TEXTOS DE PESCA - Só me calham bogas!... - Parte II

Ali estávamos, à porta do céu, a pedir um milagre. Estávamos encalhados a pescar bogas e mais bogas, mas piorou. Piorou porque entretanto a maré mudou, a corrente começou a aumentar, e aos poucos, as poucas possibilidades de sucesso desvaneceram-se. Pensei nos sogros, nas expectativas que a avó Jesuína e o avô Laurentino tinham em mim. Pese embora o objectivo fosse um pargo, a possibilidade de um jantar de boga começou a fazer sentido. Tentei convencer-me a mim próprio que não estava assim tão mal. A boga é um peixe fino, bonito de cara, que dá boa conta de si. Deve até ter alguns vestígios de Ómega 3. Veio-me à cabeça boga no forno com muita cebola, boga recheada com presunto, boga com todos os matadores, boga de escabeche, boga cozida na Bimby, caril de boga, sushi de boga. E o meu famoso “carpaccio de boga com alcaparras”? É de levantar mortos! 
Não sei porquê mas sentia a vida a andar para trás. Adeus herança, adeus fortuna, adeus às meias turcas com raquetes, pelo Natal. Aquilo estava de romper em lágrimas. Mais triste, só mesmo chorando aos gritos. 
Onde é que eu iria desencantar um pargo?! Eu tinha de alegrar a minha ditosa sogra, mas o peixe não queria nada. Casulo não queria. Caranguejo verde, muito menos. Talvez um lagostomate, pensei. Uma lagosta recheada com tomate não deveria ser recusada por pargo algum. Mais que isso, só um raminho de salsa.
Estava em desespero. Aquilo não tinha jeito nenhum. Era algo como o quarteto dos três irmãos, Pedro e Paulo. Bogas e mais bogas! Bogas aos pulos no barco! Gostava de pensar que as poderia atar e amordaçar lá em baixo. Malditas bogas. Diz o meu amigo Antero dos Santos que Portugal importa dois terços do pescado que consome. Já me podiam ter dito! Eu resolvo já isso. Gostam de bogas?! Se quiserem outra coisa, digam! Gostam de cherne? Eu pesco tantos chernes quanto bogas, para mim é igual!....



Comecei a olhar para os pulsos. Acabei por ter um ataque de riso descontrolado, quando percebi que me tinha esquecido em casa do conjunto de facas de cozinha em aço inox. Como é que corto os pulsos, pensei. Em desespero, achei que os pargos só podiam estar armados em finos. A graça que acho aos peixes grandes que não picam, é a mesma que acho a meterem-me os dedos no nariz. Aquilo estava a passar das marcas. A moral estava em baixo. Qualquer treinador rasca sabe que é importante ter argumentos para os jogadores, quando estes estão a ser arrasados pelo adversário. Resolvi aumentar o tamanho dos anzóis, e caprichar na isca. Disse para o Roque: 
_ Roque, estás aí? Já comecei a preparar a minha iscada de sardinha especial. Agora é que vai. 
Não me respondeu. Tentava suicidar-se por asfixia, bebendo uma garrafa de água de 1,5 lts de seguida. O optimismo não era de facto demasiado. O moral baixava a olhos vistos. Ele, sedentário, recém- operado a um pé e com uma artrose horrível num ombro, decidiu aguentar mais alguns segundos, antes de se lançar à água e ir embora para terra. Não que isso fosse grave, no caso de acontecer. Porque estávamos só os dois a bordo, isso não elevaria os índices de deserção a valores superiores a 10 ou 15% da tripulação. E não tínhamos sequer ainda chegado a vias de facto, não tinha havido facadas, ninguém tinha tentado explodir os pirotécnicos, por isso, estava calmo. Dada a distância à costa, desertar estava limitado àqueles que conseguissem atingir terra a nado. Ou seja, eu. 
Eu gosto muito dele. Não parece, mas gosto. Temos na nossa história muitos personagens de bom coração. A rainha Isabel dava pão aos pobres. O Roque dá ganso coreano, navalha, sardinha, aos peixes. “Que levais no regaço,…”lembram-se da história. Mas mesmo bonzinho, ele aos poucos dava sinais preocupantes, sinais de se querer amotinar. 
As bogas deitam muita caca das tripas. Tentei imaginar a minha querida sogra a comê-las, apertando o nariz com dois dedos. Conseguia vê-la a atirar a cabeça para trás, para as engolir, como fazem os gansos patolas. Tinha de arranjar outra solução. Uma iscada fantástica não podia falhar. Segurei com cuidado a cabeça da sardinha. Coloquei a faca no sítio certo, e com um golpe seco fiz o filete. Fiquei a saber que o meu companheiro Roque tem sangue ORH+. 
Pequenos detalhes, pequenas coisas, apenas perceptíveis a um observador perspicaz, indicavam alguma descrença. Havia uma corrente subterrânea de intranquilidade. E se eu não conseguisse um bom peixe? Poderia a minha sogra perdoar-me? Poderia continuar a acreditar que eu era o genro certo? Estaria disposta a passar toda a sua fortuna para a minha conta bancária?
Senti sede. Chovia a cântaros, mas para mim, o calor do sol caía abrasador. Transpirava de impaciência. Mandei a mão ao saco do lanche. Após algumas goladas de Nivea, percebi que tinha falhado a garrafa de água. Arrotei a protector solar, mas mantive a concentração na ponteira. E de peixe, nada! Nem sequer um cherne, que é um peixe a que ninguém liga….



