Este tema é ambicioso: tentar explicar a razão pela qual os peixes se congregam em bancos de dezenas, centenas ou milhares de individuos, não é pêra doce.
Mas vamos a isso, porque eu gosto de desafios e também porque seguramente no fim chegaremos a uma conclusão interessante.
Já aqui vimos que as grandes linhas orientadoras da vida de um peixe serão a alimentação, a segurança e a reprodução. De uma ou outra forma tudo gira à volta destes três vectores.
Se haverá razões mais que suficientes para pensar que um peixe conseguirá alimentar-se melhor caso procure comida sozinho, isolado dos restantes e sem concorrência, não menos verdade é dizer que em termos de segurança um peixe num cardume tem milhares de olhos a ver aquilo que os seus dois olhos podem não conseguir ver... a tempo. O acto de reprodução é algo que ocorre uma a duas vezes ao ano, e se mobiliza todas as forças e reservas de um animal, também faz sentido pensar que é algo de pontual no ano, que não corresponde ao dia a dia desse peixe. Aquilo que é comum e recorrente ao longo do ano é a necessidade de estar alerta, de escapar a quem pode terminar a sua vida em fracções de segundos. Peixe grande come peixe pequeno.
Estou pois em crer que a primeira razão de ser da permanência em cardume será a de garantir segurança. E de que forma isso acontece?
O peixe utiliza ao mesmo tempo um leque de recursos que a nós humanos nos parecem estranhos. Os seus sentidos mais apurados serão a visão, a audição e o sistema de linha lateral, que nós não temos e por isso nos custa a entender a sua eficácia.
Este sistema já aqui foi abordado e será porventura aquele que mais informação dá a um peixe, sobretudo quando se movimenta em águas com pouca visibilidade. Mas não é só aí que é utilizado, e pode ser muito útil mesmo em águas muito claras. É este sistema que detecta as menores vibrações na água, avisando de perigos e permitindo uma sincronia perfeita de movimentos entre todos os membros do cardume. Nem todos os tipos de peixe recorrem a este modelo de organização, o cardume, mas aqueles que o fazem são normalmente bem sucedidos.
É nesta movimentação de uma miríade de peixes, perfeitamente sincronizada, que vamos assentar a argumentação para o trabalho de hoje.
Formar uma massa de indivíduos com o mesmo tamanho, a mesma côr, confunde os predadores, não lhes dando um alvo único, mas sim uma parede de corpos que se dissolvem uns nos outros, sem recorte, sem sentido de individualidade. As possibilidades de um predador se focar num só individuo, reduzem dramaticamente as suas possibilidades de capturar uma presa. Tive oportunidade de confrontar o biólogo Arthur Guth sobre este tema e recebi uma resposta muito interessante que vos passo:
“A movimentação de um cardume de peixes perante um predador é muito idêntica a uma brincadeira que podemos fazer com bolas de ping-pong: se lançarmos uma bola na direcção de alguém, seguramente que a conseguirá apanhar. Caso lancemos um conjunto de duas bolas, em princípio também conseguirá fazê-lo, embora lhe seja mais difícil. Mas porque essa pessoa só tem duas mãos, se lançarmos duas ou três centenas de bolas, ao mesmo tempo, muito provavelmente não conseguirá apanhar nenhuma. E se dermos movimentos bruscos às bolas de ping-pong, é mais que certo que nunca conseguirá nenhuma”.
Isso é o que acontece na movimentação de cardumes. Por isso os predadores os seguem, tentando isolar um peixe, no fundo procurando obter um alvo único. E esse sim, é facilmente capturado.
Um peixe isolado é um alvo fácil, porque permite que se concentrem em si todas as capacidades de caça do predador que o encontra. |
Como em tudo, existem excepções: os nossos golfinhos do Sado beneficiam da compactação dos peixes, em bola, mas aí temos um ataque organizado por vários indivíduos, que é feito desferindo uma pancada forte com a barbatana caudal, para atordoar os peixes, sardinhas, cavalas ou carapaus, através de uma onda de choque. Os dentes entram a seguir, a recuperar peixes inanimados. Mas não há um ataque directo, de dentes.
E como conseguem os peixes sincronizar os seus movimentos perante o ataque de um predador? Como fazem para não sair disparados, cada um para seu lado?
Exactamente recorrendo à sua linha lateral, que é um sensor de pressão muito afinado. Esta linha lateral consiste num sistema complexo de duas fitas de escamas perfuradas, com canais nervosos ligados ao cérebro, uma em cada lado do peixe, e desde o pedúnculo caudal à cabeça. Essa linha é bem visível quando olhamos para a lateral de um peixe.
