Há comida suficiente para todos os nossos peixes?

Recebo por vezes e-mails a perguntar como é possível que exista tanta comida disponível todos os dias, para tanto peixe que há no mar. 

A pergunta em si encerra algumas imprecisões. Implica desde logo que exista mesmo essa disponibilidade de alimento, implica também que esteja disponível todos os dias, e ainda que os stocks de peixe sejam assim tão grandes. Tudo pode ser posto em causa, porque há momentos em que não é bem assim. Vamos analisar um pouco mais em detalhe.
A presença de alimento em quantidade suficiente é, destes três vectores, o que me parece mais plausível. Como ponto de partida, vamos ter de acreditar que as condições de habitat que existem hoje serão as mesmas que existiam há cem anos, ou há duzentos anos. Na verdade não são. A revolução industrial trouxe consigo as máquinas, a necessidade de mão de obra para operar com as máquinas, de pessoas para as reparar, vender, limpar, pessoas para produzir comida, pessoas para construir casas e abrigos, para cozinhar, para vazar lixo, e por aí fora. No fundo, a criação de uma grande cidade parte sempre de um momento em que alguém chegou a esse sítio com um saco às costas e resolveu ficar por ali. E outras pessoas e mais outras, até termos milhões de pessoas a viver juntas, a consumir, a construir, a estragar, a transformar aquilo que era de uma forma e passou a ser necessariamente de outra. 

Pequeno robalo a patrulhar uma zona de caça. Para este peixe, haver comida disponível é algo de uma importância extrema. A pressão das grandes cidades, a sobre pesca e sobretudo a poluição, retiram a este animal grande parte do seu sustento.


Direcionando as nossas atenções para a pesca: se quisermos aceitar como princípio válido que as condições de mar hoje não serão muito diferentes das que existiam há 150 anos, estaremos a incorrer num erro crasso. 
É obvio que são hoje muito diferentes, e não necessariamente para melhor, pelo contrário. Setúbal não é a mesma, o seu rio azul já não é propriamente muito azul, porque há demasiada gente a impedi-lo de o ser. 
Pode ser curioso analisar em detalhe este aspecto, à luz do número de habitantes: 



Então temos que a cidade de Setúbal, onde vivem hoje cerca de 116.900 pessoas, que tem indústria pesada, (Lisnave, Sapec, Portucel, Secil Betão, etc), que larga no rio Sado e na atmosfera poluentes a um ritmo diário, embora digam que não, dificilmente será exactamente a mesma que existia em 1864, em que 15.500 pessoas dividiam entre si o espaço de 230 Km 2. Poderíamos andar um pouco mais atrás no tempo, e acho que vão gostar de ler isto:

