Muita sede ao pote...

Quando estamos a pescar no sítio certo e na hora certa, com o equipamento certo, e com a isca ou amostra certa, podem acontecer “excessos de gula” por parte dos nossos queridos peixinhos que dão origem a capturas múltiplas. 
As duplas e triplas surgem em situações de frenesim alimentar, de descontrole absoluto, que nos dão possibilidades de pesca que noutra altura do dia não teríamos. 
Vamos tentar explicar como e porque acontece. 

Já aqui foi referido que o peixe tem ciclos de alimentação. A dada altura, aquilo que era uma calma pachorrenta, com peixe miúdo a cohabitar com predadores calmos e inactivos, transforma-se numa corrida contra o tempo, com peixes a aparecer de todos os lados, a querer comer. 
Se durante algumas horas temos uma actividade reduzida e a um dado momento tudo muda, será interessante saber por que razão isso acontece. Todos já tivemos a oportunidade de constatar este fenómeno, meia dúzia de picadas durante horas, o vento começa a soprar para a mudança de maré, e de repente temos peixes a morder as nossas iscas. E ao mesmo tempo que a maré avança, e que a corrente ganha velocidade, a actividade do peixe torna-se frenética. 
Estes ciclos têm a ver sobretudo com as marés, e com períodos do dia muito concretos, que criam condições favoráveis para que as coisas aconteçam desta forma. Na zona onde vivo, Setúbal/ Sesimbra, este período acontece de forma muito sensível nas três últimas 3 horas de enchente, com o aumento da força da água. O peixe vira-se à corrente, e aproveita aquilo que lhe aparece de frente. Temos pois que são criadas condições favoráveis ao bom desempenho alimentar, duas vezes ao dia, e durante cerca de três horas. 
Não significa necessariamente que só valha a pena pescar durante estas fases do dia/ noite, claro que não. Há sempre peixes que não tiveram a sorte de conseguir algo suficientemente bom, e que continuam a procurar, outros que, pese embora estejam de estomago cheio, continuam a comer …porque sim. Também o período do crepúsculo, é sabido como sendo especialmente produtivo. É um clássico na pesca ao robalo que se consigam excelentes resultados nos primeiros dez a quinze minutos do raiar do dia e do anoitecer. Nesta situação, isso tem a ver com a habilidade que os predadores desenvolveram de conseguir caçar em situações de baixa luminosidade, e que as suas presas não têm. Onde há uma possibilidade de vantagem, a natureza aproveita-a. Presas fáceis são sempre bem recebidas. Os alevins, que ao início estão desamparados e indefesos perante os predadores, à medida que os meses vão passando, aprendem a reconhecer o perigo, a saber o que esperar dos predadores, o onde e como, e passam a saber defender-se. E crescem. Mas há um preço a pagar pela experiência, muitos deles serão comidos antes de chegar a saber o que fazer. O momento do alvorecer é um desses momentos, em que a degola dos inocentes acontece mais frequentemente. Se chegamos ao local mais tarde e o peixe não tem o comportamento habitual, isso pode ter a ver com o facto de ter comido horas antes, num preciso momento. 
Aquilo a que chamamos de frenesim alimentar dá-se em situações muito particulares, em que o peixe coloca de lado a sua habitual prudência, e, na presença de outros congéneres, reduz drasticamente o tempo de análise. Come e ponto final. 
Para peixes de cardume, é muito mais fácil que isto aconteça. Todos vós já tiveram um cardume de carapaus a comer desenfreadamente, e sabem que o tempo de reacção é nulo. A isca chega e é engolida, seja aquilo que for, no espaço de um segundo. E se tiverem sorte, poderão conseguir fazer igual com outros tipos de peixes, douradas, pargos, robalos, atuns, etc. Não há excepções, quando comem, comem todos. Da mesma forma que quando estão cheios, a fase seguinte é naturalmente abrandarem o seu ritmo, e procurarem descansar das suas correrias. Este fenómeno acontece sempre para uma determinada massa de peixes, não é um caso isolado. Há um padrão, uma tendência, que leva todos os peixes de uma determinada espécie a reagirem de igual forma. 

Aqui tive uma situação em que dois pargos que coincidiram na mesma isca viva, ao mesmo tempo. Há que ter o cuidado de libertar peixe juvenil, o que foi feito.


