Gaivotas em terra

Sinal de tempestade.

Todos nós que pescamos sabemos disso, mas muito poucos daqueles que leem estas linhas saberão ao certo o que se passa no momento em que a tempestade descarrega forte no mar. 
O que se passa quando as vagas começam a subir, na linha de costa onde tantos pequenos seres fazem pela sua sobrevivência? Tenho a certeza de que não iriam querer lá estar …

O tema de hoje é duro, obriga a molhar o fato de mergulho, a ir debaixo de água com uma câmara para captar imagens em condições difíceis, mas é sem dúvida muito interessante. 
Vamos tentar entender o que altera quando o vento começa a soprar….e nós voltamos para casa, à pressa. Repito, nós voltamos para casa. 
Sim, os outros todos ficam lá, os robalos, os sargos, as douradas, os golfinhos, os polvos, as santolas, as aves marinhas, esses todos ficam lá e têm de conseguir encontrar condições de enfrentar o mau tempo, …ou morrem. 
O mar é um meio agreste para se estar quando começa a subir. Não mais difícil que estar em terra, apenas diferente. 
Esta é uma sequência de três artigos, o antes, o durante e o depois, em que vou procurar transmitir-vos a minha visão de como entendo a chegada, a permanência de mau tempo, dia e noite, e finalmente o alvorecer no mar, numa manhã de sol. 



Quando as gaivotas começam a pousar em terra, isso significa que as condições vão ficar duras, do outro lado. É tempo de guardarmos as canas nas bolsas, jogar ao mar as iscas que sobraram, e de darmos à chave da ignição. Recolham a âncora, os problemas vão começar….




Na zona de onde vos escrevo, Setúbal, o princípio de que algo vai correr mal começa sempre com o vento a rodar a sul. As nuvens formam-se, o céu fica cinza-chumbo e o vento sopra cada vez com mais intensidade. Ter ventos de 30 a 40 nós não é algo fora do comum.
Não altera demasiado as ondas, que nos entram do largo, de oeste ou noroeste, mas vamos passar a ter vagas altas de sul, que se somam às ondas. Tudo vai servir para nos prejudicar. 
A primeira consequência é passarmos a ter vento pelas costas. Ajuda a empurrar, mas empurra tudo, o barco e também as vagas. Isso significa que vamos passar a ter uma embarcação a navegar na mesma direcção da aguagem, com tudo o que isso acarreta. As embarcações mais modernas têm uma estrutura pensada e construída para navegar nestas condições, com impactos sucessivos. Há algumas dezenas de anos, as vagas chamadas de “quebra-cascos” partiam as embarcações a meio. Empurrada pela água e vento, a embarcação caía literalmente para a cava funda, e deixava de ter qualquer apoio no momento seguinte. O peso do barco fazia o resto. 
Fazer uma correcta navegação nestas condições significa controlar a velocidade de deslocação ligeiramente acima da velocidade das vagas, que aqui é normalmente de 12 a 15 nós. Acima disso, a água não entra pela pôpa, mas a velocidade a mais pode fazer-nos esbarrar na parede de água seguinte, deixando a quilha desapoiada. O objectivo de quem pilota um barco é ter sempre água debaixo dele. Dessa forma, não bate. Mas nem sempre se consegue. Ter motor suficiente para proceder a ajustamentos sempre que eles são necessários, ajuda. Um barco com capacidade reduzida de manobra, a menos dos 15 nós standard, (que podem ser muitos mais…) leva com água dentro e afunda. 
Faço navegação neste mar vai para 40 anos, sei bem o que é ler estes sinais. Não tem a nada a ver com o “garruaço”, o vento noroeste de Verão que parte as cristas e pinta o azul de branco, tão típico na zona sul do Espichel. Não, isto é outra coisa….




A princípio temos as águas limpas, claras, sem elementos em suspensão. Mas isso muda muito rapidamente, porque os nutrientes, dejectos, sedimentos que estão depositados no fundo começam a levantar-se, por força da agitação que se instala. 




Com ondas de muitos metros, a empurrar contra a costa, estas pedras passam a esmagar, em vez de proteger. 
Sabemos que a maior parte dos animais marinhos vive nos primeiros metros de água. A zero metros de profundidade, o mar já tem muita vida. A dez metros há uma explosão de seres vivos, milhões e milhões deles, tantos que nos é difícil imaginar. 
Quando se aproxima uma tempestade, quando aqueles que habitam a zona de costa baixa se deparam com ondas de seis ou oito metros, nada pode ficar igual. Os esconderijos que serviam com mar calmo, deixam de ser habitáveis e há que sair. 
As pedras que davam protecção, abrigo, esconderijo, alimentação, passam a ser sinónimo de uma morte anunciada. Ficar significa não ter qualquer possibilidade de sobrevivência. 




