Sair ao mar - Os gansos patolas

Admito que haja quem não ache graça nenhuma a ir ao mar sem que isso implique trazer peixe para casa. 
A pesca continua a ser entendida com uma actividade essencialmente extractiva, em que o “resultado do dia” é medido pela quantidade e quilos de peixe capturado. 
Este é o padrão, e se quisermos ser justos, é entendível que quem investe em material de pesca, em combustíveis, em esforço e tempo, possa pensar assim. 
Também a justificação a dar em casa à nossa consorte se torna muito mais fácil quando todo o investimento em materiais acaba por ser recompensado com um ou outro peixe de excepção. 
Em suma, comprar equipamento de pesca sim, …desde que haja retorno. 

A pesca também é isto, ir e apreciar as coisas simples da vida.


Para algumas pessoas, as coisas já deixaram de ser exactamente assim. Sem fundamentalismos, até porque eu próprio também gosto de apresentar um bom peixe, um pargo, um goraz, uma dourada, à minha família ou aos meus amigos, a verdade é que outros valores mais altos se levantam. A pesca pode ser um espaço de lazer, de convívio, e até, porque não, de alguma introspecção. Há pessoas que têm uma vida tão agitada durante a semana, que contam os minutos para que chegue o fim de semana, e com ele a oportunidade de poder sair ao mar e disfrutar da liberdade de espaço, de ar puro, de paz de espírito. A pesca proporciona isso, é uma forma muito saudável de conseguir estabelecer um compromisso perfeito entre a corrida do dia a dia, e a largura de horizontes de que todos necessitamos quando o nosso trabalho é feito entre quatro paredes. 
Para quem sai sem rumo definido, sem a obrigatoriedade de trazer peixe para casa, sem pressão de qualquer tipo, basta abrir bem os olhos e ver o que aparece. Num dia de mar, acontece de tudo. É uma baleia que sopra e lança o seu repuxo de água bem alto, são os golfinhos que saltam e se divertem entre si, depois de terem comido a quantidade necessária de cavalas ou carapaus, são as aves marinhas que passam por nós curiosas, a tentar perceber o que estamos ali a fazer. Observar de longe um ataque maciço de gansos patolas, “morus bassanus”, também conhecido por alcatraz, a um cardume de cavalas aprisionadas entre os golfinhos e a superfície, é um espectáculo incrível. Que não raro, já que acontece frequentemente, sendo possível assistir várias vezes ao dia. Estas aves, viajantes incansáveis do grande azul, são palmípedes da família dos Sulidae, são suliformes. Pesam cerca de 3 kgs e têm uma envergadura de asas na ordem dos 170 cm, para um comprimento de corpo de 110 cm. As crias nascem castanhas, com algumas malhas e até atingirem a idade adulta, passam por diversos estágios de cores, de cinza a malhado de cinza e branco, fixando-se nesta cor quando adultos, ao fim de cinco anos de idade. Nesta altura, apresentam todo o corpo em branco alvo, apenas ostentando as pontas das asas na cor negra. Não há dimorfismo sexual, ou seja, os machos são fisicamente iguais às fêmeas em termos de coloração. Nidifica em colónias de rochas isoladas, em grupos que podem chegar a ter 75.000 aves. Na Escócia e Ilhas Faroe, é caçado a tiro, para alimentação. Não é considerada uma espécie em vias de extinção, pelo contrário, o seu número de efectivos tem vindo a aumentar. 

Na GO Fishing Portugal já salvámos uma série de pássaros desta espécie, normalmente enredados em cabos de nylon, ou mesmo troços de panos de redes. Chamo a atenção para a possibilidade de poderem provocar ferimentos graves, dado que o seu bico é aguçado e cortante. No caso de terem de manusear um ganso patolas, é sempre conveniente cobrir a ave com um pano, de forma a acalmar o animal. Muito cuidado com os nossos olhos, dado que uma picada sua pode ser fatal para nós. 



Para que tenham uma ideia da eficácia com que se lançam do espaço para atacar os cardumes de peixes que evoluem alguns metros abaixo da linha de água, digo-vos que os patolas são um caso raro de precisão. O seu corpo está absolutamente preparado para mergulhos na água a alta velocidade. O pescoço possui músculos fortes, para permitir aguentar a difícil entrada na superfície da água, onde entram rígidos e muito direitos. Os ossos do crânio são esponjosos, de forma a amortecer a pancada. As narinas encontram-se embutidas no bico e podem ser fechadas, permitindo a selagem e com isso a não entrada de água. 
Os voos são preparados a cerca de 15 a 60 metros de altura, nível a que a ave descreve círculos sobre o cardume, marcando um peixe. A queda abrupta é feita de asas semi fechadas, para ganhar velocidade na descida. Neste ponto, seria impossível que o pássaro não viesse a quebrar as asas aquando do impacto com a superfície do mar. Evitam isso cruzando as asas atrás, nas costas, no sentido da cauda, o que fazem numa fracção de tempo inferior a um segundo. Ou, se quiserem mais precisão, qualquer coisa como 14 centésimos de segundo. Calcula-se que um ligeiro atraso seja o suficiente para quebrarem as asas. Como fazem para executar com esta precisão não sabemos, mas o instinto e perfeição do gesto técnico permite-lhes sobreviver a uma pancada que seria mortal se houvesse um ligeiro atraso nesta execução de recolha das asas. O impacto é brutal, sendo que o bico acerado abre espaço para o resto do corpo, fusiforme, como uma flecha, a cerca de 100 km/h, permitindo com o impulso ganho uma descida até cerca de 8 a 11 metros de profundidade. A seguir, e usando as suas patas com membrana, e caso necessário, a ave pode ainda nadar mais 10 a 15 metros para o fundo, havendo registos de mergulhos totais até 25 metros de profundidade. Aquando do mergulho entra em acção uma pálpebra especial, uma membrana nictitante que cobre o olho e permite à ave ver debaixo de água, conseguindo assim fazer a captura do peixe. Algo como se fossem os nossos óculos de natação. 


