A seguir a um período de tempestade, vem a bonança.
Devemos entender estes ciclos (mar agitado/ mar calmo) como algo de uma importância vital para o equilíbrio dos ecossistemas marinhos, porquanto proporcionam a circulação de nutrientes, oxigenam as águas, limpam sedimentos, movem as areias e põem a descoberto alimentos que de outra forma não seriam alcançáveis aos nossos peixes.
Enchemos o peito de ar, metemos a cabeça debaixo de água e fomos ver o que se passa quando os ventos passam, e a calma retorna à costa.
Morreram seres vivos, e há que fazer a recolha. Os predadores aproveitam as oportunidades concedidas por aqueles que ficaram diminuídos por esta ou aquela razão.
Repetimos aquilo que escrevemos anteriormente: os buracos nas rochas, garante de protecção para milhares e milhares de pequenos organismos, peixes, moluscos, crustáceos, passaram a ser o seu túmulo.
A força das águas, e sobretudo das pedras por si movidas, esmagou uma multidão de criaturas que não conseguiram afastar-se a tempo, ou não encontraram um refúgio suficientemente seguro.
A mesma força que impulsiona a vida, que a faz crescer, é a mesma que destrói, que mata, que tudo leva à sua frente.
Os tubarões e raias encostam ao litoral, e deixam as suas ovas (os que são ovíparos), entrelaçados nas plantas marinhas. Os embriões desenvolvem-se dentro destes casulos protectores, que suportam até um determinado limite de agitação marítima.
Quando acontece uma tempestade forte, muitos deles arrojam às praias, e secam, não chegando a eclodir.
Como é de supor, há sítios mais desabrigados e outros que ainda assim proporcionam alguma estabilidade a cardumes e outros seres. Em zonas menos expostas, as plantas marinhas pouco ou nada sofrem. Forçosamente teremos de dividir a nossa costa em locais muito propícios a vendavais, correntes e ondulação forte, e outros mais calmos, onde se sofre menos, em que a estabilidade é o mote. Toda a face sul do cabo Espichel é um destes locais, bem abrigado dos ventos dominantes, a conceder algumas tréguas aos seus habitantes. Os dias de turbulência são muito menos do que outras zonas, e isso permite a manutenção de espécies vegetais e animais que serão menos dotados para os grandes combates contra as ondas.
São perfeitamente visíveis as marcas que um temporal deixa na costa, para quem as sabe ler. Em zonas que ficaram expostas à intempérie, as pedras rolaram e por isso perderam os limos, o verde das algas, e passaram a estar polidas.
Mas mesmo aqui, em costas abrigadas, os caneiros de entrada de água movida a vento são zonas de morte e destruição. Do atrito entre pedras, de calhau rolado, resulta a formação de areia, conforme já referido anteriormente.
É perfeitamente natural que, após a acalmia, estas zonas sejam precisamente as mais procuradas pelos oportunistas, sobretudo peixes. Mercê de uma superior capacidade de deslocação, serão sempre uns dos primeiros a chegar a um terreno fértil em comida fácil.
Ei-los a chegar, a procurar os despojos de guerra de mais um temporal. Reparem nas pedras polidas do fundo. Este é um “chão-movediço” que horas ou dias antes esteve em completo movimento, triturando aquilo que não conseguiu fugir a tempo.
São estas as algas agar que irão cobrir as praias dentro de dias. Depois de arrancadas pela força do mar, irão permanecer em suspensão durante dias.
Quando depositadas no fundo do mar, serão a “manta-morta” de que se irá alimentar uma miríade de pequenos seres, e um esconderijo privilegiado para os camarões de que se alimentam os nossos robalos.
As algas partidas amontoam-se junto dos recantos mais abrigados, empurradas pelas correntes. São estas as algas que dias mais tarde acabarão por dar à costa, empurradas pelos ventos dominantes.
Em zonas de costa mais rochosas, com menos areias e sedimentos, a água irá limpar mais depressa. Ao fim de dois dias, estarão praticáveis para o mergulho, pois não retêm as partículas em suspensão durante muito tempo.
Os peixes não procuram aqui comida que foi arrancada das rochas, porque a pedra é muito limpa, quase desértica, mas sim cardumes de pequenos peixes que para aqui se deslocam, procurando a visibilidade de que necessitam para prever ataques dos seus predadores.
Em zonas de areia, frequentemente mais baixas, com uma rampa muito pronunciada, é comum que as algas acabem por dar à costa.
Estas praias são muito importantes do ponto de vista do amortecimento do impacto da força do mar. A areia “trava” a impetuosidade das ondas, oferecendo-lhes uma resistência passiva.
Estas pedras estiveram submersas e terão sido projectadas para fora de água.
Outras vezes apenas estiveram enterradas, sempre no mesmo local, embora tapadas por camadas de areia, sucessivamente depositadas por vento e correntes.
O facto de não terem plantas verdes a cobri-las não quer dizer mais que isto: a sua movimentação foi violenta, ou foram destapadas muito recentemente.
Aqui podem ver uma pequena quantidade de agar-agar, a dar à costa. Ao ritmo das marés, acabarão por dar à costa.
Os burriés, “Littorina littorea”, são um molusco gastrópode. Os que ficaram do lado certo da pedra, ou seja, do lado protegido das vagas, podem ter tido a sorte de sobreviver. Com o mar mais baixo, irão deslocar-se lentamente para a face da pedra que cria os limos de que se alimentam, ou seja a que fica exposta aos raios solares. Atingem os 3cm de diâmetro e os 10 anos de idade.
E aos poucos a vida volta ao seu ritmo. Não mais “normal” porque as tempestades também fazem parte da vida de cada um dos pequenos seres que habitam o nosso litoral.