O calhau rolado, aquando da entrada impetuosa das vagas, solta-se e passa a esmagar aquilo que encontra no seu caminho. Um fundo com pedra de grande dimensão tende a ser mais estável, mas o calhau rolado de diâmetro mais pequeno, salta e espalha destruição de forma proporcional ao impulso que recebe das ondas. Que podem ser altas e transmitir uma energia que esmaga tudo.




Fundos de areão grosso tornam-se armadilhas para pequenos seres que se veem enrolados na sua movimentação. É frequentemente um espaço com muito pouca vida, dada a sua instabilidade mecânica. Algumas destas pedras poderão, por força dos agueiros que correm ao longo da costa, deslocar-se centenas de metros. 
Este é um estado intermédio de formação de areias. À medida que as pedras chocam umas com as outras e contra as paredes de rocha, vão desgastando, e reduzindo paulatinamente o seu diâmetro e comprimento. Um dia serão a areia fina de uma qualquer praia longínqua. 




As frestas estreitas que davam protecção às navalheiras, deixam de o fazer, porque as pequenas pedras vão rolar em todas as direcções. Há que sair para o largo, enquanto há tempo!




As santolas sabem o que aí vem, quando a pressão atmosférica muda de repente. Lançam-se da crista das pedras onde estavam encavalitadas, e pelo fundo, ganham o largo. 
A partir de uma determinada profundidade, o efeito da movimentação de águas é reduzido ou nulo. Estes animais precisam de fundos estáveis para conseguirem sobreviver, pelo que são forçados a afundar. 


Polvo a abandonar a sua toca, a esgueirar-se para os fundões, onde o mar está calmo, onde a ressaca da onda não se faz sentir. Para estes bichos, que respiram por um sifão, a permanência é impossível.




É tempo de os cardumes de peixe se afastarem um pouco da pedra, e ganharem o mar ao largo, onde encontram melhores condições. Longe da costa e abaixo da zona de influência das vagas, a vida continua a sua rotina, cadenciada pelas marés cheias, vazias, pelos fluxos e refluxos de águas que giram para um e outro lado. 




Estamos perante forças que movimentam rochas pesadíssimas. A força do mar é algo de incalculável, e isso é bem evidente nos estragos que causa na nossa costa. 
Grandes blocos de pedra com toneladas são arrastados por dezenas de metros. Os grandes temporais partem pedra, e provocam constante erosão costeira, numa demonstração de força sem paralelo. 
Água mole em pedra dura, que massacra, que insiste uma vez e outra, vaga a vaga, até fazer retroceder aquilo que parecia ser uma fortaleza inexpugnável. As rochas cedem. 




Em cima das pedras existe areia e poalho assente. Por força da agitação marítima, estes detritos irão começar a soltar-se e a ficar em suspensão. Nas pedras mais altas, ainda é possível encontrar alimentação, mas de forma cada vez mais difícil. 
Quando lançamos as nossas pescas ao fundo, em dias de mar ressacado, é nestas condições que queremos que os peixes mordam os nossos anzóis. Com mar de fundo, as possibilidades de um peixe encontrar os nossos anzóis diminui drasticamente. 
Cria-se uma nuvem de areia com cerca de 3 a 4 metros de altura, o que obriga o peixe a alvorar, ou seja, a subir na coluna de água para encontrar condições de habitabilidade. 




Em locais onde existe predominância de pedra, no principio da tormenta ainda é possível pescar, ainda que em piores condições. Os peixes aproveitam a agitação marítima para tentar descobrir alguma comida desenterrada. 
Mas estamos ainda no princípio do …reboliço. 




As algas partem, e começam a permanecer em suspensão. Ao fim de algumas horas, a massa vegetal já ocupa todos os recantos costeiros. São estas algas e plantas que irão, por força dos ventos e correntes, dar à costa provocando manchas que podem ter quilómetros de extensão. 




As frestas entre as rochas passam a ser um ponto privilegiado de passagem de água e ao mesmo tempo, e mercê da corrente que geram, impedem a saída dos bichos que querem escapar. 




Quando a agitação começa a aumentar, o poalho do fundo sobe e torna a visibilidade muito escassa, porventura nula nos primeiros metros a partir do fundo. 
Este é o momento em que alguns animais de menor mobilidade perdem o norte, e deixam de saber para onde ir. Também a areia salta do fundo, dificultando a visão, a respiração, a vida em suma, a todos os que não conseguem sair a tempo.

Mas acham que a vida marinha tem interrupções …ou acaba por um temporal? 
Nem pensar nisso. Não percam amanhã o momento forte da tempestade, e ficarão a saber quem lucra com isto tudo. Sim, os temporais são excelentes oportunidades para alguns, os que se adaptaram a viver nestas condições. Se é verdade que num funeral muitos choram, ….também é verdade que outros aparecem para vender os lenços que enxugam as lágrimas. Não percam. 



Vítor Ganchinho



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