A formação de areia

Já aqui aflorámos ao de leve esta questão, a formação de areias. Porque o tema pode ser interessante, parece-me importante ir um pouco mais fundo, para conseguirmos entender em que substância estamos a lançar a nossa linha quando pescamos surf-casting, ou por onde caminhamos quando decidimos ir lançar umas amostras de manhã cedo, ao robalo.
Ou ainda em que substância estendemos a nossa toalha, quando vamos com a família à praia. É de areias que tratamos hoje.




A formação de areias é algo que tem de ser entendido como um processo longo, e que tem tanto de químico como mecânico. Contrariamente ao que a maior parte das pessoas pensa, a primeira fase da existência de areias na praia começa bem longe do mar.
Se quisermos entender como tudo se passa, temos de virar as costas ao oceano e olhar para terra, bem para dentro do nosso país. Na génese de tudo, estão as rochas.
Sobre estas, incidem diversos tipos de fenómenos que vamos hoje analisar em separado, para chegarmos a um efeito final, único, e que resulta no fino grão de areia que conhecemos.
A meteorização, redução a pedaços de uma rocha, é um processo que envolve modificações físicas e químicas causadas pela água, vento, câmbios de temperaturas e até acção dos seres vivos. Dissemos acima que o processo de formação de areias pode ser químico ou mecânico, digamos físico.
Esta vertente física é a mais facilmente entendível: a fragmentação da rocha origina pedaços mais pequenos. Algures em terra, uma rocha sofreu os efeitos do calor do sol de Verão, do frio das noites de Inverno, e também a passagem do vento e da queda de chuva. Fragmentou-se.




Devemos tentar entender toda esta sequência como algo bastante moroso, que leva muito tempo a acontecer, por vezes muitos milhares de anos.
As rochas perdem continuamente pequenos pedaços, a que vamos chamar de detritos desagregados, e que a princípio poderão ter de 0.063 a 2 mm de tamanho.
As areias de ambientes fluviais, mais grossas, contêm quartzo e outros tipos de grão (micas, feldspato, piroxenas, granadas, olivinas).
Estes grãos são normalmente angulosos, “bicudos” se quiserem, porque ainda não rolaram o suficiente para começar o seu polimento.
Quanto mais próximos da rocha mãe mais esse efeito de arestas vivas se acentua. Ao longo de todo o percurso, irão paulatinamente reduzir o seu tamanho e forma. Vão desgastar-se.




A sua cor depende sempre da sua origem, se oriundos de rocha negra, vermelha, branca, ou seja, da composição mineralógica da pedra. Quase sempre acontece coexistirem com outros minerais, normalmente feldspatos ou micas.
Contudo, existem areias que maioritariamente são constituídas por minerais ferromagnesianos (olivinas, piroxenas, anfíbolas), ou mesmo por componentes líticos, eventualmente fragmentos de calcário, basalto.
Porque são lavados pela água que os transporta, tendem a ter algum brilho, a perder as lamas e sujidade que fazem parte dos solos terrestres. As areias de sílica, siliciosas, são de cor branca, assim como as areias calcárias.
Os compostos de ferro conferem às areias uma cor amarelada ou esverdeada. As areias basálticas são negras, tal como as que são ricas em compostos de magnésio.
Quando constituídas por grãos de quartzo, e porque este é um mineral muito duro, riscam o vidro e até o aço. Experimentem a esfregar areia da praia nos vossos carretos e vão ver que ficam com marcas para sempre.
Falámos de acção química: os quartzos são inatacáveis pelos ácidos e são praticamente insolúveis na água. São rijos e apenas efeitos mecânicos os podem fazer reduzir de tamanho, de os polir, até chegarem a areia muito fina.
São relativamente leves e isso interessa-nos para a exposição da ideia seguinte: como chegam ao mar? Vamos ver então esse fenómeno.




A acção do vento tem o nome de “deflacção” e é parte importante do processo. É este que ajuda a empurrar os detritos provocados pela erosão, aqueles que já estão com tamanho suficientemente pequeno para serem transportados. E também a chuva, a grande responsável por esse transporte.
A água da chuva pega nestes inertes e transporta-os até aos leitos dos rios, por vezes ao longo de muitos quilómetros. Primeiro, os pedaços de rocha fragmentados, mesmo por vezes areias grossas e cascalhos, são arrastados de forma natural para os ribeiros, por acção de gravidade. Sempre de cima para baixo. Ribeiros que por sua vez vão desaguar aos rios. Aí, e novamente por efeitos de gravidade e pela força e impulso das águas, são encaminhados para a foz. A velocidade a que isto se processa pode variar, depende sempre do caudal do rio, do seu declive, e até da natureza dos detritos arrastados, da sua densidade, e inclusive das rochas constituintes do leito do rio. A capacidade de transporte de pedras/areias de um rio é máxima na altura das grandes cheias, quando as águas atingem grandes velocidades de escoamento. Dependendo da distância a que foram captadas, assim chegam ao mar com um grânulo maior ou menor.