 
Engolem o peixe capturado sempre debaixo de água e nunca o transportam no bico quando iniciam o voo. Provavelmente por recearem a competição com os abutres de água, os aios, de cor castanha e guias de asas brancas. Temo-los por cá e vivem de roubar comida às gaivotas. Batem-lhes e picam-nas no ar até estas regurgitarem o que têm no papo. 
Mas posso dizer-vos mais sobre esta fantástica ave: possuem sacos de ar entre as costelas e os músculos intercostais, entre o esterno e os músculos peitorais. Estes sacos são preenchidos com ar quando a ave inspira e são os responsáveis por trazer o animal à superfície quando este se ocupa da operação de engolir o resultado da pescaria: o peixe. No caso de permanência debaixo de água por mais tempo que o normal, estes sacos de ar, por efeito de contração muscular, podem reenviar ar direto aos pulmões. 
As suas penas são absolutamente impermeáveis, o que permite suportar o frio da água do mar, e ajuda à flutuabilidade. Uma glândula sebácea fornece gordura suficiente para que o ganço, através do bico e do pescoço, possa passar por todo o seu corpo e consiga manter-se impermeável à entrada de água. Penas densas e muito sobre expostas garantem o isolamento necessário a quem passa longos períodos no mar. Suportam longos períodos sem comer, e para isso contam com as reservas de gordura que também os ajudam a flutuar. Sabemos que nem sempre será fácil conseguir peixe para uma refeição, quando nós estamos em casa, eles estão no mar, mas não necessariamente a comer….
Os patolas atingem velocidades de voo de cerca de 55 a 65 km/h, e trata-se de uma ave migratória. Encontramo-la frequentemente em Portugal, mas algumas destas aves chegam a fazer viagens de 2600 km, entre o norte da Europa e o sul. 
O seu voo não é propriamente um voo fácil e fluido. Já todos nós passámos de barco por estes pássaros quando estão pousados, e sabemos da sua enorme dificuldade em levantar da água. Mais ainda quando têm o papo cheio de peixe, que lhes pesa imenso. Levantar voo significa para eles ganhar algum balanço, batendo as asas dentro de água, num arranque que mais é um chapinhar continuo, até conseguirem a altura suficiente para poder utilizar a sua envergadura de asas e poderem planar. Normalmente tentam levantar voo contra o vento, o que pode ser um problema quando o vento sopra do lado em que nos encontramos com o nosso barco. Alguns deles já bateram contra o casco exactamente por isso, porque a sua capacidade de manobra sem vento é mesmo muito reduzida, e pouco podem fazer para melhorar. Aconselho deixarem uma reserva de distância suficiente para que eles possam “manobrar” sem vir contra nós. Um pássaro destes sem uma asa é uma ave morta. 
Espantem-se com isto: já foram vistas aves destas a procurar comida em…jardins zoológicos, ou em lagos de cidades com peixes. Também infelizmente, em tempos de escassez, já foram encontrados nas lixeiras a céu aberto. 
Normalmente seguem os barcos de pesca profissional, ou mesmo os nossos, da pesca desportiva, e não é raro que esperem por uma oferta. Que quase sempre surge, porque são bichos simpáticos. Nós gostamos dos nossos patolas!!
Recordo um dia em estava a pescar com o meu inseparável colega Gustavo Garcia, e em que resolvemos dar uma cavala a um deles. E a seguir outra. E a seguir outra e a seguir mais umas seis ou sete, e no fim, uma cavala enorme, com bem mais de 500 gramas. E tudo coube no papo do animal, ……deixando-nos espantados pela sua capacidade e apetite!
O facto de os gansos patolas serem brancos, permite a outras aves da mesma espécie a identificação fácil da sua presença, pelo contraste da cor contra o azul da água. Vemos com muita regularidade pássaros que se dirigem rapidamente para uma determinada zona, normalmente onde se encontram os cardumes, ou golfinhos, e isso advém não só da excelente visão mas também desta particularidade de detecção de congéneres que já estão a caçar. Por sua vez, o facto de serem brancos também ajuda, porque a sua silhueta clara passa despercebida aos peixes, que não têm um contraste escuro com o céu. 
Por vezes vemo-los a introduzir a cabeça na água e a espreitar se existe algo por baixo. São aves incrivelmente bem adaptadas ao seu meio e merecem um grande respeito da nossa parte. É ajudar sempre que se puder, sobretudo em situações criticas de aves enroladas em redes. 

Espero que os passem a olhar com outros olhos a partir deste trabalho.



Vítor Ganchinho



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