Como um pacato cidadão de Almada se vê repentinamente entre a vida e a morte.
Para se defender, …apenas dois pauzinhos chineses nas mãos.
Gustavo Garcia, sem acreditar no que se meteu, em ir ao Japão. |
Bem sei o quanto aguardam ansiosamente, e quantas vezes sustendo a respiração, pelos meus artigos altamente técnicos sobre pesca à linha. Ao longo de trinta e cinco anos de escrita, muitos foram os temas abordados, sempre actuais, sempre diferentes e quantas vezes polémicos. Tenho a consciência de que milhares de fãs vibram mensalmente com as minhas linhas em prosa. Não que mo digam pessoalmente. Na verdade desvalorizo o “ vai-te catar com aquilo…”, porque sei que não é do fundo do coração. Da fina arte da pesca à salema de viveiro com anzol de meia ferrugem, até à utilização criteriosa do corta-unhas em baixadas fluorocarbono para a ferreira e sargo, da subtileza do fio de nylon 0.12mm na pesca ao pampo encardumado, à edição especial “A pesca da enguia ao remolhão nas Valas da Barroca com minhoca magra”. Quem não se lembra daquele monumento gráfico que escrevi sobre a pesca ao achigã de barragem, ao corrico, em barco a remos? Quantos e quantos segredos vos revelei, sempre no intuito de ajudar, sempre em prole do desenvolvimento da pesca desportiva em Portugal? Certo que muito dificilmente irei algum dia ganhar um prémio Nobel da Literatura, ou sequer receber uma nomeação Academy Award pelos meus escritos. O mundo em que vivemos está cheio de evidentes injustiças. A minha tese científica sobre “o sentido giratório variável e antagónico do destorcedor na pesca embarcada”, merecia melhor sorte. Foi positivamente ignorada. Não sei se sabem mas tenho estado em retiro, a finalizar uma enciclopédia de 32 volumes encadernados, cerca de 4800 páginas, versando o tema: “o cálculo matemático da tensão de aperto do elástico na iscada de sardinha”. Seguramente outro best-seller, com tremendo sucesso igual ao “Sargos que palitam os dentes com o bico do anzol”! Tudo o que o Antero dos Santos publica, publica bem, e arrisca-se a obter um prémio literário. Enquanto director do prestigiado jornal para onde mandei alguns dos meus melhores e piores textos, sempre mantivemos uma relação estreita de cordial e grande amizade. Tenho a certeza de que nem sempre ele aprecia o que escrevo. Por vezes, a ideia que me fica é de que ele reage a alguns dos meus singelos escritos como os chocos reagem quando lhes aparece pela frente uma corvina muito grande: largando tinta preta a valer! Mas também sei que o Antero não me vê vocacionado para outro tipo de artigos, quiçá interessantes sim, mas sobre as aparições de Fátima, a saga da irmã Lúcia, os três pastorinhos e as pungentes imagens do quadro “Menino da lágrima”. Eu escrevo mesmo é sobre pesca!
Trago-vos hoje um episódio de pesca que já é uma reprise em termos de tema….mas que vale a pena revisitar.
O ponto de partida é um restaurante de sushi em Tóquio, aparentemente bom, aparentemente inofensivo, mas onde eu e o Pedro Rosa, no ano passado, sofremos uma vil tentativa de assassinato, com pop fish, o famoso peixe balão venenoso. Mata em segundos, afectando o sistema nervoso central. Não voltámos lá. Fora de questão esse restaurante, porque o veneno trabalha-nos muito no estômago. E além disso, quiseram enfiar-nos os pauzinhos pelo nariz a dentro. Acabámos desta vez por ser levados a um outro, pior. Muito pior. O Pedro Rosa, fingindo uma doença que ninguém entendeu, “preferiu” ficar no quarto de hotel. Desertou. Diria que nos abandonou, a mim e ao Garcia, à nossa sorte. A coisa estava bem montada: uma pequena nova, de olhos em bico e nome Takaima Yuki, conduziu-nos ao local.
