De repente, surge a necessidade de salvar alguém.
Estas coisas acontecem muito a quem anda no mar, e mais a mim, que nasci para dar com casos bizarros a cada passo. A minha mãe acha que deu à luz um autêntico pára-raios de acontecimentos estranhos, mas cada um de nós é aquilo que é, e não vale a pena negar o destino. Nasci para isto!
Vinha já de volta para a marina de Sesimbra, depois de uma infrutifera saída aos atuns grandes, (que este ano teimam em se deixar ver aos magotes), e eis que de repente aparece à proa algo a flutuar, de cor branca.
Pelo comprimento, poderia ser alguém em dificuldades, um eventual naufrago, e vai daí, manipulo ao fundo que é hora de ajudar.
À chegada, um vulgar e simples colchão a boiar. Depois de ter encontrado, há muitos anos atrás, a 17 metros de profundidade, na ponta do Cabo Espichel uma... máquina de costura a pedal, já me sinto preparado para encontrar tudo, exceptuando uma miss Suécia loira de 28 anos, peito grande, bem maquilhada, em fato de banho ousado e muito sorridente.
Mas um colchão de dormir é algo que não será muito normal encontrar, já que isso significa que alguém achou o desempenho do outro tão fraco e mau que quis apagar todos os traços e vestígios de uma noite mal dormida. E ruim.
Duas andorinhas do mar descansavam em cima de tão insólito objecto, e levantaram vôo à aproximação do barco, demasiado grande e barulhento para elas. Fico sempre constangido de fazer dar às asas um passarinho tão frágil, gracioso e simpático quanto uma andorinha do mar. Apresenta uma envergadura de 79 centímetros, de asa a asa. Recordo que os Açores têm cerca de 30% da população mundial de Sterna Paradisaea, a nossa levíssima e ágil andorinha do mar.
Um peso pluma de 136 gramas. Este pássaro migrador, durante a sua vida faz algo como 800.000 km de distância a voar. Uma ida e volta à lua!!
Por geolocalização, foi descoberto que alguns destes passarinhos fazem 80.000 km por ano. Na costa britânica de Northumberland, ilhas Farne, Reino Unido, um juvenil quase sem penas foi anilhado para posterior estudo.
Foi encontrado passados três meses em Melbourne, Austrália, do outro lado do mundo, a 22.000km de distância. Fez este trajecto em menos de três meses! Nem a minha Leninha palmilha tanto quilómetro à procura de sapatos e malas.
As andorinhas merecem bem o descanso e por isso fiquei incomodado de as perturbar com o barco.
Já não seria pouco encontrar o colchão a flutuar, ao largo, sobre um fundo de cerca de 130 metros. Mas disse-vos acima que eu sou mais para o lado dos fenómenos do Entroncamento. E por isso isto não poderia ser assim tão simples.
Olhei com cuidado, e havia um detalhe que me estava a escapar. Numa ponta do colchão, agarrado com unhas e dentes, estava um ser vivo, desesperado e em aflição extrema. Um grilo.
Imagino que a presença dos pássaros não o estava a ajudar em nada para normalizar os batimentos cardíacos.
Na tentativa de recuperar o colchão, trazer para terra e dar o fim que este tipo de objectos deve ter, o lixo comum, acabei por provocar a queda à água do infeliz saltador.
Nada que os meus amigos Garcia e Carlos Campos não fossem capazes de solucionar. A Força Aérea tem helicópteros equipados para socorros a náufragos, mas mesmo considerando que os exemplos de dinheiro mal gasto andam por aí aos pulos, resolvemos não os chamar e tentar o salvamento por nós próprios. Um balde salvador foi suficiente, poupando ao erário público muitos milhares de euros.
No fim, o grilo olhava-nos com um ar agradecido que dizia tudo.
Veio para casa e a esta hora estará a contar esta história de infortúnio a uma grila, no relvado do meu jardim. Algo como “ …sabes lá, ainda hoje salvei uns pescadores perdidos no mar, aflitos”….
O grilo que nos salvou. |
Vítor Ganchinho
Para além de um excelente serviço público, foi sem dúvida alguma uma heróica ação!
ResponderEliminarAbraço!
A. Duarte
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EliminarNos "kms de linhas" que ando a ler no blogue, além de todos os conhecimentos técnicos que são partilhados e todo o humor na escrita, fantástico! Encontramos estas pérolas, mesmo que possam ser "coisas do entroncamento" (eu por cá não encontro hehehehe), mas demostram a forma como algumas pessoas entendem a natureza e o mar e outras como vós que estão sempre um passo á frente na defesa do mesmo, ao demonstrar e incentivar como todos podemos fazer a diferença.
Abraço
Toze
Estamos e estaremos sempre disponíveis para ajudar quem se encontra em dificuldades.
EliminarPara além de obrigatório por lei, é um imperativo de consciência de cada um de nós.
Nem que se trate de um...grilo.
Há muito tempo para pescar, os peixes não saem do mar...
Abraço
Vitor