TEXTOS E PESCA - De mal a pior... Pesca ao robalo de olhos em bico, no Japão

A partida

Saímos de Lisboa com um ligeiro atraso em relação ao horário previsto. Na altura não dei importância ao detalhe que viria a ser decisivo para toda uma aventura de pesca pouco…”ortodoxa”.
Ao chegarmos ao aeroporto Charles de Gaulle, em Paris, mal tivemos tempo para correr uma meia maratona, de um lado ao outro das instalações, no sentido de garantirmos que as nossas malas não iriam passear ao “país do sol nascente” sem nós. Queríamos mesmo ir! O Pedro Rosa, de escassa e miserável capacidade física, engenheiro de profissão e nitidamente uma pessoa que faz do cérebro o seu melhor argumento, dopou-se. Recorreu a esteróides anabolizantes para aguentar aqueles 30 minutos de corrida e esforço violento. De língua pendida, arfando, conseguimos chegar a tempo ao avião que nos iria transportar a Tóquio, para uma visita à Meca dos produtores de material de pesca. Canas, carretos, amostras e seus derivados, tudo disponível para ser visto pelos olhos de quem cumpria um sonho de criança. Eu pelos equipamentos de pesca topo de gama, ele pela curiosidade de visitar um país onde o seu pai trabalhou mais de 25 anos consecutivos.
Viagens de 15 horas não são nada de mais para quem faz da pesca o seu hobby mais regular. Afinal de contas, passamos dias e dias à espera do fim-de-semana para podermos ir pescar, e sobrevivemos. Reparei no método utilizado pela Air France para combater activamente o assédio sexual: arranjaram umas assistentes de bordo feias que nem coriscos e trovoadas nocturnas. Têm o problema resolvido de vez, com aquele naipe de mastronças. Chegados ao aeroporto de Haneda,…o Pedro reparou numa “piquena” que passeava uma folha com alguns nomes e uma caneta na mão. Confesso que não me despertou uma atenção em particular. Era baixa de estatura, pernas tortas e escanzeladas, feia que nem cobras e lisa de peitos. Como é que esta gente se reproduz, olhando à estética dos reprodutores? Viria a obter a resposta dias mais tarde. De resto, o Pedro tem uma teoria que aponta no sentido de os homens, ao fim de alguns meses de cativeiro, já acharem as japonesas todas boas. Os meus exaltados e aclamados dotes de pescador de sargos motivam regulares pedidos de autógrafos dos meus fãs, e por isso pensei tratar-se apenas de mais alguém que viria ter connosco para obter uma lembrança. Mas ela andava com a coisa na mão, e isso era estranho. Pelos vistos, tinha outra ideia e isso não podia ser ignorado: o papel tinha o meu nome e o dele…
Esqueçam os autógrafos: as nossas malas tinham ficado em Paris!
Com toda a reverência do mundo, e sabendo que estava dar uma notícia terrível para quem ficava apenas com a roupinha que tinha em cima, a japonesa sorria e fazia vénias cada vez mais pronunciadas. Tentei ameaçá-la dizendo que assim sendo preferia voltar a França, (mais 13 horas de voo), que a partir dali já nada me interessava na vida, mas a minguada beleza asiática não estava virada para algo mais que obter a minha conformada assinatura num documento de alfândega. 
Ficámos “agarrados”. Depois de mais duas supervisoras virem acudir a mocinha, ficou então combinado que as malas onde tínhamos os nossos pertences e trajes de pesca estariam no hotel no dia seguinte. Chegariam sim ao fim de 4 dias, provando que a lei de Murphy não existe por acaso. A cada dia a Air France garantia que era já na hora a seguir. E nós a destilarmos meias com um cheiro e mau aspecto digno de Trinitá, cowboy insolente, em Tóquio.

