Recordam-se porventura de um texto em que vos falei de Setúbal nos anos 30 do século passado. Na altura recebi alguns comentários de espanto, por saberem que as coisas já foram muito diferentes daquilo que são hoje. Não deixa de ser interessante pensar que, pese embora tudo nos pareça diferente, na verdade o que se passa é que a história apenas se repete. No fundo é apenas mais do mesmo: existem recursos naturais disponíveis e são aproveitados por quem quer e pode, de diferentes formas, ao longo dos séculos. As pessoas passam, mas as pedras são as mesmas. Renovam-se as esperanças, as vidas, e aquilo que para uns é velho e conhecido, para outros é novo e desconhecido. As gerações passam e passam, e tudo se reinventa, ao longo de milhares de anos. As cavalas que antigamente eram utilizadas para conservas, hoje são maioritariamente utilizadas para alimentação de atuns criados em cativeiro. Porque se comem menos conservas e porque os atuns atingem preços no oriente que justificam a sua produção. Se nos Açores se vendem atuns a 4 euros/kg e se no Japão se compra atum a 150 euros/ kg, ….há margem para que toda uma cadeia de produção funcione. Sempre houve razões para que se capture aquilo que existe aqui e se entregue ali, com lucro. E a área de Setúbal, Sesimbra, Sines, Mil Fontes, Arrifana, Sagres, tem recursos que os outros sempre quiseram… e querem.
Vamos então ver mais algumas curiosidades sobre a zona onde vivemos, e onde pescamos à linha:
Remonta ao Neolítico a ocupação da costa sudoeste alentejana. Dotada de recursos apetecíveis e de fácil acesso, esta zona foi primeiramente visitada pelos gregos, a seguir pelos fenícios, e posteriormente pelos romanos. Foram estes últimos quem se estabeleceu de forma mais vincada, e daí os inconfundíveis vestígios da sua ocupação estarem espalhados por todo o lado. Na sua ânsia expansionista, os romanos foram a todos os recantos do mundo conhecido à época e obviamente estiveram onde nós estamos hoje. As ruínas romanas de Tróia são um bom exemplo da sua presença. Datadas do século I DC, registam o título de maior unidade de produção de conservas e óleo de peixe do império romano. Tudo fácil: terreno plano, abundância de peixe na desembocadura do Sado, sal com fartura. A localidade de Alcácer do Sal, elevada a cidade apenas em 1997, é todavia uma das mais antigas localidades da Europa, fundada um pouco antes do ano 1000 AC, pelos fenícios. Tal como as suas contemporâneas Lisboa e Setúbal, a localidade de Alcácer do Sal tinha um papel particularmente importante na logística das embarcações que passavam na zona. O círculo fechava-se da seguinte forma: facilidade de obtenção de alimentos para guarnecer as embarcações, porto de mar abrigado em Sesimbra e Setúbal, ao qual a protecção do Cabo Espichel não será alheia, muito sal disponível, muito peixe, e ainda cavalos criados na região. O império romano pedia cavalos e nós tínhamo-los em quantidade. Como de costume, vende-se aquilo que os outros precisam. E fornecíamos sal, na altura algo tão precioso que chegou a servir como moeda de pagamento de trabalho. O termo salário advém precisamente daí. Sabendo que na altura a preservação dos alimentos apenas era possível pela salga, conseguimos aferir da importância que Alcácer chegou a ter à época. De resto, tinha muito mais relevância comercial do que Setúbal. Também sabemos que os árabes estiveram por cá. À altura da invasão de Alcácer, deram-lhe o nome de Qasr Abu Danis, construindo aí um forte para sua protecção. Os vikings subiriam Sado adentro para conquistar a praça, mas não tiveram sucesso, dada a resiliência deste castelo. Viria a ser capital da província de Al- Kassr. Pela força, D. Afonso Henriques elevou a sua bandeira na torre mais alta em 1158 DC, mas a fortaleza viria a ser reconquistada pelos mouros. Foi no reinado de D. Afonso II que a sua pertença a Portugal foi definitivamente confirmada.
