Abrimos o estômago dos nossos peixinhos... e espreitámos lá para dentro

Pescador que se preza, arranja o seu peixe, e aprende com ele. O estômago de um peixe é um livro aberto para quem o sabe ler. 

Sendo aceitável pensar que cada um de nós pesca normalmente perto da sua área de residência, com pontuais deslocações a outros locais mais longínquos, é natural que estejamos sujeitos às características geográficas dos pesqueiros que nos estão próximos. O próprio tempo livre que podemos disponibilizar à pesca já limita um pouco as nossas incursões mais longas, não é comum que alguém do Porto se desloque ao Algarve para pescar assiduamente. 
Assim, é natural que tenhamos entre nós, pescadores portugueses, e para um mesmo peixe, diferenças de habitats, de estruturas, de profundidades e características físicas de fundos que irão condicionar a nossa técnica de pesca. 
Não se pescam robalos de igual forma quando temos 2 metros de mar batido, ou 40 metros de mar calmo. O peixe é o mesmo, mas tem hábitos diferentes, e por isso não pode ser pescado da mesma forma, nem sequer com os mesmos tipos de equipamentos. 
E muito provavelmente não iremos encontrar os mesmos alimentos no estômago de um peixe e outro, embora seja exactamente a mesma espécie. Nos baixios procuram e encontram presas de determinado perfil, e que não são necessariamente as mesmas que capturam nos fundões. 
Isto a propósito de um desafio que me foi lançado, de escrever sobre aquilo que comem os nossos peixinhos. 
A minha querida Leninha é uma pessoa muito compreensiva. Por vezes o mar está mau, revolto, e após algumas horas de andar a cavalgar ondas, a girar no tambor da máquina de lavar, ela vê que retorno a casa mesmo muito cansado da pesca. 
Por isso mesmo, quando chega o momento de escamar e limpar o peixe, recebo um claro e implacável “ nem penses….” e lanço-me à tarefa. Calha-me sempre a mim. 
Na verdade gosto de o fazer. Entendo-o como um prolongamento do prazer que a pesca me proporciona e também como uma oportunidade de aprendizagem. Abrir o estômago de um peixe é algo muito importante e que nunca deveríamos deixar nas mãos de outros. 
Encontramos ali a resposta a muitas das nossas interrogações, dúvidas e também confirmações e certezas de que estamos a pescar da forma correcta. Vamos explicar o porquê: 

O peixe não come no mesmo local, da mesma forma e o mesmo durante todo o ano. A temperatura das nossas águas não é constante, a disponibilidade de comida não é permanente, o peixe é obrigado a mudar de locais, a fazer migrações longitudinais, ao longo da costa, e também perpendiculares à costa, para zonas mais fundas. Também durante um temporal forte as condições de alimentação não são as mesmas que o peixe encontra quando tem um longo período de acalmia. Se é verdade que todos estes factores mudam, também é aceitável pensar que os nossos peixes têm de ser capazes de se adaptar ao que está disponível, às condições que encontram nesse período, inclusive nesse dia. Se hoje têm caranguejo pilado à disposição, amanhã a maré ou as correntes levaram-no para quilómetros de distância e passa a haver qualquer outra coisa. Ou não. A estratégia trófica de cada espécie passa quase sempre por aproveitar os recursos do local onde costuma habitar, conseguir manter-se com o que existe, sabendo nós que em determinados momentos o peixe não tem condições para garantir alimentação suficiente. Não que o peixe tenha medo do mar, aquilo a que chamamos de más condições é quase sempre muito bem vindo por parte de quem está muito melhor adaptado que nós à vida no meio das ondas. A verdade é que no meio dos piores temporais, há espécies a caçar….

Pequeno caranguejo retirado do estômago de um robalo. Fotografei com o máximo de aproximação possível, pois era mesmo muito pequeno. Já contava com algumas horas de ingerido.


O formato da boca dos peixes já nos diz muito sobre a sua tendência alimentar. Mas é todo o sistema digestivo que tem de ser analisado, e não apenas a boca. Basicamente, quando falamos de peixes, falamos de uma boca, um estômago e um ânus. Todos comem algo, e são os mecanismos dentários e volume de boca que determinam que tipo de alimento pode ser ingerido. Temos os que possuem boca e dentes pequenos, alinhados para prender e cortar algas, temos os que têm dentes mais separados e aguçados para capturar outros peixes, e por isso incapazes e desinteressados de comer algas. Consideramos pois que os peixes podem ser carnívoros, herbívoros e …assim assim, ou seja, omnívoros. Sabemos que as salemas se alimentam de algas, logo, pescamo-las com bagas de algas. Tentar um robalo com algas no anzol já eleva o pescador ao domínio do acompanhamento médico, da psicanálise, por tratar-se de pouco proveitosa tarefa. Não que lhes seja impossível engolir algas, mas porque o seu sistema digestivo não consegue retirar qualquer aproveitamento dessa alimentação. E aqui falamos do metabolismo dos nossos peixes. Um sargo é essencialmente um mariscador e apresenta um aparelho dentário próprio para isso mesmo. O que não significa que o seja em exclusivo, são inúmeros os casos em que os prendo com jigs ou vinis, ou seja, com imitações de peixes. 

Sem sombra de dúvida: este robalo estava convicto de que iria abocar um pequeno peixe. E era um vinil japonês da Smith.