Este fenómeno dá-se quando, de forma simultânea, todos os peixes desatam a comer tudo o que podem, respondendo a um click, um chamamento que os afecta e que a nós nos dá muito jeito. 
Quando encontramos maiores concentrações de peixes, é muito corrente que os ataques múltiplos ocorram. Acontecem em todos os pesqueiros, mas muito mais em habitats mais preservados, menos explorados pela pesca, onde o peixe encontra condições para se reunir sem ser perseguido por redes, arrastões, aparelhos, etc. Os sítios digamos “mais esquecidos” podem proporcionar densidades populacionais acrescidas, sendo que cada vez são menos. 
Tenho alguns pesqueiros destes, onde acredito que muito pouca gente ou ninguém vai pescar, e que eu faço apenas três a quatro vezes por ano, e realmente nota-se uma diferença significativa no comportamento do peixe. A gestão deve ser feita no sentido de dar sossego aos cardumes, deixá-los evoluir na sua rotina diária, sem anzóis, sem pressão. Infelizmente as perspectivas não são muito rosadas, diria mesmo que apontam no sentido do declínio cada vez mais acentuado dos nossos stocks de peixe. E temos quem contribua alegremente para isso todos os dias. 
Pensem nisto: se um só arrastão descarrega 450 caixas de peixe num dia, …como ficam e o que fica naqueles fundos? Como pode existir vida depois da passagem de uma destas unidades de pesca profissional? O lobby das pescas é muito forte, e sabe que ao acenar ao governo com números baixos, acaba sempre por receber subsídios. É dinheiro nosso, dos nossos impostos. Dinheiro daqueles que ficam felizes por conseguir fazer uma dupla de pargos. 
Essa gente, quando pede subsídios, nunca refere as toneladas de peixe que mata todos os dias, pescado que é capturado e que, por falta de venda, é retornado ao mar, para apodrecer. São toneladas! Para eles, os nossos peixes, que capturamos à unidade, e que de quando em quando nos dão a alegria de vir em pares, para eles são números, são quotas, e são capturados à tonelada. E nada resiste a isso, a natureza não consegue responder. Se temos dezenas de arrastões a operar no país, e ainda temos de pagar-lhes subsídios por fracos desempenhos, não seria de acabar com a arte de arrasto e ponto final? Se destruímos os fundos, numa imbecil politica de terra queimada, …o que sobra? 

O meu amigo Luis Borges, com uma famosa tripla captura de cantaril, a um jig armado com dois assistes duplos.


Quando estamos perante uma situação destas, em que temos muito peixe por baixo do barco, aquilo que se afigura como mais importante é manter os cardumes fixos na nossa zona. 
Isso não se faz com iscos duros, que se mantêm no anzol muito tempo. Esse é o tempo de ter uma isca macia, que de desfaça, que obriguei o peixe a procurar restos. Se quiserem, não é o tempo para pescar com cavala, é o tempo da sardinha. 
Precisamos de uma isca que a cada cravada salte e fique no pesqueiro. O peixe que é ferrado cospe a isca, ou esta desfaz-se com a violência da puxada, e serve para entreter os outros, enquanto não voltamos a ser capazes de apresentar novamente os nossos anzóis tapados. Contrariamente aos adeptos de iscadas ligadas com elástico, para fixação de isca mais tempo, sou apologista de provocar este frenesim alimentar, que torna os peixes mais fáceis, mais cooperantes. 
Por vezes pesco com lula de arte, a pequena lula de bico que é vendida no mercado. Um anzol 3/0 leva duas a três destas lulinhas. Uma delas é sempre deixada “pendurada”, presa por uma pele fina, para ser muito fácil roubá-la do anzol. E os resultados são animadores, acreditem. 
O peixe tem tendência a fixar-se na zona onde a comida cai, e se nós estamos a “distribuir” lulas, e o nosso colega do lado tem, por absurdo, uma tira de lula bem presa com elástico, …onde pensam que os peixes vão concentrar-se? 
Por isso passamos a ter cada vez mais picadas, e consequentemente o nosso famigerado colega cada vez menos. Porque os peixes passam-se para o nosso lado. A competição, a concorrência entre eles, faz o resto, obriga-os a ser menos cuidadosos, e a dar-nos mais possibilidades de êxito. 
Ter a isca muito presa só faz sentido em momentos de escassez de peixe grande, com muito peixe miúdo a apoquentar-nos os anzóis. Aí, faz sentido, os peixes pequenos mordiscam a iscada, mas não a conseguem engolir e essa agitação chama os grandes que fazem valer o seu superior peso e agressividade. Fora isso, é sempre de apostar em iscadas macias, por exemplo sardinha. Deixem-nos levar a comida, …eles voltam logo a seguir. E de quando em quando, ….aos pares!....

Os parguinhos de Setúbal. Este tipo de pargo legítimo, nesta fase da sua vida juvenil conhecido por “parguete”, é muito comum nesta zona. 



Vítor Ganchinho



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