Comecei a considerar ser prematura a minha convicção de que poderia acabar com as bogas até Dezembro. Comi uma banana. Parece simples, uma banana. Deixem-me provar-vos que não é bem assim. Quando o meu colega Vasco da Gama aportou a Moçambique, com toda a tripulação dizimada pelo escorbuto, de gengivas infectadas, em ferida, sem aguentar nada na boca, foi esse o fruto desconhecido e macio que os salvou. Vasco da Gama, tal como eu, foi salvo por este fruto tropical, que era a única coisa que aguentavam comer. Já estou habituado a ser copiado pelos famosos. 
Só pedia uma picada boa. Mais nada. Ou no limite, mesmo sem ser boa. Se eu tiver uma picada, por frouxa que seja, talvez aceite a ideia de pôr uns alargadores pretos nas orelhas. 
Finalmente o Roque resolveu falar. Com um sorriso amarelo, disse: “ E se nós fôssemos para outro lado?”……
Achei aquilo péssimo! Para outro lado?! Aquele era o meu melhor pesqueiro. Perguntei a mim próprio: quanto tempo é que ele conseguirá rir-se do meu pesqueiro 21, com a cabeça metida na água fria do mar? Passaram-me coisas pela cabeça! Vieram-me à ideia uma série de possibilidades, mas todas acabavam comigo vários anos na prisão da Carregueira. Mantive-me pois,...calmo. Respondi-lhe: 
_ Se quiseres ir para outro lado, diz-me só para onde. Tu é que escolhes agora. 
“Qualquer outro lado, ….“ respondeu ele. 


Os meus olhos treinados, corram a linha do horizonte. Ao longe, centenas de pássaros batiam freneticamente as asas, e confluíam para um mesmo ponto. Os gansos patolas picavam como setas, embatendo na água com estrondo. Não havia dúvidas, havia muito peixe por baixo. Fiz azimute àquele sítio como as miúdas novas e gaiteiras fazem a um bom par de sapatos na montra: fui de cabeça, salivando uma boa pescaria. Vinham aí mil combates, força contra força, poder contra poder, até me doerem os braços. Acertei na última parte, os braços doídos: Outra vez elas, a fazer força. Eram bogas! Um enorme e miserável cardume de bogas que nos lixavam os iscos a cada lance. E daquelas grandes, a lembrar estatuetas estilizadas das Caldas. Puxámos cada um para seu lado, até nos fartarmos uns dos outros: Eu sem isca, elas sem fome. 
_Roque, posso escolher outro lado?...
Fomos então para uma zona mais próxima da costa. Havia alguns barcos. Quando cheguei ao pesqueiro, vi que havia mesmo barcos a valer. Parecia o Marquês de Pombal às 18.30h de sexta -feira. Disseram-me então que ali só podiam pescar pessoas cujo primeiro nome fosse Júlio. Deixei o barco derivar na corrente durante meia hora e fui lançar ferro mais abaixo, numa zona de areia. Não se via nem vivalma. Vai ser mesmo aqui, pensei. Não me peçam para vos explicar como tenho este instinto tão apurado. Da mesma forma, não me peçam para eu ser o vosso professor de equitação, ou de latim. Eu sou bom é na pesca. Deixo-vos este legado, este conhecimento. A princípio, pensei que deveria guardar a minha sabedoria, e até este trabalho literário específico sobre a boga. Pensei em autorizar a sua publicação apenas depois da minha morte, ou lá para o ano de 2650. O que ocorrer primeiro. Mas não queria estar a fazer-vos esperar. 