Para que obtenham os nutrientes necessários à vida, os peixes estabelecem estratégias de caça, e contam com apuradíssimos sistemas de detecção, perseguição e captura. Os cardumes de pequenos peixes não são eternamente pequenos todos os dias, eles crescem. E aprendem. Os peixes das posturas recentes não podem sobreviver sendo incautos e distraídos toda a sua vida. O meio marinho não perdoa aos mais fracos e inadaptados. Esses morrem sempre na primeira oportunidade. Num meio agreste e hostil, é comer e não ser comido. E isto acontece 24 sobre 24 horas, todos os dias do ano, até que esse ser sobrevivente seja …devorado por qualquer outra criatura. Um dia isso acontecerá, faça o que fizer, nem que seja por velhice. Um dia, um pujante pargo será alimento de uma horda de búzios ou estrelas-do-mar. As leis da natureza são claras e tacitamente aceites por todos. 

Este lagostim estava no estômago de uma abrótea, que o vomitou à chegada ao barco. Teria cerca de 6 cm de comprimento total.


Estas frágeis e minúsculas sardinhas de 3cm estavam na boca de uma anchova que pesquei em Valência. Teriam sido comidas há pouco mais de dez minutos, embora pareça que já apresentam alguns sinais de decomposição. Mas não, são frescas, embora “ raspadas” dos dentes do predador. 


Ao abrir um robalo, encontrei isto. E esta foto prova bem a minha teoria de que mesmo peixes com algum tamanho, acima de 2 kgs, não desdenham pequeníssimas presas para compor a sua dieta alimentar. Por isso os pesco com vinis e jigs de 5cm, e eles… mordem. 


Um robalo, pela dentição que tem, está preparado para perseguir e morder uma presa, um caranguejo, um pequeno peixe, um anelídeo, inclusive moluscos, polvos, chocos, etc. Por seu turno, uma dourada, um peixe mariscador por excelência, tem um sistema dentário preparado para prender e esmagar alimentos duros, com casca. A diferença entre um e outro é basicamente que o robalo engole a presa inteira, e tem estomago dimensionado para isso, e a dourada esmaga e mastiga, sendo a sua dieta necessariamente diferente. Logo é entendível a razão pela qual o robalo tem de possuir um estômago muito grande, pois a sua rotina é a de engolir presas com alguma dimensão, ou várias de menor dimensão. 

As salemas, têm um tubo digestivo muito longo, estreito, para que possam digerir e extrair das algas e plantas o máximo possível de nutrientes. Isso obriga-as a comer sem interrupção, dada a mais fraca rentabilidade destes elementos vegetais, em comparação por exemplo com uma cavala engolida por um robalo, um alimento muito gordo e nutritivo.


A forma como os peixes conseguem captar a energia de que necessitam não é pois idêntica, uns conseguem um máximo de nutrientes num curto espaço de tempo, (o robalo que engole uma cavala), e outros passam muitas horas a raspar plantas para conseguir o mesmo nível de energia. Alguns peixes fazem a captação de alimentos quase invisíveis, nomeadamente o plâncton, as ovas de outros peixes, etc. A sardinha por exemplo, é um desses exemplos. De facto, minúsculos organismos como o zooplâncton são a base de alimentação de grandes massas de peixes, e poderíamos dizer de quase todos os peixes quando do seu estado larvar. Os minúsculos robalos acabados de eclodir não comem sardinhas! O crescimento dos peixes possibilita-lhes ter acesso a outras fontes de alimentação, mas enquanto são um minúsculo ser de poucos milímetros, alimentam-se de minudências que a nós humanos, ou são invisíveis ou são desconsideradas como alimento possível. À medida que o seu corpo cresce, e o seu metabolismo se prepara para mais altos voos, os peixes passam também a ter a capacidade de atacar seres com outro tamanho. E aí, a sardinha passa a ser uma presa comum para o robalo. Entendam este processo como algo que é constituído por fases, quer de crescimento físico dos predadores quer também de opção obrigatória quando as condições de mar obrigam à digestão de presas mais pequenas. Os peixes grandes também têm fases do ano em que preferem peixinhos pequeninos! Falámos nisso anteriormente, quando abordámos a questão das temperaturas e oxigenação das águas. Falámos sobre isto da dieta dos nossos peixes e do equilíbrio homeostático em 20.10.2020. Voltem atrás e leiam

Portugal é um dos maiores consumidores de pescado do mundo, com 56 kg/ pessoa/ ano. A média da UE é de 25 kg, o que nos coloca muito bem posicionados neste ranking de obtenção de benefícios para a saúde. Comemos peixe e comemos bem, apesar de colocarmos demasiada pressão sobre espécies dominantes da cadeia trófica, como o robalo, a corvina, o espadarte, o atum, etc. Outros peixes poderiam ser utilizados na nossa dieta com igual ou maior qualidade, nomeadamente a cavala, a sardinha, a sarda, o carapau, etc, e com custos inferiores. 

Anémonas, algas, tudo coabita em cada centímetro de rocha, e acreditem, o cm2 deste espaço é vendido muito caro. Aquilo que para uns é apenas algo a evitar, para outros é comida e procuram-na avidamente. As bogas, as tartarugas, o peixe lua adoram... medusas e alforrecas.


Os sargos comem-nas, as lapas, e os humanos que sabem o que é bom,... também. Com um molhinho de alho e manteiga...




Vítor Ganchinho



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