Falamos de Cetóbriga, o maior centro de salga de peixe do império romano. Sim, a Setúbal de hoje, cidade arruinada por razões que não cabem neste texto, já foi muito importante a nível europeu. Logo a seguir ao afastamento dos romanos destas paragens, e com a chegada de povos bárbaros, a cidade como um centro populacional que hoje conhecemos praticamente desapareceu. É em 1147, quando D. Afonso Henriques conquista Palmela aos mouros, que esta zona volta a ser mais densamente povoada. Pelas características da zona, colada ao mar, com bons acessos, é com naturalidade que a pesca volta a ser um factor de dinamização dos habitantes locais. Dada a escassez de meios, a pesca que se praticava era essencialmente feita dentro do rio. Já vos disse anteriormente que no inicio do século passado, e por informação passada verbalmente pelo meu amigo e grande pescador Jaime, infelizmente já falecido, havia muita vida estuarina, muitos pargos, pescadas, raias, etc, dentro do Sado. Capturavam-se mariscos e peixes que hoje são raros ou inexistentes. É no século XVI que a pesca volta outra vez em força, com a exportação para outros locais de sardinha fresca ou trabalhada em conservas. Porque havia peixe, não faria sentido que a possibilidade e exploração de sal marinho não fosse explorada. E foi. No século XVII deu-se um retomar da exploração de sal, o mesmo sal que tanto tinha agradado aos romanos, a pontos de ser considerado o melhor sal da Europa. Já aqui vos falei da importância que Alcácer do Sal viria a ter para o desenvolvimento da nossa região. Também o facto de termos portos de mar de fácil acesso, Setúbal e Sesimbra, terá contribuído para o êxito das trocas comerciais desta zona. A afluência de pessoas implicava a alimentação dessas pessoas, e obviamente a captura de pescado. 
Não é de hoje a pressão sobre os recursos disponíveis, mas falamos de algo ainda assim residual. As aiolas de Setúbal e Sesimbra, os pequenos barcos de pesca artesanal, terão sido suficientes nesse período. E aí, sem poluição, a regeneração da biomassa fazia-se. Mas a pressão aumentou e aí começou o declínio daquilo que conhecemos hoje, e que mais não é que uma pálida amostra do que já foi. Raul Brandão escreveu sobre Setúbal: “Primeiro os vapores de arrasto revolveram o planalto matando a criação e destruindo os pastos. Vieram logo a seguir as criminosas traineiras, que matam a dinamite, e por último os barcos estrangeiros, que empregam agora o carboneto.”
Tudo mudou. O grande “boom” terá sido dado aquando da primeira Guerra Mundial. Empresários franceses vieram corridos para Portugal e iniciaram aqui as suas actividades comerciais. Muitos deles tinham explorações de pesca em França, e dedicavam-se à indústria conserveira. Encontraram aqui as melhores condições possíveis. Aliado à faina regular da agricultura veio pois juntar-se a necessidade de alimentar um número exponencial de bocas. E havia peixe. Em 1920 a cidade registava 130 fábricas de conservas e cerca de 10.000 pessoas que nelas trabalhavam. A industria da pesca desenvolveu-se imenso, veio gente do Algarve, rotinada na apanha da sardinha, e em pouco tempo havia mais de 1700 pessoas a fazer apenas isso. Em 1912 estavam registados 260 barcos profissionais na apanha desse pequeno peixe. A dada altura, a agricultura necessitava de gente para trabalhar nos campos, mas a pesca chamava e pagava melhor. Se as fábricas de peixe nasciam como cogumelos, também os barcos necessitavam de braços para o levantamento das redes. E Setúbal foi obrigada a crescer. Vieram pessoas do Alentejo, do Algarve, à procura de melhores condições de vida. Quando olhamos para as casas construídas no primeiro quarto do século passado, a zona das Fontaínhas por exemplo, é evidente que há uma linha condutora de um mesmo traço, de homogeneidade entre si. Os pescadores saíam ao mar, as mulheres trabalhavam nas conservas. De resto, eram as assimetrias sociais normais em centros urbanos com crescimento rápido: os ricos viviam no centro da cidade, nas zonas limítrofes e arrabaldes os trabalhadores pobres construíam casas modestas, mas o suficiente para se conseguirem manter. Nada de novo debaixo do sol…..
Este espaço hoje é o mesmo, não alargou, mas o número de pessoas é dez vezes superior. O rio Sado é o mesmo, mas os produtos químicos que recebe são hoje bastante mais, e mais nocivos. Como podemos pensar que é igual, que o rio tem hoje o potencial de outros tempos, em termos de capacidade de alimentar a biomassa que dele se alimenta? 



A pressão sobre a espécie mais procurada, a sardinha, foi de tal ordem que levou à sua quase extinção. Mais tarde as fábricas viriam a fechar na sua quase totalidade, como hoje podemos constatar.
Também é verdade que a pressão de pesca é hoje muito mais acentuada sobre a ponta da cadeia trófica, ou seja, sobre os predadores de topo, os que se situam no vértice da pirâmide, os que se alimentam de peixe forragem, as sardinhas, as cavalas, o carapau. 
Falamos dos robalos, dos atuns, das corvinas, etc. 
Por esse motivo, porque em lota o valor de uma robalo é dez vezes superior ao de uma cavala, é natural que haja uma tendência para que se procurem os peixes mais valiosos. Em rigor, um barco cheio de cavalas pode não ser suficiente para pagar o combustível da embarcação. 
E por esse motivo, pescam-se, aproveita-se aquilo que é de aproveitar e deitam-se essas cavalas de novo ao mar, quase sempre já mortas. Aquilo que é desaproveitado pela frota pesqueira profissional é uma verdadeira loucura, com custos ambientais tremendos, e não contabilizados. 
Essas cavalas capturadas, e que terminam ali o seu ciclo de vida, vão ficar pelos fundos. Serão aproveitadas por alguns predadores, safios, polvos, etc, mas muitas irão apodrecer e encerrar assim um inglório ciclo de vida. Ninguém ganha com a redução de biomassa activa. 