 

Para além disso, estou também a dar cursos de iniciação de pesca à boga. Embora limitados a 166 pessoas por dia. Não posso levar mais gente no barco, fico rouco de tanto gritar lá para as filas de trás. Começo sempre as minhas aulas por: “Aqui querem-se homens sem medo dos céus, e barcos sem medo das águas. Ouviram todos?!” O pessoal vibra e aplaude-me desalmadamente. No fundo, reconhecem a minha qualidade técnica. Há pessoas que se inscrevem todos os dias, durante anos. 
Mas voltemos à pesca: Eu antes queria ser ceguinho que aparecer em casa sem o pargo. Resolvi mudar de cana. Em termos de sensibilidade, estou convicto que nada melhor que a minha cana Daiwa de 2 secções+ponteira, de 3,60mt. É uma cana com selo de garantia GO Fishing. Acredito firmemente que é possível detectar as vibrações do pestanejar dos peixes. Mais que isso: com ela, é perfeitamente possível sentir na ponteira qualquer rotação dos olhos dos sargos. Mal olham para a isca dá logo sinal. Montei-lhe o meu carreto Saltiga 5500, e um fio trançado Saltiga 0.18, mais fino. Estão lixados, pensei para mim mesmo. Isto aguenta até um atum barrigudo. É sabido que o atum é um peixe forte e rápido. É a fast-food do oceano. Mas não poderiam nada contra o meu conjunto Daiwa Saltiga. O meu querido amigo Roque estava sem forças. Estava a dieta líquida, a cerveja, e a ideia que me deu é que já não acreditava. Nestas coisas da crença, dos resultados fantásticos, é bom que se conheça a palavra passe: acreditar até ao fim!
Tive uma picada, e forte! Levei uma pancada nos braços, e desequilibrei-me. Escorregaram-me os pés no fundo do barco. Felizmente consegui amortecer a pancada com os dentes da frente, no varão de aço inox mais próximo. Os dentes espalharam-se pelo chão como chicletes. Nunca se desiste! Aquilo era certamente o Mike Tyson a puxar! Um esforço enorme, algumas gotículas de suor a aparecerem na testa, e a firme convicção de que era desta que vinha aí o peixe da minha vida. Um peixe para fazer um póster de parede. Aquele que me iria consagrar como pescador maior entre os maiores. Afinal os peixes estavam a comer. Quando pensamos que estão azedos, de ressaca, sem apetite nenhum, afinal há maneira de dar a volta. Ao princípio receosos, com faca e garfo, cautelosos com os beiços, mas depois já sem estribeiras, à força toda. E aí vinha ele. Aquilo era um míssil balístico água-ar, uma criatura do outro mundo, um alien gordo. Eu estava autenticamente no caminho para as estrelas. Agora sim. Já estava a preparar o discurso mais inflamado da história, onde a minha técnica era exaltada até ao limite, quando nisto, …a linha partiu. A linha partiu. Nem queria acreditar. Fui atirado de ricochete até à proa, e a custo consegui agarrar-me ao cabo da âncora. Aos poucos, sem forças, fui fraquejando. Primeiro ouvi uns sinos, a seguir uns sons longínquos de fogo-de-artifício, música de órgão de igreja, tremuras nos joelhos, soutiens das Super-Águias pelos ares, …estava verdadeiramente a entrar em estado de coma induzido. O meu colega tentou dar-me alento. Começou por me passar umas gotas de água salgada na testa, como se faz aos pardais novos encalorados, e a seguir abriu uma garrafinha de vinho verde, fresquinha. Aos poucos, voltei à vida, e montei nova pesca. O Roque fez o mesmo. A sonda estava maluca, cheia de pontos negros. Havia peixe. 
Aos poucos começaram a aparecer mais barcos. Talvez passem ao largo, pensei. Olhei para eles com o entusiasmo com que olharia para um camião cheio de primos sicilianos, armados com facas e pistolas. Ainda lhes disse que ali só podiam pescar pessoas cujo nome de família fosse Ornelas, mas nem me ouviram. Num instante, tinha seis barcos a lançar ferro a menos de 10 metros de mim. Aquilo era a queima das fitas em Coimbra, e nós no meio. Acabámos por levantar âncora, e sair dali de fininho. Já íamos a mais de duas milhas ainda os ouvíamos a gritar uns com os outros. Bem mais sossegada e discreta é a Associação de Donas de Casa da Arrentela. 
Coloquei o dedo indicador no ar, tirei meças ao vento e disse ao Roque: É já aqui. Bora lá! A sonda marcava peixe grande. Tenho uma sensibilidade enorme e aguçada para estas coisas dos pesqueiros bons. Lançámos ao mesmo tempo. Os fios cruzaram-se na descida. Fizemos um enrolo de fios descomunal. Daqueles que temos de chamar os controladores de tráfego aéreo da Portela. Tudo enleado, no melhor momento do dia. Cortámos tudo, fizemos novas pescas, e voltámos à carga. O peixe tinha desaparecido! Como por magia, todo o cardume tinha ido embora. Como aquelas quecas mágicas à Mandrake, em que estalamos os dedos e a morena desaparece da vista. Nem um peixe na sonda. Procurámos nas imediações, e lá estavam eles outra vez. Iscas para o fundo! Uma picada forte e lá ferrei com força. Veio apenas a placa dentária do bicho. Uma boga. Mais uma a bolachas de água e sal demolhadas, para o resto da vida. 

