Recebi imensos contactos relativos ao último artigo de polvos. Na verdade, é um bichinho espantoso de qualidades, de truques, de resistência e sempre uma inesgotável fonte de imagens interessantes. Por isso volto ao tema, com mais alguma informação.
Durante anos, fiz-lhes caça, e pesquei-os. Pesquei-os aos milhares. Hoje, sou mais um amigo de polvos que um pescador de polvos, por lhes reconhecer uma existência plena de desafios, de obstáculos, de dificuldades tremendas que ultrapassam porque são inteligentes, são fisicamente muito aptos, e reúnem em si um conjunto de admiráveis qualidades.
Praia dos Coxos, na Ericeira. As zonas baixas são invariavelmente frequentadas por polvos, que aí encontram alimentos em abundância. |
A polivalência alimentar que demonstram leva-os longe.
São comuns em cima dos bancos de mexilhão, que abrem de uma forma muito sui generis: cada um dos tentáculos segura uma das conchas do mexilhão e faz pressão constante para abrir.
A princípio o bivalve resiste, luta pela sua vida. Ao fim de algum tempo, a fadiga obriga-o a sucumbir, e abre. É comido pelo polvo. E começa outra luta, com outro mexilhão. O mesmo se passa com as ameijoas, que sofrem o mesmo tratamento. Quanto mais lisas as cascas mais fácil a tarefa. No fim, abrem todas, por exaustão, e o seu interior é cuidadosamente aproveitado pelo octópode.
A sua grande mobilidade permite-lhes caçar em qualquer profundidade e obter resultados. Pescam-se polvos a 200 metros ou em 20 cm de água. Porque há uma concentração de vida muito significativa nos primeiros metros de costa, é natural que existam muitos mais nesta franja de profundidades. O polvo alimenta-se de mariscos, de caranguejos, de bivalves, de peixes, etc.
Tudo aquilo que é proteína e o pode fazer crescer é útil e de aproveitar. Os restos de conchas, pedras, latas, etc, são carregados para a sua toca, e servem-lhe para esgrimir contra os ataques de safios.
À chegada do predador, o polvo agarra nesses objectos e coloca-os a todos entre si e o opositor. Na maior parte das vezes, ganha, porque é impossível morder um tentáculo tapado com pedras. Eu já o senti na pele e sei o quanto é difícil penetrar naquela barreira de calhaus. Não se consegue. Logo por azar, eles, ao sentirem-se libertos da ameaça, largam tudo e vêm para fora do buraco, espreitar para cima, para nos ver. E é aí que, sendo rápidos, temos as nossas chances.
Uma das presas favoritas dos polvos, a navalheira. Pese embora as suas defesas, pinças fortes e aceradas, rápida deslocação e capacidade de se esconderem em frestas muito estreitas, ainda assim não são capazes de escapar a um animal que, não tendo esqueleto ósseo, pode ir aonde quiser. A captura de caranguejos é particularmente divertida de observar: o polvo faz uma emboscada, e quando o caranguejo passa, salta-lhe ao caminho, envolvendo-o com os tentáculos, e apertando de forma a imobilizar-lhe as pinças. A seguir, injecta-lhe a partir da boca uma porção de saliva, a qual contém uma toxina, a cefalotoxina, que, para além de paralisar o caranguejo também lhe descola os músculos do esqueleto. Não tem assim de engolir a parte esquelética, o que seria um problema. Grosso modo, a navalheira é….sugada.
Um polvo num campo de lapas. Os polvos esperam o momento certo para atacar, sabem que as lapas precisam de se deslocar na pedra para se alimentar e que têm de abrir espaço. |
A mais ligeira frincha é suficiente para criar um ponto fraco. Nós fazemo-lo com uma espátula ou uma faca velha, os polvos fazem-no com paciência. As lapas são consideradas uma iguaria nas nossas ilhas, fazem parte da cultura gastronómica, tal como as cracas, e constam da lista de qualquer restaurante de qualidade, mas no território continental não são muito procuradas. Existem por cá aos milhões.
Em rigor, não há zonas onde um polvo se sinta desconfortável, a não ser em campos de ouriços. Tudo o resto são tapetes macios para quem tem oito pernas e pode fazer o seu caminho. |
Polvo que se sentiu descoberto. Quando mudam para esta cor, isso significa sempre que entenderam a fragilidade da sua posição, e que as possibilidades de fuga não são muitas. |
Nestas condições, normalmente podem ser capturados à mão, sem qualquer utensílio. Quando estão bem entocados, o gancho de polvos, ou polveiro, é indispensável.