O país

O Japão é um país de gente desenvolvida em tudo: na cultura, na educação, no entusiasmo pelo trabalho, no rigor, no respeito pelas tradições e pelas pessoas de idade. Interessa-me particularmente este último ponto. Afinal de contas, os meus já pesados 55 anos levam-me a pensar que lá mais para a frente, a partir dos 110 anos vou ter de começar a abrandar o ritmo. Provavelmente até vou começar a pescar mais próximo de casa. 
Chegados ao hotel, o pessoal de serviço, gentilmente, perguntou-nos se queríamos que eles transportassem as nossas malas para os quartos. _“Não se incomodem, nós levamos…no bolso”.
Um fuso horário de 9 horas leva as pessoas a ter alucinações: ao pequeno-almoço reparei que um grupo de japoneses comia com os pauzinhos de forma diferente da minha: deduzi que deveriam estar todos mal; talvez por terem pouca prática. Pareceu-me sinceramente que estavam todos errados. 
Entrar no mundo da Daiwa, da Smith, da Duo, da Fish Arrow, é entrar na esfera da produção de qualidade, do planeamento, do rigor. Os materiais japoneses, são de facto muito bons, são topo de gama e se não resolvem tudo, pelo menos ajudam. 
Preparámos a saída de pesca do dia seguinte com um jantar memorável, comendo postas, filetes e tiras de um peixe que pode ser fatal em poucos segundos: o “pop fish”, o famoso peixe balão com partes venenosas que matam em poucos segundos. Os cozinheiros que o trabalham são obrigados a ter um curso e um certificado profissional. Vim a saber que os pescadores asiáticos quando conseguem capturas deste peixe, ou o restituem à água, ou têm de encontrar alguém com habilitações para o preparar. Entre nós, não é normal ter de encontrar e pagar a alguém que nos arranje o peixe. 
Benzi-me três vezes e avancei. Num ímpeto suicida, comemos peixe daquele de todas as maneiras e feitios. Enquanto degustava e apreciava, ora frito, ora cozido, sempre sob o olhar atento de uma simpática e gordinha cozinheira de nome Yoshimi Ikura, não deixei de recordar a célebre frase: “ Avé César, aqueles que vão morrer te saúdam!”
Ao fim de uns quantos copos de saquê, já achava tudo normal, mesmo beber gasolina aditivada e comer peixe venenoso. Na eventualidade de quererem ir lá jantar, aqui fica o endereço: Restaurante Ganki ( significa rochas e tartarugas) nº telefone +81-45-225-0943
Mitsubishi Juko Yokohama Building 2F, 3-3-1, Minato-mirai, Nishi-ku, Yokohama-shi. Estou aqui para vos ajudar!

Isto é um prato de pop-fish, o tal que mata em segundos. Comi de forma decidida!


O dia seguinte iria começar cedo, pelas 6.20 da manhã, e isso não é problema para quem em 4 dias dormiu apenas um total de 5/6 horas. Com os olhos bugalhudos, a indumentária reduzida ao mesmo traje sebento da viagem a partir de Lisboa, e a resistência a chegar aos limites, partimos para pesca. No termómetro indicavam escassos 5 ºC. A roupa escassa deixava passar o vento frio até ao esqueleto. O nosso guia de pesca garantia haver robalos. Seguramente que sim, e para ele os resultados estavam garantidos: iria receber os yenes de certeza.
Na nossa comitiva constava um amigo de nome Fuminobu Nakayama, e a sua filha Ding Cheng Cheng. A mocinha, simpática como o pai, um pouco evidente cruzamento de japonês com chinesa, apareceu no hall do hotel vestida de roupas de centro comercial e mala de mão Gucci. Para quem vai ao robalo, …não está mal, pensei eu. 
Quando saquei do telemóvel e lhe mostrei a minha Maria Teresa, com 10 anos a tirar pampos de enfiada em Setúbal, passou a olhar-me com um entusiasmo que apenas se dedica a cantores famosos como o Mick Jagger. Às exclamações de admiração, correspondiam gritos de entusiasmo e excitação nunca vistos tendo como motivo cavalas e pampos. Forte nas vénias, de rabo para o ar, a moça prometia visitar esse longínquo Portugal, para poder experimentar aquela fartura anunciada.  