Já estava na fase de limpar as lágrimas com um rodo, quando nisto, e após um ligeiro e quase imperceptível vibrar da ponteira, veio de lá um toque franco. Ferrei mais uma vez energicamente, fazendo na circunstância uma rotura muscular em espiral de 2,30 metros, desde o tornozelo direito até à orelha esquerda. Dei tudo o que tinha. A curvatura da cana confirmava a qualidade do artigo. Parecia que estava saltando à vara. Tinha de ser um peixe bom, pela força. Agora ou nunca. Ou saía bem, ou era o adeus à fortuna da sogra. Descalcei os sapatos e as meias, para poder firmar bem as unhas dos pés na fibra do barco. Em completa apneia, fiz força e puxei, até perder os sentidos. Minutos depois, estava deitado no fundo do barco, e ao meu lado, um magnífico pargo, vermelhíssimo, como a Atalaia em dia de fecho da Festa do Avante. Tinha conseguido. Finalmente tinha conseguido. Afinal sempre tinha conseguido. 

 

Estava com o ego em alta. Inchando um pouquinho mais, apenas mais alguns milímetros, e já teria de me besuntar com gordura, para passar pela porta de entrada de casa. Se chego a pescar um segundo pargo, teria mesmo de passar a usar pés de cabra e alavancas para conseguir entrar pela dita porta. Estava mesmo no caminho das estrelas. Deve ser assim que se sentem as mocinhas de Hollywood, quando desfilam na passadeira vermelha da entrega dos Óscares. Todo eu era espectáculo e brilho de lantejoulas. Arranjei o peixe em água de mar, para dar melhor sabor, um certo travo a mar. Aquilo ia ser um jantar de apoteose. Voltei a Setúbal a pensar no que iria fazer com a minha parte do dinheiro da herança. 
Apenas faltava chegar a casa e tomar um bom banho de imersão quente. Com algum cuidado: o meu tio Marcelino, aqueceu a água da banheira demais, a 130ºC, e não foi visto nos últimos 35 anos. Um pouquinho de sabonete debaixo dos braços, uma esfrega vigorosa nas unhas pretas, das iscas, uma pitada de perfume no sítio onde a sogra iria dar o beijinho da ordem, e aí estava eu preparado para o jantar da consagração. 
Que nem correu mal. Uma hora de forno a mais não se teria perdido, e antes disso umas seis horas de panela de pressão, e teria sido um sucesso. Tudo se perdoa à nossa querida esposa. No fim deste dia dramático, teve pressa em despachar a culinária, e deixou o animal em cru. Já com todos sentados, ainda fui à travessa carregar com o garfo no olho do bicho. Não saltou, o que indica que pelo menos já estava morto, mas o ambiente era de desgraça e tragédia. Os meus sogros resolveram informar de que estavam atrasados para ir ao baile da sociedade recreativa da Atalaia, no Montijo. Insisti, argumentando que o peixe não estava assim tão mau, que agora a moda é comer um pouco mais mal passado, com a espinha em sangue, mas não me quiseram ouvir. “Depois na semana que vem pescas outro”….dizia a sogra, convencida que aquilo era o Ikea, e que aqueles pargos eram feitos em série. Nem me ocorreu dizer-lhe que o último parguinho daqueles que me calhou, ainda eu não conhecia a filha, e que agora ela já era avó. Estas coisas dos pargos não são quando queremos. Acho mesmo que, durante o ano, há muito mais dias de Natal que pargos bons. 
Passadas umas horas, recebi uma mensagem de um amigo, a dizer que os meus sogros andavam na avenida Luisa Tody, em Setúbal, com um cartaz a dizer: “Troca-se genro por uma garrafa de água. Negociável. Aceitamos meia garrafa, já babujada”…



Vitor Ganchinho




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