Quando as águas sobem

O peixe come por ciclos de alimentação.
Isso é bem evidente para quem passa um dia no mar, e se é mais visível para os pescadores de terra, para quem faz spinning, surcasting ou pesca à boia, não deixa de ser uma verdade incontestável para quem prefere pescar de barco, em pesqueiros mais profundos. Há momentos em que o peixe come e ataca tudo o que enviamos para baixo, momentos em que temos uma excitação generalizada, com toques sucessivos, e outras alturas do dia em que parece tudo estar adormecido, desinteressado, e em que nada do que possamos fazer parece surtir efeito. Não é por acaso.
As variantes são imensas, de tal forma que aqueles que tentam controlar uma a uma, com o objectivo de escolher o melhor dia possível para sair à pesca, acabam por se sentir frustrados porque raramente conseguem a conjugação de todos os factores.
Sejamos práticos: se temos um tempo de pesca limitado, se dispomos apenas de algumas horas, é perfeitamente normal que tenhamos dias menos bons, momentos do dia menos bons, porque ou estamos ANTES do momento certo, ou já chegámos DEPOIS. Esta é uma verdade universal: há momentos melhores que outros para pescar. Não deve ser uma surpresa para ninguém, e menos para um pescador experiente, que fez da pesca o seu entretém favorito, que lhe dedicou milhares de horas, e que por isso passou junto ao mar grande parte da sua vida. Há o tempo em que o peixe está a comer, e há o tempo em que o peixe já comeu. E por isso está a repousar. Porque, contrariamente àquilo que nos daria um certo jeito, o peixe não come 24 sobre 24 horas, ininterruptamente. Não precisa! Nós humanos também não o fazemos, temos momentos em que sim, alimentamo-nos, e momentos em que não. Para nós, este ciclo está certo, o nosso organismo não nos pede mais. E no entanto achamos estranho que os peixes descansem, que não comam, depois de comer….

O facto de não conseguirmos conjugar os momentos de alimentação do peixe com a nossa presença no pesqueiro não deve inibir-nos de pescar, e sempre com o entusiasmo que dedicamos a esta actividade tão atractiva. Pescamos com as condições que temos e se não sair melhor, …sai pior.
Nem sempre, por termos marés fora de horas, ou só podermos ir de manhã, ou de tarde, conseguimos estar lá na melhor altura. Aquilo que está na nossa mão e podemos fazer para maximizar as nossas possibilidades de sucesso, é actuar de acordo com as circunstâncias. Para isso, o primeiro passo é entender que cada técnica tem os seus pressupostos, e estes devem ser respeitados sob pena de estarmos apenas a perder tempo.
Qual a técnica que estamos a utilizar? Pescamos de terra? Pescamos embarcados junto à rebentação? Estamos ao largo a fazer pesca vertical? Estamos mesmo muito fundo, num pesqueiro afastado da costa a pescar com carreto eléctrico?

Pois cada uma destas variantes implica condições diferentes, e isso é algo que não podemos mudar. Se está vento ou não, se a lua é grande e faz correntes, se está muita ou pouca ondulação, se a maré vaza ou sobe, isso não pode ser mudado por nós.
Mas podemos decidir o que fazer, em função do mar que temos pela frente.
Para aqueles que pescam apeados, e é isso que vamos ver hoje, pois se temos a maré nas últimas horas de vazante, de que serve ir para um pesqueiro baixo, onde o peixe já não está, porque já não chega à comida que o pesqueiro lhe pode disponibilizar?
O peixe desloca-se em função da maré, porque precisa dela a subir para chegar a locais que estiveram a seco, mas que ao fim de algumas horas já não estão, e expõem os alimentos de que ele necessita. É na zona entre-marés que os peixes mariscadores se alimentam. É aí que estão os mexilhões, as cracas, os perceves, camarões, lapas, etc, tudo aquilo que compõe a dieta alimentar dos sargos, das douradas, dos bodeões, das salemas, em suma de todos aqueles que dependem das grandes movimentações de águas para viver. Abaixo dessa linha entre-marés, há sempre água, mas também por isso, a quantidade de comida disponível é sempre menor, porque está sempre acessível, a todos. Nas marés grandes, o peixe aproveita a oportunidade para encostar a terra, por vezes em pesqueiros com um palmo de água. Acompanha a subida da maré, e sai quando já não tem condições para estar em cima das pedras, eventualmente das mexilhoeiras.