A pesca

Pescar robalos em água castanha, gelada, debaixo dos pilares de um sistema de sinalização aeroportuário, mesmo à saída de uma pista de aviação comercial, não é o sonho de ninguém que pesque habitualmente em Sesimbra/ Setúbal. Fazê-lo com jigs de 40 gramas a 12 metros de profundidade, com corrente e uma sonda a confirmar estarmos em zona deserta, muito menos. Cada pilar da estrutura teria pelo menos um barco, a manobrar furiosamente à sua volta, de forma a permitir lançar as amostras até à areia do fundo. Ocasionalmente, um pequeno mas destemido robalo shaolin agarrava o jig. Uma técnica de pesca paupérrima: segundo o capitão do barco o jig deveria ser recolhido de forma pausada e uniforme. Pois seja. 

Gelado, com pingo no nariz, com uma vontade de pescar próxima do nulo absoluto, dei por mim a pensar que àquela minguada profundidade, o motor de 175 cavalos deveria parecer aos peixes algo similar ao que sinto quando ouço as músicas rock das minhas filhas. O vento de superfície não deixava aquecer as mãos, e sem luvas, era um martírio estar ali. Estava a minutos de ser uma natureza morta. Empenhado em salvar a imagem lusitana, e provavelmente injectado de morfina, o Pedro Rosa arrancou duas picadas sucessivas de robalos de olhos em bico, e que adoraram e aplaudiram o nosso “catch&release”. Estava ganho o dia. 

O Pedro com um dos seus robalos nipónicos.


A diferença daquele “calvário” e condições de pesca dantescas para aquilo que fazemos em Sesimbra na Go Fishing às pessoas estrangeiras que nos visitam, é o dia ao pé da noite. O azul do nosso mar comparado com esta água marron e cinzenta das sucessivas dragagens portuárias, é comparar o rabo da Sharon Stone com a feira de Serpa. Depois de cumprir as minhas obrigações com um robalo “abichanado”, preso pela cauda, resolvi baldar-me para a função e ir comer. Mais valia que não…
 
O meu robalo era abichanado, veio pelo rabo...


Aquilo que havia na mochila eram triângulos de arroz embrulhados em algas verdes. Muitas vezes digo mal dos lanches e das sandes de presunto que a Lena me manda para a pesca. A esta distância não me custa reconhecer o quanto sou injusto. Grande Lena! Declarei-me a ela no Cabo Espichel. Expliquei-lhe que tinha intenções sérias e que seria conveniente juntarmos os trapinhos e casarmos. A primeira reação dela foi lançar-se da falésia. Hoje temos duas filhas e as coisas, vistas do meu lado, vão bem. 

Estes são os robalos de lá, Suzuki, um pouco diferentes dos nossos.


Perguntei ao diligente Fuminobu se não seria bom pensarmos em “dar de frosques”. Não deve ter entendido totalmente a tradução e os meus termos técnicos porque logo a seguir sugeriu-me: “há duas possibilidades, ou ficamos a pescar nesta zona, ou vamos a um sítio bom, com peixes grandes, mas que leva uma hora a lá chegar”. Respondi-lhe com diplomacia, dizendo que por mim, e atendendo ao respeito que deve merecer o capitão do barco e quem preparou toda a logística, ficaríamos no sítio onde estávamos apenas mais uns minutos e voltávamos ao porto e daí para casa, de táxi e com urgência. Arrancámos logo de seguida, bem na guita e a fazer cavalinho sim, mas para o sítio pressupostamente bom, dos peixes grandes. Mais uma hora de caminho, e eu em manga curta e casaco ligeiro. O frio nas orelhas ameaçava fazê-las cair congeladas. 