A trave de madeira à entrada é na verdade uma guilhotina. |
À porta, uma placa em madeira, tinha 3 símbolos diferentes, e em todos eles havia uma marca de cor vermelho sangue. Por baixo, a indicação de 11.00h, ou seja, a hora a que era pressuposto sermos os três degolados, assassinados, ou algo pior. Achei que os planos deles poderiam ter de mudar, dada a ausência do Pedro. Pelo menos em relação à placa. À entrada, começaram por nos “sugerir” que seria bom descalçarmo-nos. Não achei bom sinal. Os soldados na guerra também aproveitam as balas e botas daqueles que são mortos. O Garcia olhou para mim, meio desconfiado. Eu sabia que obviamente o intuito não seria outro que não constipá-lo, pregar-lhe uma carraspana das antigas, enfraquecê-lo pela doença. Não satisfeitos, sentaram-no no chão, numa posição incómoda a valer, ( o Estado Islâmico na Síria fazia o mesmo aos soldados capturados) e entregaram-lhe um par de pauzinhos chineses.
Para o Garcia, tratavam-se apenas de cotonetes compridos sem algodão. Sussurrei-lhe: “ isso não é para limpar os ouvidos, …isso é para comer”…mas deve ter entendido que devia comer os pauzinhos, porque me fez uma cara de aflição e agonia. Gustavo Garcia é um individuo calmo, honesto, amigo do seu amigo. Não pertence àquele tipo de pessoas que deixa sempre atrás de si um rasto de fogo, fumo e destruição. Precisamente por isso, nunca pensou ver-se a braços com uma situação desesperada daquelas, em que seguramente teria de recorrer a todo o seu sangue frio para sair dali vivo. Olhei para o individuo que trazia a lista. Para mim, ele era para estar preso, mas dada a sobrelotação das cadeias japonesas, deixaram-no em lista de espera. As tatuagens que tinha nos braços, seguramente eram lembretes de coisas que tinha de comprar no supermercado.
Abriram as hostilidades trazendo-nos uns peixinhos que devem ter-se visto negros com a fritura que sofreram: vinham de escama arrepiada. Uma espécie de “jaquinzinhos”. Já comi pior e a pagar.
Veio a seguir uma sopa, com uma carne estranha, fervendo. “Querem abrasar-nos a língua, para não conseguirmos gritar”, …pensei. No meio da tijela, a boiar, um ovo de uma galinha que também deve ter morrido de aflição, degolada, porque era um ovo de gema vermelha. Muito mau sinal. Estaria a sopa envenenada? Iriamos cair fulminados? Olhei os olhos do Garcia. Estava apavorado!
À nossa volta, havia mais de trinta japoneses de olhar soturno, que nos cercavam. Tínhamos ali mais um Pearl Harbour montado. Disse-lhe baixinho:
_Garcia, se se vir à rasca com eles, se vê que não pode com os gajos,… diga-me. Para eu ter tempo de fugir!
Talvez queiram apenas todo o nosso dinheiro, …pensei. O Garcia terá lido os meus pensamentos, porque pediu para ir a uma caixa Multibanco. Não tive esperança que pudesse ter êxito, desde logo porque as instruções estão em japonês. Mas a aflição era muita e ele, carregando nas teclas de olhos fechados, conseguiu levantar a guita.
Não era apenas isso que queriam. Ficaram com o dinheiro mas mantiveram-nos reféns, trazendo mais comida. Desta vez, uns pratos com sushi.
Adivinhei que seria a comida dos condenados, a última refeição. Comecei a achar estranho que a caixa de correio do restaurante fosse uma bilha de gás. Estariam a preparar uma explosão para fazer desaparecer os corpos…carbonizados?...
As 11.00h aproximavam-se. Dá-me ideia de que ouvi facas a serem afiadas, pelo pessoal da cozinha, os tais artistas que fazem o sushi muito fininho. Achei que não merecia uma coisa daquelas.
Eu que escrevi para vocês durante tantos anos, quantas vezes até ter os dedos em carne viva, sempre gratuito, um ou outro artigo tão interessante, e iria acabar ali, naquele antro?
