TEXTOS DE PESCA - Ser solidário

A quem faz mergulho e mais concretamente caça submarina, quase sempre apetece ficar um pouco mais. 
Cada descida é mais uma oportunidade para ver e ficar maravilhado com aquilo que se observa debaixo de água. 
A cores, os sons, as pedras, os peixes, tudo nos enche os olhos e a alma de prazer. Quando estamos cansados de baixar e subir até nos doerem as costelas, é altura de parar e vir para terra descansar. 
Retemperar forças para o dia seguinte. 



O assunto passa-se à cerca de 30 anos, em Cabo Verde, na Ilha de Santiago. 
Recordo-me de estar na praia, a passear a pé perto do modesto hotel onde iria passar uma semana. Tive a sensação de ter ouvido chorar uma criança. 
No meio de tanta algazarra e gritos de miúdos, aquele choro era diferente. Nada tinha a ver com o choro das nossas crianças quando querem uma pastilha elástica, ou um boneco estrategicamente colocado à entrada de uma caixa de supermercado. Era um choro de impaciência, de desespero. E por isso demorei o meu olhar até entender o que se passava. 

Sentada no chão, a sua mãe olhava o mar como quem lê um livro, como quem procura na linha do horizonte respostas para a sua situação. A criança estava anichada no seu colo e chorava convulsivamente. 
Aproximei-me e perguntei o que tinha. E ouvi algo que para qualquer um de nós, quem é mãe, ou pai, nunca pode ser deixado para trás sem um aperto no coração: “ O meu filho ontem comeu, mas hoje tem fome, e não tenho nada para ele”….

Eu tinha oferecido todo o peixe do dia a pessoas que estavam na zona onde tinha feito o mergulho, alguns quilómetros a sul. Nesse dia, tinha conseguido uns lírios grandes e um bom badejo, e como de costume, ofereci às pessoas que estavam perto da zona de chegada do pequeno barco de madeira que me levou a caçar. Mas não guardei nada para mim. 
Já tinha lavado os equipamentos, as armas, o fato, os óculos, as barbatanas, e tinha deixado tudo a secar. Voltei ao quarto para pegar no mínimo indispensável e saí para a água na praia onde essa mãe estava sentada. 

A zona era fraca, quase deserta, havia uns peixe-papagaio azuis e verdes, peixe muito abundante em Cabo Verde, uns cardumes de peixe-cirurgião, e pouco mais. Mas para o efeito eram suficientes. 
Em meia hora fiz alguns peixes e quando cheguei à praia, retirei os óculos, olhei para a frente e o miúdo sorriu-me. Ficaram felizes com a oferta. 

Para aquela mãe, foi o abrir de uma porta que estava fechada.


Vítor Ganchinho



6 Comentários

  1. Boa tarde Vítor,

    Fome... esse flagelo que teima em persistir um pouco por todo globo!
    Infelizmente não me parece que exista pior sensação do que a aquela que um pai sente, quando se depara com a impossibilidade de dar comida a um filho!!!


    Cpts,

    A. Duarte

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    1. Boa tarde António


      Eu que sou pai nem quero pensar em ter de enfrentar uma situação dessas. Não deve haver um desespero pior que um pai não poder valer aos seus filhos. Já está a ver por que razão, depois de estar cansado de um dia de mergulhos profundos, ainda fui buscar o equipamento a casa para voltar a mergulhar e desenrascar uns peixes para aquelas duas pessoas.
      Nos dias seguintes passaram a estar à minha espera, e eu tive sempre o cuidado de reservar um peixe bom para a criança. Eram tempos em que os lírios de 30 kgs andavam por ali, em cardume, e em que nós fazíamos alguns deles todos os dias. O que não havia era dinheiro para comprar máquinas fotográficas de qualidade, nem telemóveis com lentes XPTO, e por isso, muitas coisas ficaram apenas na memória, sem registo.