A sua entrada no mar irá acelerar imenso a degradação do material. A tendência será para haver grãos homogéneos.
Serão todos de granularidade sensivelmente do mesmo tamanho, porque as forças que os irão moldar são constantes, persistentes, e irão polir estes por abrasão.
Falamos da acção das ondas. Os impactos que um grão de areia sofre contra as rochas e outras areias, irá moldá-lo continuamente, até se apresentar redondo.




Também estes grãos irão actuar sobre a linha de costa, moldando-a por sua vez. O movimento das águas oceânicas e areias provocam a desagregação das rochas, modificando o relevo da costa, deslocando materiais que possam apresentar condições para isso.
Por vezes pedras com tamanhos colossais são arrastados pela força das ondas. Costumo dar o exemplo do molhe de Sines, que foi deslocado do sítio onde foi construído, por um temporal em que as ondas chegaram aos, estima-se, 20 metros de altura.
Blocos com toneladas foram varridos pela força do mar. Não é possível que isto possa acontecer sem que haja formação de areias, sem desgastes.




Existe um efeito de moldagem mútua. O cascalho grosso irá sofrer mudanças no seu diâmetro, da mesma forma que as paredes rochosas que vêem acima irão ser alteradas por este, aquando dos impactos provocados pelas tempestades de mar. Penso que conseguem identificar nas pedras acima a cor das areias de Tróia….




Diferentes momentos da mesma matéria. Aqui temos pedras de diferentes tamanhos, ou seja, diferentes tempos e estados de processamento de areias, e inclusive de diferentes minerais.
Um dia, tudo isto será….areia.




Mas vamos centrar a nossa atenção no nosso pequeno grão de areia: no mar, rapidamente será muito brilhante, polido, por efeito do constante transporte de um lado para o outro, provocado pelas marés.
Estes grãos de areia são maioritariamente constituídos por quartzo, de cor clara, mas podem eventualmente ser constituídos por muitos outros minerais. Isso depende sempre da rocha que lhes deu origem.
O seu tamanho irá sempre tender para um menor diâmetro, à medida que o contínuo desgaste da partícula de areia, por erosão ou abrasão, se faz sentir.


Quanto mais impactos sofrem mais estes blocos de pedra irão fragmentar-se. Estas são as futuras areias onde alguém irá estender as suas toalhas.


Os grãos de quartzo dessas rochas sofreram transformações sucessivas até serem meros e minúsculos pontinhos de pedra. Mas, surpreendam-se: podem vir a dar origem a uma nova pedra!
Muitos dos fragmentos de rochas que saem à foz do Sado são transportados para oeste, e formam as praias que conhecemos, Figueirinha, Galapos, Praia dos Coelhos, etc, e muitos mais ainda para sul, por força das correntes e vento predominante.

Irão depositar-se por camadas, e os mais recentes, mercê do seu peso, compactar os que estão por baixo. As camadas de cima exercem uma tremenda pressão de toneladas sobre as camadas de baixo, compactando-as. Essa pressão acaba por agrupar e cimentar os pequenos grãos, todos esses pequenos fragmentos de pedra, transportados ao longo dos anos, das serras para o litoral. Forma-se pois uma matéria dura, compacta. E é assim que surgem as rochas sedimentares. Falamos de arenitos. Não é uma rocha como a conhecemos, dura e uniforme, é sim o resultado de milhares de grãos de areia compactados, unidos, que tem um comportamento quase idêntico a uma rocha. Pode por vezes desfazer-se pressionando com a unha de um dos nosso dedos.
O arenito provém quase sempre de antigas rochas de granito, que se desfizeram ao longo dos tempos, mas na sua composição podem literalmente entrar todas as outras areias que ficaram aprisionadas no mesmo sítio. O mar manda.