Se queremos continuar a pescar robalos, é bom que saibamos cuidar dos nossos pequenos peixes. Sem eles, os predadores são obrigados a ir embora.


As bailas e pequenos robalos necessitam desesperadamente de pequenas presas, porque é disso que se alimentam preferencialmente. Um robalo de 10 kgs engole uma tainha de 2 kgs.


Mas estes peixinhos têm …300 gramas, necessitam de encontrar pequenos organismos que sejam compatíveis com a sua capacidade de digerir essas presas. E isso significa que existam condições para os criar. A poluição mata muitos seres vivos …antes de eclodirem, de nascerem. 




As próprias algas e plantas sofrem imenso com questões como a poluição. Navios que lavam os seus tanques de naftas à saída de Setúbal não ajudam a que estes vegetais se mantenham saudáveis. 
E o quanto eles são importantes para os pequenos peixes, que neles se abrigam, refugiam, e inclusive se alimentam. Também são importantes para fixar peixes de maior envergadura, ver artigo anterior sobre as laminárias

Em resumo, alimento para os nossos peixes há, ainda há, porque as condições geográficas são excelentes, (o mesmo se passa felizmente em quase toda a costa portuguesa), e aquilo que se espera é que não cheguemos ao ponto de apenas ter fitoplanton e zooplancton.
Sim, há recursos marinhos em quantidade para alimentar bocas, mas escasseiam os peixes de maior qualidade. 
Porque a pressão de pesca é assustadora, porque as possibilidades que damos ao peixe de se criar são quase nulas. 
Dia e noite, a perseguição é constante, o respeito por tamanhos mínimos inexistente, o estabelecimento de períodos de defeso são uma miragem, e porque, por questões culturais, continuamos a preferir os peixes…ovadinhos. 



Vítor Ganchinho



3 Comentários

  1. Obrigado por este texto,

    Gosto bastante de ler sobre Setúbal e como era e como é atualmente. Uma zona riquíssima, um pequeno paraíso, mas a qual não lhe damos o devido valor.
    Dos locais onde me dá mais prazer pescar, pela tranquilidade, forma de pescar e pela biodiversidade que lá podemos encontrar.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Boa tarde Rodrigo Cruz Eu pesco em Setúbal desde os meus 21 anos, ...e tenho 58 agora.

      É uma zona privilegiada, com excelentes condições para a pesca. Para quem conhece os cantinhos, há sempre um peixe bom à espera. A mim pareceu-me interessante dar conta da evolução do nº de habitantes, e da pressão que isso acarreta, em termos de poluição, de gente para alimentar, de carga de barcos/ redes/ etc, por esses fundos. Tudo coisas que apoquentam os nossos peixes. A maior parte dos pescadores nem se dá conta, mas são muitas mais pessoas no mesmo espaço. E isso altera tudo. Digamos que sendo bom, já foi muito melhor.
      Eu tive conversas de horas e horas com o Tio Jaime, um pescador da Murtosa radicado em Setúbal, já falecido, ( ler artigo anterior Setúbal anos 30- Pessoas e mãos..), e com ele aprendi imenso. Ele falava horas seguidas e eu nem e atrevia a interrompê-lo. Era como ler um livro. O Tio Jaime dava-me os dados dele, que eram tomados com detalhes da costa, ( alguns já nem existem), que ele tinha como marcas das suas saídas em barco a remos, ( ele ia até à Arrifana a remos!!), e eu ia tentar descobrir os sítios num barco a motor. Acredite que é difícil, mas isso deu-me locais que hoje são os meus pontos de pesca mais interessantes.
      A pesca é muito mais que um balde cheio de peixes e um comentário de duas linhas no Facebook...

      Abraço
      Vitor



      Eliminar
    2. Excelente registo. Obrigado Vitor Ganchinho

      Eliminar
Artigo Anterior Próximo Artigo

PUB

PUB

نموذج الاتصال