Cá está a tal placa a dizer que às 11.00h, …era para acabar o assunto, …para matar. Cá para mim, isto eram os nossos três nomes e a pinta a vermelho sangue não engana ninguém. |
Comecei a congeminar um plano: os meus olhos rolavam nas órbitas à procura de uma saída, uma solução. A ideia era sacar o Garcia dali vivo, e o quanto antes. Resolvi avançar de surpresa:
_ Desculpem lá, mas eu e o meu amigo temos de nos ir mostrar em tronco nu a umas miúdas, e já estamos atrasados.
E para além disso, ele está com apetite é de carne de porco grelhada, entrecosto com batata frita, e vocês aqui na lista não têm. Fiquem aí sossegadinhos, que eu e ele já voltamos!..
Antes que alguém pudesse reclamar, ou impedir-nos, estávamos cá fora, ao frio da noite sim, mas livres. Em corrida, o Gustavo Garcia dizia-me então: “ de qualquer forma, não se come mal ali, …e agora, onde vamos comer mais alguma coisa?
Eu ficava bem era com uma sandocha de leitão assado.
Aspecto geral de uma sandocha de arroz… |
Para que vejam duas coisas: a famosa sandes de arroz, e naquilo em que estávamos metidos… |
Dizia ele: Conhece algum restaurante de sushi”?
Lembrei-me de um outro restaurante de sushi. De resto, no Japão todos os restaurantes são de sushi. Entrámos num local bem espaçoso, com um sistema meu conhecido, o da captura da nossa própria comida.
Já vos falei nisto o ano passado. Conceito novo para o Gustavo, que desta vez teve direito a uma cadeira, pese embora com apenas 15 cm de altura. Muito melhor que sentar-se no chão, que dá cabo dos joanetes.
Ali estavam os pargos, em cardume, com a mesma perspectiva de vida de uma lagosta grande e formosa num aquário de um restaurante chique. À espera da sua hora. Foram-nos distribuídas duas canas, curtas, com anzóis sem barbela. Quem pesca sarguetas em Setúbal fica habilitado para pescar em qualquer mar do mundo, pelo que o Garcia avançou e em menos de um fósforo já tinha um pargo ferrado, e pronto a escamar. Li nos seus olhos a satisfação de ter feito algo mais que as omnipresentes cavalas da Comporta. Teve direito aos aplausos da ordem, às palmas que são devidas a quem consegue enganar um dos peixes do tanque onde assenta o barco que nos serve de mesa.
Outras famílias tentavam os pargos e aqui e ali um ou outro mordia a isca. A nossa querida Yuki, sempre atenta, sempre diligente, o melhor que conseguiu foi anzolar um saco de amêijoas. Calhou-me a mim ensaiar um outro, desta vez para grelhar, um pedido especial que fiz ao chefe de cozinha, na eventualidade de o Gustavinho não se aguentar com pargo…cru. Depois de três ferradelas infrutíferas, em que o peixe mordeu mas largou o anzol rombo, sem barbela, resolvi mudar de táctica. Engodei primeiro com um nico de camarão, e a seguir coloquei a minha ciência toda a esconder muito bem o anzol, também iscado com camarão. Resultou! Eis mais um pargo enganado e a voar directo para um xalavar de rede. Mais pauzinho daqui e dali, e o Garcia conseguiu, com a sua técnica rudimentar, apertar e espetar um pargo suficiente para se sentir satisfeito. Um copo de saqué, para comemorar mais um dia muito bem passado, em terras do sol nascente.
À saída, reparei num gabinete em que dois japoneses, provavelmente homens de negócios, pescavam mais um dos pargos. Literalmente, é o que se pode chamar “do mar ao prato”.
Um deles, o que tinha ferrado o bicho, ficou com a camisa e a gravata completamente encharcada de água salgada. É o que dá ir para a pesca de gravata… eu por exemplo vou mais desportivo, de fato de treino.
Se alguém tiver alguma pergunta, ou falar pessoalmente comigo, não hesitem. Qualquer questão que queiram colocar já sabem, as visitas aqui são das 8.30 às 12.00h e eu estou cá sempre. Rua Miguel Bombarda, nº 114 r/c.
Vítor Ganchinho