Essas escamas com pequenos orifícios são altamente sensíveis a vibrações. A água entra, transmite informação às células nervosas, e esses dados são processados quase instantaneamente pelo cérebro. O sistema nervoso capta esta informação e activa a zona onde o estimulo foi recebido, dando-lhe um particular enfoque. Por transmissão eléctrica, os sensores passam a informação ao cérebro, que reage em conformidade, modificando o movimento do peixe, virar à esquerda , à direita, afundar, etc. E isso permite que esse peixe tenha a mesma reacção dos peixes em redor, ao mesmo tempo, produzindo o efeito de cardume.
Cardume de cavalas. É bem patente a importância de serem todas do mesmo tamanho. |
Para além desta possibilidade de escapar mais facilmente a predadores, temos ainda um outro factor, a facilidade de deslocação. Quem faz ciclismo de estrada sabe que “ir na roda “ poupa imenso esforço físico. Quem vai à frente faz mais esforço. No fundo, abre o ar por onde os outros irão passar, sem terem de fazer esse efeito de quilha. Num cardume, os peixes do centro são “arrastados” pela corrente de água gerada pelos peixes da frente. Na retaguarda dos primeiros peixes, cria-se uma corrente de liquido que corre no sentido contrário, a ocupar o espaço aberto pelos primeiros. Este efeito é particularmente interessante para indivíduos de grande porte que fazem grandes deslocações, como os atuns, por exemplo, mas também para minúsculos peixes, como as cavalas, salemas, tainhas, carapaus, sardinhas, etc, que têm uma forma idêntica de deslocação. De forma aleatória, há um revezamento, em que os peixes de dentro chegam fora e por isso há troca de posições, permitindo poupança individual de energia.
Os peixes que se deslocam no meio estão mais protegidos, e fazem menos esforço físico. |
A definição do sentido de deslocação é feita pelos indivíduos que se encontram na periferia do cardume. São eles, na ausência de um líder, que determinam a direcção a tomar pelo banco de peixes. É natural que os peixes que se encontram dentro do cardume, por falta de contacto com o exterior, não tenham a possibilidade de decidir. Recordo-me de estar em Hong-Kong, numa rua particularmente movimentada, onde estariam uns milhares de pessoas para atravessar uma passadeira ao mesmo tempo. Porque nem todos conseguem ver o sinal luminoso passar a verde, eles têm um sinal acústico também. A frequência do som aumenta e fica muito mais forte quando passa a ser permitido atravessar. Aquela mole humana passa num só sentido, à mesma velocidade, deixando-me sem qualquer chance de conseguir mudar de direcção porque seria “atropelado” por centenas de pessoas que fazem a marcha no mesmo sentido. Hong-Kong tem uam área do tamanho de Setúbal, mas 7 milhões de habitantes….
Bem visível aqui a tomada de decisão colectiva de mudar de direcção. |
Mas voltemos à questão da natação sincronizada: em cardume, esta natação só é possível através de um código de sinais, algo que permite dar informação instantânea, sob pena de haver choques em cadeia. A velocidade, a proximidade entre indivíduos, a comunicação entre eles, é feita também por um mecanismo de incidência de luz sobre as escamas. A uma determinada direcção corresponde um determinado brilho. Se há mudança de direcção, esse brilho altera, muda, porque a incidência dos raios solares também é outra. Todos os mais pequenos e ínfimos detalhes contam para reduzir a hipótese de haver um alvo único. Ser alvo único significa a possibilidade de ser o escolhido por esse predador. Depois de ter os olhos fixos em si, as suas chances de sobrevivência diminuem.
Em bancos com milhares de peixes, é muito importante que todos sejam do mesmo tamanho, idade e côr, sob pena da perda deste efeito de cardume. Num banco de atuns, haver um muito maior que os outros sugere um alvo que as orcas não deixam de explorar. Num banco de pequenas cavalas, uma de maior porte será o alvo de um robalo com fome. Para um mesmo esforço de captura, a recompensa é maior. Na natureza, não se gasta energia de forma inútil.
Esta preocupação de pertencer a um grupo é tanto maior quanto menos protecção individual o peixe tem. Uma sardinha não consegue enfrentar os dentes de um atum sarrajão, apenas com a armadura das suas escamas. Os peixes que se movimentam na coluna intermédia de água sofrem mais ataques que os peixes de fundo, e por questões de adaptação evolutiva, aprenderam, ou foram forçados a aprender, a ter um comportamento uniforme. Outros, com diferentes argumentos, com outras defesas, podem inclusive não pertencer a um cardume, o caso de um rascasso. Porque haveriam os rascassos de formar cardume?
Vítor Ganchinho