Vejamos como se processa este avanço e recuo, através de fotos que espero elucidativas.

Foto perfeita para exemplificar uma maré baixa, que deixa pedras e plantas a seco. Neste momento, o peixe não tem condições para estar aqui a comer. Mas com mais meio metro já tem….e com mais três metros já sobra água. E é aqui que está a comida!


Estas pedras serão mariscadas por pacientes peixes que aguardam ao largo que a hora certa chegue. Daqui a umas horas, o mar irá cobrir toda esta zona. Esse é o momento de comer.


Assim que temos a “conta de água”, os peixes precipitam-se pedras acima, na ânsia de chegar em primeiro às zonas onde podem encontrar comida. Esta é uma espectacular foto, feita num pesqueiro muito baixo, que elucida sobre esse momento. 



 
Pedras mexilhoeiras, com perceves, cracas, lapas, etc, são um supermercado aberto para espécies bem armadas de dentes, próprios para este tipo de tarefa. Estar mar calmo ou agitado não influencia decisivamente a tarefa de alimentação, apenas a torna diferente. Mas o peixe não tem medo do mar….nasceu ali e conhece-o. 

Quando o peixe tem água em cima, torna-se mais calmo, mais disponível para atacar os nossos iscos. Isso é válido para robalos, bailas, cavalas, carapau, e para os mariscadores.
Há uma tendência generalizada para que o peixe aumente o seu ritmo de alimentação à medida que a maré sobe. Da mesma forma que é entendível que, depois de comer, esse ritmo caia, que o período de excitação e frenesim alimentar se dilua à medida que as necessidades orgânicas estão satisfeitas.


 

Há um momento em que a tarefa de alimentação está concluída. O peixe começa a reduzir a actividade alimentar e a preparar o que vai seguir-se. A agitação inicial deu lugar a uma procura mais selecta, mais belicosa, e isso traduz-se num abrandar do nosso ritmo de pesca. Os toques começam a ser mais espaçados. Tem a ver com o facto de o peixe já não precisar de comer mais. 


Cardume de salemas a pastar as algas do costume. 


Estes peixes são vegetarianos. Isso dá-lhes algumas vantagens sobre todos os outros, porque a disponibilidade de alimento é sempre muito grande.
Em contrapartida, têm de passar mais tempo a comer, dado que o valor nutricional daquilo que comem é baixo.




As espécies costeiras têm praticamente todas o mesmo ciclo de alimentação, dependem em grande parte das marés. Mais que as luas, os ventos, a hora do dia, são as marés que fazem todos estes peixes entrar e sair da linha de costa.




E é o momento de abandonar a rocha que tanto alimento disponibiliza. Temos duas enchentes e duas vazantes por dia e isso basta para que estes peixes tenham as suas oportunidades de encontrar comida.


Aí vão eles, fartos de comida, para os fundões. Procuram zonas abrigadas das correntes, com obstáculos, eventualmente buracos na rocha, para as espécies de peixes que entocam, onde possam gastar o mínimo possível de energia.


E é a debandada geral, depois da alimentação, vem o repouso, que pode ser passado em águas mais profundas, eventualmente debaixo de um lajão de pedra, se os houver na zona. 


Nesta altura, os toques nas nossas canas serão sempre residuais. Neste momento, estamos a lutar contra a natureza, a tentar vender areia no deserto….
Os pescadores de terra experientes, conhecedores, saem para casa nesta altura.



Vítor Ganchinho



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