A Cheng, moça de grandes valências, e coragem. Mas também de péssima pintura de unhas, meu Deus…


Fomos parar junto a um petroleiro. Era ali o sítio especial, e segundo eles, seria pressuposto lançarmos os jigs contra o casco do navio, até ao fundo, a cerca de 23 metros. Fiquei indeciso entre colocar um cinto de explosivos à cintura e fazer rebentar a carga, ou lançar pelo menos uma vez. 
O comandante do barco de pesca garantia aos pés juntos que ali é que era. 

O pesqueiro era isto. Valha-me Nossa Senhora da Agonia!


Deu-me ideia de estar a beber água de uma tijela com os dois pauzinhos. Olhando à arrumação da cabine, para mim aquilo já seria motivo para pedir a demissão de toda a administração do barco. As condições de pesca eram horríveis. Perante aquilo, era evidente que o fim do mundo estaria a chegar, e a qualquer instante. No interesse da ciência, aqui vos deixo um extracto de como me senti: lixado! Mas a pesca também é isto, há que aguentar e recorri às últimas reservas de energia. A minha mulher casou com um homem quente. Sou quente! Não é por acaso que ela dorme com um pijama de amianto, com medo de pegar fogo em lavaredas. O que a Lena me tem aturado! Aqui fica a minha declaração de amor eterno e a certeza de que me vai custar imenso ir ao funeral dela. Prometo desde já ter regularidade a mudar-lhe as flores da campa. Mas aquilo era frio a mais. Frio e fome. Bem que podiam fazer por lá uma petição nacional para me comprarem uma sandes de mortadela. Fui ver a sonda outra vez. O ecrã azul marcava zero actividade. Olhar para o fundo por aquele quadradinho mágico era o mesmo que olhar para as minhas colonoscopias: tudo limpo. Era mesmo só areia lisa. Passaram-me coisas pela vista. Imaginei-me em Setúbal, a almoçar na esplanada de um restaurante ribeirinho. Podia ser mesmo num restaurante normal, um espaço gastronómico quase bom, quase aprazível, nada de luxos. Naquele momento, tudo me servia. Conheço um razoável na zona das Fontainhas que ficou em último lugar no concurso de caldeiradas de 2017. Mas foi uma classificação perfeitamente injusta. Entre os 142 participantes merecia ter ficado em 140º, ou até talvez em antepenúltimo. Para mim, servia. 

O Pedro Rosa defendia-se como podia, com luvas e um gorro de lã. Pensei que, na falta dele, a família iria sofrer. Eu podia estar a causar um holocausto familiar à Carla. Resolvi falar com eles mais uma vez: 
_Com as minhas mais sinceras desculpas, e atendendo à situação, não poderíamos ir embora? E acompanhei isto de uma série de vénias e bombadas para baixo que me deixaram as vertebras da coluna a ranger. Resultou. Voltámos ao hotel, e após mais uma conversa acalorada na recepção sobre o desaparecimento das malas, resolvemos agir. Saímos e comprámos roupas novas, calças, camisolas quentes, meias e sapatos para enfrentar o frio e sobretudo a vergonha de andarmos andrajosos. Finalmente estávamos de novo equipados. Comprei mais uma mala Samsonite. Passada meia hora tínhamos um telefonema a confirmar que a nossa bagagem finalmente tinha chegado, e estava no hotel à nossa espera. 
Saímos de Tóquio a tempo: na madrugada seguinte houve queda de neve e a pista ficou com 50 cm, e completamente impraticável. Todos os voos foram cancelados. Ao chegarmos, e ainda no aeroporto de Lisboa, tive a notícia de que teria havido um terramoto na zona norte do Japão. Espero que a culpa não tenha também sido nossa. 


Vítor Ganchinho



Artigo Anterior Próximo Artigo

PUB

PUB

نموذج الاتصال