Um pequeno polvinho, aquilo a que vulgarmente se chama de “carracinha”, e que, pese embora seja um animal jovem, já teve de lutar muito para chegar a esta fase. |
Os polvos vivem normalmente dois anos, e durante esse período passam de um estado larvar, no ninho defendido pela progenitora, a pequenos seres pelágicos, que se espalham com as marés. Durante 4 a 6 semanas irão vaguear pela coluna de água, e só depois baixam ao fundo. A femea faz posturas de cerca de 500.000 ovos com cerca de 2mm, pendurados em cachos do tecto do abrigo, e o macho morre normalmente a seguir à cópula. Embora a reprodução ocorra todo o ano, tem dois períodos de maior concentração, a Primavera e o Outono. A migração ocorre de baixo para cima, de zonas mais fundas, onde têm protecção, para zonas mais baixas, onde têm mais comida. São as condições de mar que determinam essas movimentações. Mar calmo significa quase sempre uma grande quantidade de polvos na costa.
Na zona onde os costumo observar, a baía de Setúbal, Sines, Sesimbra, o período reprodutor por excelência é o mês de Outubro e, dependendo das condições de mar, parte de Novembro. Em anos em que há alguma clemência dos temporais, em que as ninhadas podem ser cuidadas do principio ao fim, a produção de polvos é boa e nota-se um acréscimo de exemplares na costa. Mas se a meio da postura acontece um temporal forte, tudo se perde, porque as áreas de concentração de polvos são normalmente zonas baixas, e as ondas de 5/6 metros destroem tudo. O período de incubação, ao ser longo de 25 a 60 dias, expõe estes bichos a acontecimentos meteorológicos. Raramente se tem um período tão longo de acalmia.
Sempre que há um peixe morto no fundo, os polvos acodem para aproveitar a oportunidade. |
A espécie mais comum no nosso país é o “octopus vulgaris”, que vive em profundidades superiores a uma outra espécie também comum entre nós, mas que habita mais fundo, o “polvo cabeçudo”, de nome científico “Eledone Cirrhosa”, Lamark 1798, que vem normalmente nos nossos anzóis quando ultrapassamos os 100 metros de fundo. Não tem interesse comercial e isso deve-se a um tamanho bem mais pequeno que o nosso protagonista de hoje.
Os polvos comuns crescem , desde que não tenham problemas com gaiolas, ou outras armadilhas de profissionais, até ao 1,2mts nas femeas, e cerca de 1,3 nos machos. Eu pesquei-os até aos 11 kgs, sendo este peso algo de excepção, raro, já que o normal serão os 2 a 4 kgs.
Excelente fotografia, esta! Polvo acamado numa zona de mar parado, com inúmeras anémonas e algas. |
O sifão pelo qual respira está aqui na fase de expelir água, bem aberto. Estes bichinhos têm um par de branquias, de 7 a 11 lamelas branquiais externas. Os braços não têm todos o mesmo tamanho, e como já vimos anteriormente, um dos oito tentáculos tem o orgão sexual, o hectocótilo. No total, os polvos têm entre 160 e 180 ventosas, que lhes dão uma capacidade de sustentação ímpar. Utilizam este sistema para tudo, inclusivé para caçar, ou para abrir conchas.
Uma carracinha surpreendida em cima da pedra errada. Não teve tempo para se colorir de escuro, sequer. Trata-se de um polvo bébé, numa incursão por um baixio. |
Os polvos têm um mínimo legal de captura de 750 gramas. Posso assegurar que a frota profissional os captura abaixo dos 100 gramas. Em lota de segunda venda já observei caixas com centenas de polvos, de 8 a 10 cm de diâmetro.
Espantosa foto! Um polvo no meio de uma cama de algas, no seu melhor, com o corpo ouriçado para parecer mais um elemento do fundo, irregular, sem formas. |
Estes animais passam virtualmente incógnitos, quando no seu estado natural, em locais de muita vegetação, ou pedra partida. É natural que os consigam perceber aqui, mas estas são condições óptimas, com o foco dirigido ao bicho. Mas se tivessem cem metros para procurar, …não o encontravam.
Pode ser entendido como uma alga no meio das algas, ou uma pedra no meio das pedras. |
Vítor Ganchinho