É-nos difícil imaginar o que pode ser necessário para aguentar um dia de mar, nas condições em que os nossos peixes o fazem. Mas é muito difícil, certamente. Pequeno caboz a espreitar cá para fora….
Excelente foto! Nada mais explícito que isto: um polvo com o resultado da sua passagem por cima de um banco de mexilhões. É muito comum que tenham a sua toca na base de uma parede que dá acesso a uma mexilhoeira.
Ficam muito perto da mesa do almoço…e basta-lhes carregar algumas pedras para compor a sua protecção anti-safio. As pedras polidas que vêem à frente dele foram trazidas recentemente para este refúgio de outro lado, ou teriam….algas em cima.
Estes são os caneiros por onde passam as vagas de muitos metros. Esta pedra branca terá sido projectada vezes sem conta contra as paredes que estão em frente, e por isso perdeu o verdete natural. As maiores permaneceram no mesmo sítio, mas em temporais muito fortes, mesmo as grandes, com algumas toneladas, chegam a movimentar-se.
Os campos de ouriços, depois de massacrados pelas vagas, ficam muito lisos. Salvam-se aqueles que conseguiram agarrar-se a pequenas covas na rocha, e que, por terem um tamanho mais reduzido, ficaram protegidos do vai e vem das pedras.
Este polvo aproveitou uma tainha morta e fará dela as suas refeições até pouco mais restar que ossos.
Grandes blocos como este, pesando toneladas, movem-se pela força das ondas. A norte de Sines, eu tinha um buraco de safio numa pedra deste género.
Fiz lá algumas dúzias de bichos acima dos 10 kgs. Um dia fui lá e….a pedra tinha desaparecido. Estava partida em duas metades, a mais de 50 metros….
Pequeno safio que retorna ao seu posto de caça. Escolhem zonas com muitos cefalópodes, chocos, polvos, lulas, e peixe miúdo, de que alimentam quando a noite cai.
Em zonas mais profundas, com menos luz, podem ter actividade diurna regular. São os safios que prendemos nos nossos anzóis quando pescamos com sardinha ou cavala….
Buraco a aguardar o seu inquilino. Será sem dúvida um safio, e os camarões e um pequeno caboz já estão impacientes pela sua chegada. Comem os restos alimentares do congro, e acabam por limpar a cova de impurezas desnecessárias. Os safios podem crescer até aos 3 metros e atingir pesos de 110 kgs. Em Inglaterra existem pescadores que dedicam a esta espécie a exclusividade das suas atenções. E clubes de pesca ao safio….
Sim, os polvos voltam aos seus locais de caça, onde montam emboscadas aos pequenos peixes, a caranguejos, a tudo o que lhes permita crescer o suficiente para um dia poderem reproduzir. Irão todos morrer antes dos três anos, por isso aproveitar o tempo é fundamental, cada dia conta.
É tempo de espreitar os buracos e ver se já oferecem segurança. Os sargos são dos peixes que mais dependem do substrato rochoso para a sua vida normal.
Aqui os podem ver, no escuro de uma solapa de rocha a descansar. Buraco que dias antes estaria em pleno alvoroço de água.
Será sempre a acção do sol o primeiro e grande motor da recuperação.
As pedras, após alguns dias de estabilidade, fixam algas verdes que produzem clorofila, por força da acção do sol. É a vida a voltar ao seu ritmo calmo.
A clorofila é um pigmento encontrado em plantas e algas, que é de cor verde, e absorve luz nos comprimentos de onda azul, violeta e vermelho, o que misturado dá esta reflexão de côr verde. Por isso estas algas são verdes aos nossos olhos.
As cores são a impressão cromática que os nossos olhos vêm quando os objectos são iluminados por uma qualquer fonte de luz.
Os pequenos organismos marinhos vegetais conseguem produzir o seu alimento através da fotossíntese, e libertam oxigénio para a água.
Por isso são tão importantes para nós, e por isso podemos considerar que as algas microscópicas a que chamamos de “plâncton”, são a base de toda a cadeia alimentar.
A erosão do tempo, a força das vagas, mais dia menos dia irão partir este pontão de pedra. É uma mera questão de tempo. A água vai insistir e insistir, vai bater e bater outra vez, mesmo sabendo que nada pode contra a pedra dura.
Mas um dia, …o mais fraco ganha, a pedra parte.
Fizemos juntos esta viagem durante três dias, e o meu intuito foi que entendessem aquilo que passam os nossos peixes. A vida não lhes é fácil um dia que seja.
Se isso for suficiente para que um destes dias acedam a libertar um único exemplar, já valeu a pena.
Há um momento em que todos nós somos o deus que manda matar ou faz viver. Polegar para baixo ou para cima. Quando decidimos que o peixe é para guardar na caixa, estamos a impedir que esse exemplar continue a sua propagação, a sua reprodução.
Que seja sempre por um bom motivo, sem fundamentalismos, mas com a noção exacta do que estamos a fazer. Eu levo peixes para casa, os suficientes para um jantar com a família. E basta-me. Todos os outros peixes são devolvidos ao seu meio, com um agradecimento pelo seu combate. Continuarão a dar alegrias muito mais vezes, eventualmente a outras pessoas que pescam como eu.
Está nas nossas mãos decidir sobre a quantidade e qualidade de peixes capturados com que ficamos. O pescador sério e adulto é alguém já maduro o suficiente para tomar a boa decisão, em consciência. Não matem o que não precisa de ser morto. Os peixes que pescamos, estão a lutar pela sua sobrevivência. Todos os dias.
Vítor Ganchinho