos, #5, # 6 e #7, e dentro de cada uma tem cerca de 10 acções diferentes, o que cobre a gama de pesos de jigs que utilizamos, por completo. Relativamente aos jigs em si, o que é bom não precisa de ser explicado: vimos com os nossos olhos a fábrica onde são produzidos 150.000 jigs por ano, com cuidado, com método. As pedras que visitámos estavam cheias de vida, a sonda marcava muito peixe, com algumas bolas de comedia bem definidas e pontos isolados, separados, de predadores atentos, a seguir o cardume. É lançar e deixar o equipamento fazer o seu trabalho. E saíram peixes giros, estranhos, de olhos em bico.
O peixe foi, na sua quase totalidade, restituído ao mar. A Deep Liner tem gente a sair diariamente para pescar. Os artigos que fabricam, são testados durante dois anos, antes de serem lançados no mercado. Penso que me irão dar muitos peixes nos Açores, a pescar em águas fundas. No Japão leva-se a palavra qualidade muito a sério, ao contrário dos chineses, que fazem da quantidade a sua palavra de eleição. Empresas como a Daiwa, que tem cerca de 6000 funcionários, não deixam o seu nome cair na lama, protegem-no da única forma que vale a pena: produzindo qualidade.
E depois é a cultura do povo, do rigor no trabalho, a preocupação com a protecção dos mais velhos, o ambiente de respeito mútuo que se vive. Respira-se tradição, num país moderno, bem equipado, e que sabe perfeitamente para onde vai. Sente-se isso. O Pedro Rosa, filho de uma pessoa que trabalhou 25 anos no Japão, refere-me que, na eventualidade de alguém ser solicitado para fazer algumas horas extraordinárias para desenvolver algum trabalho, isso é por essa pessoa considerado um elogio às suas capacidades, ao seu bom desempenho. Entre nós, o comentário seria “ mas…só me vêem a mim”…?
A capacidade de resistência psicológica da nação foi demonstrada quando deixei o Garcia com a pequena Yuki, japonesa de 23 aninhos, fraca figura física, mas de uma paciência normalmente apenas reservada aos vizinhos chineses ali ao lado. Ele queria comprar um presente para o neto. Mas não diz uma única palavra em inglês, e em japonês é ainda um pouco menos forte. Ela, de português apenas diz bom dia. Isso permite algumas variações, alternâncias entre “dia bom”, “bom dia”, etc. Mas em termos de resultados práticos não é muito animador, especialmente quando se quer explicar o tamanho da criança, e a cor e padrão da camisola que se pretende adquirir. Propositadamente, deixei-os ir a uma loja tratar do assunto, sozinhos. Quando voltaram, tinham a camisola. Eu só pensava nisto: se ele se perde de nós, como é que vai explicar onde é o Pragal, em Almada. Com um pouco de sorte, pode sempre abrir os braços e tentar dar a sugestão de que mora ao pé do Cristo-Rei. Receio muito que os japoneses o mandem recambiado para o Brasil. A sua querida Odete fica viúva em três tempos. Mais ainda se sabe que ele anda por lá feito gabirú a olhar para as mocinhas de fato de banho modelo fio dental. Veio-me à cabeça a frase do americano Armstrong, quando saiu em missão de dentro da nave espacial: “ se me perco, é a lua para a eternidade”.
Descobrimos que existem inúmeras torres, com rampas de acesso e vários pisos, muito altas, aparentemente e aos nossos olhos sem utilidade nenhuma, mas que na verdade são construídas para receber uma resma de pessoas em fuga de um tsunami. Estão espaçadas de alguns quilómetros entre si, e são um ponto de encontro para situações de calamidade. O mais próximo que temos em Portugal para estas situações difíceis, maremotos, terramotos, e desavenças conjugais, são as tabernas. Nós temos dias em que não podemos com elas. A Lena, quando eu vou à pesca, só quer que eu lhe traga salmão em filetes. Ora é certo e sabido que os cardumes de filetes de salmão do rio Sado, na desembocadura na baía de Sesimbra e que eu conheça, até Sines, são aos montes, mais que as cavalas. Por vezes acho que exige demais de mim. Eu quando casei há vinte anos não estava a pensar ter de aguentar esta pressão psicológica de ter de lançar amostras no mar à procura de peixe com Omega 3. A coisa era muito mais simples, mais especifica, passava muito por uns suadouros de corpo a corpo. No Dia da Mãe vou oferecer-lhe um carro japonês com focinho de buldogue. Ver foto.
Penso que o designer das carripanas deveria ser agarrado por dois enfermeiros de bata branca, levado em braços para um hospício, e internado até ser capaz de desenhar algo menos caixote.
Vir a Osaka e não experimentar um restaurante concebido para pescadores, é lamentável. Já o ano passado vos falei deste conceito de restaurante em que se tem de pescar aquilo que se come. Todo o ritual de colocar a isca, convencer o peixe a picar e ser capaz de o tirar fora de água com um anzol sem barbela, já vale. Mais ainda se a seguir se tocar o tambor, se a pessoa for ovacionada por todos os presentes, num ritual que se repete pela noite dentro, com cânticos, com boa disposição. O Gustavo viveu ali um dos pontos altos da sua viagem, e apreciou o sashimi de pargo bem fresco. Vou voltar a este assunto no próximo mês, porque acho que tem pano para mangas.
Vamos embora amanhã. Acabei de estender as minhas luvas da pesca no tampo da sanita a secar. Daqui a 15 minutos estão secas e prontas para arrumar na mala. Não, não estive a fumar uma ganza de 1 metro de comprimento de haxixe marroquino de alto gabarito. Eu explico: as luvas estavam a tresandar de um cheiro nauseabundo a peixe estragado. Desferrei os peixes à má fila com elas, para me safar e continuar a pescar sem perder tempo. Quase tudo o que faço na vida é para me safar, porque eu não tenho o “jeito para tudo” do Garcia, ou a capacidade de pensamento metódico do Pedro Rosa. Eu “safo-me”, desenrasco-me à boa maneira lusitana. As luvas tresandavam a peixe “menos fresco” ao fim de quatro dias de estarem jogadas para dentro de um saco de plástico, bem abafadinhas na minha Samsonite de cabine. Assim, passei-as por água e champô na casa de banho, e aproveitei o facto de os tampos das sanitas serem aquecidos, para as secar. Não vos vou dizer que também têm um jacto que nos lava o rabo, que a intensidade desse jacto pode ser regulada, ou que activamos a música ambiente quando sentamos o “dito cujo” nela. Para não falar que ao sentarmo-nos ligamos também o exaustor.
As ditas têm muitos botões, têm vida própria, e só espero que não façam também medições do “artigo”, em metros. Sentir-me-ia ridículo. Se falarmos de medição em milímetros já fico mais bem visto…
Vítor Ganchinho