      Fazer um scanner de uma foto ruim, ....é o que é. Mas dá para me recordar de bons momentos.
      Para a semana vamos sair! Dê por onde der, vamos à água. Eu ando cansado, estou a fazer 4 dias de mar por semana....amanhã, sexta, ..sábado, domingo, ... preciso de abrandar um pouco...

      Abraço
      Vitor

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    2. Bom dia Vítor,

      Quatro dias de mar seguidos, é obra, que grande dose!!!
      Não há pressa, quando tiver agenda damos inicio à formação e respectivas saídas.

      "olhei para a frente e o miúdo sorriu-me. Ficaram felizes com a oferta"

      Não existe maior gratidão no mundo que o sorriso de uma criança! Acredito que esse gesto
      fez toda a diferença no dia dessa criança e angustia dessa mãe!
      A beleza dessa foto vai muito além da sua qualidade fotográfica e técnica aplicada.


      Grande abraço,

      A. Duarte

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    3. Foram quatro dias muito intensos, todos diferentes, sendo que o de ontem foi o de maior responsabilidade: levei as minhas filhas e uma amiga delas a ver o fundo do mar, e os peixes que por lá andam. Gostaram....

      No fim de tudo fica a certeza de que temos no nosso país muita coisa bonita para mostrar.

      Estou desejando que chegue o Setembro, para poder pescar a sério. Porque os turistas vão embora, e eu fico com mais tempo para mim, e porque é o momento em que aparecem os primeiros abanões de mar, o momento em que os peixes aproveitam para começar a engordar para o Inverno. Gosto de Setembro e de Outubro.

      Mas até lá vai haver a possibilidade de irmos fazer uns peixes, e de eu poder mostrar como se pesca com poppers de 3 gramas, aos robalos. Coisas para linhas muito finas...e alguma paciência.
      Para já, seria importante termos alguns dias bons de mar, para podermos ir um dia ou outro ao fim de semana. Há ainda muita coisa para mostrar. Vamos receber uma carga do Japão daqui a duas semanas. Vêm canas, carretos, amostras, etc.

      Abraço
      Vitor

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    4. Bom dia Vítor,

      Foi um dia muito bem passado, com boa disposição e bom humor. Tive a oportunidade fantástica de experimentar material de topo e experienciar novas técnicas de pesca.

      O Vítor, para além de ser detentor de um vasto e rico conhecimento da arte piscatória e suas variantes, é também um comunicador por natureza.

      Foi a confirmação de uma nova paixão, é realmente fantástico a sensação de esse material pode proporcionar!

      Peço-lhe que me notifique, logo que receba essa carga, necessito de fazer umas compras!


      Cpts,

      A. Duarte



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    5. Bom dia António Duarte.

      Está tudo muito lento, os japoneses continuam com problemas de COVID, e até mesmo a parte dos transportes sente isso. Temos uma carga com 5 volumes, 150 kgs de material, a aguardar documentação para poder embarcar. Daqui a uns 10 dias está cá.
      Vamos receber canas, carretos, amostras, etc. Eu aviso.

      Amanhã vou pescar profundo, para o Garçone, a 400 mts de fundo, ao cantaril, goraz, etc. O grupo é todo formado por estrangeiros.

      Fico satisfeito por vocês terem gostado de sair comigo e de experimentar os materiais de topo, aquilo que neste momento faz furor no Japão. Eles têm cerca de 130 milhões de potenciais clientes, nem precisam do mercado europeu, mas para nós é conveniente não perder o contacto com quem sabe mais. E eles sabem mesmo muito mais. São bons a produzir equipamentos, porque têm mercado para eles, conseguem manter equipas a inventar e desenvolver materiais. Nós estamos 30 anos atrasados, ...ainda pescamos sobretudo com nylon, e um chumbo e dois anzóis por cima. Há pessoas por cá que vão morrer assim, que não conseguem sair disso. A próxima geração de pescadores, porque tem muito mais informação, vai conseguir fazê-lo.

      Abraço!
      Vitor

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