É-nos difícil imaginar, quando saímos com os nossos barcos para pescar na barra do Sado, no Mar Negro, na Comporta, que um dia aí tenham acontecido guerras sangrentas nessas águas que hoje cruzamos sem qualquer dúvida. O Forte de S. Filipe, com construção concluída em 1367, com amuras oblíquas para fazer resvalar os projécteis disparados desde o rio pelos corsários, viu acontecer coisas que hoje nos parecem impossíveis. Durante a governação dos espanhóis, de 1580 a 1640, o forte ou castelo de S. Filipe a que hoje vamos tomar um café, resistiu heroicamente à sua ocupação. Os espanhóis, que governavam na altura toda a Ibéria, nunca conseguiram lá entrar. Há um túnel que dá acesso à costa, e que permitia a obtenção de comida. Durante o tempo de governação do marquês de Pombal, este forte foi utilizado como escola de artilheiros, …era dali que se treinavam os tiros de artilharia pesada. Quando passamos com os nossos barcos em baixo, não pensamos muito que alguém pode resolver atirar-nos ao fundo com uma bala de canhão, mas isso já aconteceu a muito boa gente….
Mas há mais sinais interessantes para sul: o castelo de Aljezur, datado do século X e construído pelos muçulmanos, o Ribat da Arrifana, com a configuração de um convento-fortaleza, construído na Ponta da Atalaia. Esta zona de costa será porventura dos últimos refúgios de peixe da nossa costa. Já lá mergulhei e posso testemunhar que é de facto uma região inóspita e muito sossegada, ainda cheia de peixe.
Toda a zona do sudoeste alentejano, dada a movimentação de cargas e dos valores envolvidos, foi sendo progressivamente objecto de ataques de corsários. Nos séculos XV, XVI e XVII, foram construídas diversas fortalezas que visavam a protecção das povoações costeiras e também das localidades interiores que a partir da costa eram acessíveis. São exemplos o Forte de São Clemente, em Vila Nova de Milfontes, a Fortaleza da Arrifana, o Forte da Ilha do Pessegueiro, o chamado Forte da Ilha de Dentro, hoje em ruínas.
Na ilha do Pessegueiro, ao largo de Porto Covo, encontram-se imensos vestígios arqueológicos romanos e cartagineses. Já no século XVI foi construído um pequeno fortim neste estratégico ponto, exactamente a meio caminho entre o Cabo de Sagres e a foz do Sado. A ilha do Pessegueiro, a que hoje não prestamos importância nenhuma, foi no tempo dos romanos um importante entreposto comercial costeiro, tendo instalado um centro de salga de peixe. Foram muito recentemente descobertos novos tanques de salga de pescado. O canal entre a ilha e a praia era utilizado para fundear embarcações em segurança. Recordo que em 1920, o meu amigo tio Jaime, pescador da Murtosa de quem já vos falei, utilizava esta pequena ilha como base das suas operações de pesca à lagosta e lavagante. A quantidade era tanta ou tão grande que apenas guardavam os exemplares de lagosta acima dos 5 kgs de peso. Eram vendidos para Espanha, os grandes consumidores de marisco à época, lavagantes acima dos 10 kgs. Hoje, pensa-se na Ilha do Pessegueiro como zona de lazer, mas tempos houve, na dinastia Filipina, em que se pensou em ampliar o ancoradouro, construindo um passadiço em rocha, da ilha do Pessegueiro até à costa, até Porto Covo. Esta ligação a terra teria como principal função a de impedir que os corsários utilizassem a ilha como ponto e apoio às suas actividades de pilhagem. Em 1590 chegou mesmo a iniciar-se esse projecto, a construção do Forte de Santo Alberto, no alinhamento do Forte de Nossa Senhora da Queimada, em terra. Em conjunto, os dois fortes conseguiriam uma barragem de fogo de artilharia que impedia o estacionamento de barcos piratas na zona. Em 1598 o responsável pela obra foi transferido para Vila Nova de Milfontes, a ideia foi abandonada e tudo o que estava construído acabou por ruir.
Não deixa de ser curioso pensar qual o aspecto da costa daqui a algumas centenas de anos. Ao ritmo a que estamos a alterar a paisagem, a modificar o meio em que vivemos, muito pouco será igual.
A figura que faria um romano das galeras a olhar para um hoje vulgar barco a motor, não será muito diferente da que faria um de nós ao olhar para algo similar a um barco no futuro, daqui a umas centenas de anos.
Não vamos estar cá para ver….
Bom dia Vítor,
ResponderEliminarMais um excelente artigo!
Abraço,
A. Duarte