Sedimentos de argila transformam-se em argilito. É um outro produto. De uma ou outra forma, temos que algo que chegou de serras muito longe do mar, acaba por se concentrar e formar como que uma nova “pedra”.
Quando isso acontece em zonas com muita vida animal, é corrente que aconteça a cobertura destes e a posterior fossilização. Existem muitos exemplos desta situação bem perto de nós. A praia da Foz, a norte do Cabo Espichel, está pulverizada de fósseis, por exemplo.
Moluscos que morrem são cobertos por areias sedimentares e passam a fósseis. Quando o calcário das suas conchas se desfaz, ainda assim o arenito fica com a forma das conchas que cobria. Vejam abaixo.




Gostava ainda de vos falar sobre o calcário. Sabemos que a acumulação de conchas, carapaças, esqueletos, etc, ricos em carbonato de cálcio, um tipo de sal, dá origem a um outro tipo de rocha sedimentar: o calcário.
Não será o producto mais comum na nossa zona, mas existe. E existem muitos outros! De uma forma geral, as areias das praias são formadas por minerais leves, de mais fácil transporte pelas águas superficiais. Os mais pesados acabam por rolar e ser concentrados em depressões, no fundo do mar.
Por força de grandes tempestades, das correntes marítimas, das ondas, acabamos por ter uma mistura de ambos nas praias. Da ilmenita ao rutilo, do tório ao urânio, todos aparecem a misturar-se com minerais leves, como o quartzo, o feldspato.
E todos eles apresentam elevados níveis de contacto com ...potássio. Dessa mistura, resulta a côr da areia da praia. Quando trazemos de longe frasquinhos com areias de outras cores, apenas estamos a colecionar minerais de outras regiões, formados por areias de outras pedras. Mas de formação e processo idêntico aos nossos. As mais escuras, num tom entre o vermelho, castanho e preto, sinalizam maior presença de elementos pesados, enquanto que a areia clara, quase branca, é formada por elementos mais leves. Podemos, se quisermos ser muito precisos, analisar o tipo de areia, e determinar através de métodos científicos, de onde saiu essa areia: de que tipo de pedras e de onde terá iniciado a sua longa viagem.




A relação entre tório e potássio, por sua vez, permite contar a outra parte da história. Quase todos os sedimentos que formam a areia da praia provêm da erosão das rochas, da sua fragmentação ao longo de milhares de anos. O enigma, no entanto, é saber como é que essas areias chegaram à praia. Podem ter sido carregadas por ventos e depositadas diretamente na praia, ou as suas “mães pedras” levadas pelos rios até ao mar, onde passaram algum tempo sendo arrastadas de um lado para o outro até se fixarem na praia. Não é igual! Se a areia contém uma grande quantidade de potássio, esse sedimento provavelmente veio direto da rocha para a costa. Se a quantidade de potássio é baixa, então terá passado por várias outras etapas que levaram à decomposição desse elemento químico. Terá feito o caminho mais longo, o da entrada via rio.


Diferentes estados, a mesma matéria.


Embora seja um fenómeno colateral, ainda poderíamos introduzir aqui a questão dos sais minerais. A água salgada tem na sua composição partículas que foram arrastadas conjuntamente com as pedras que dão origem às areias.
Recordo aqui um excerto de um trabalho anterior em que abordei esse aspecto:

“A água do Atlântico tem uma quantidade de sal diluído de 3.3 a 3,7%, sendo comum atribuir-lhe o valor médio de 3,5%. Concretamente cada litro de água pesa mais 28 gramas do que a água doce dos rios, porque o sal lhe dá uma diferente densidade.
Cada quilograma de água tem 35 gramas de sais minerais, sendo a quase totalidade o nosso conhecido cloreto de sódio, o “sal”. A evaporação provocada pela exposição aos raios solares e aos ventos, conduz a uma salinização acentuada e constante das águas retidas”.

Assim é. E sabemos que esses sais são captados em terra, e fazem o mesmo percurso que as areias.


Para este pequeno sargo, é-lhe pouco importante saber algo mais que o sítio onde pode encontrar um mexilhão.


E como se formam as dunas?

A água do mar, através do vai e vem das marés, empurra areia para as praias. A sua acumulação dá origem a camadas com alturas que podem ser significativas. Chamamos duna a uma destas acumulações de areia junto à costa.
Os grãos que constituem as areias das praias são relativamente leves, todos sabemos e já sentimos na pele que voam com o vento. Certamente já tiveram dias de praia em que são obrigados a semi-cerrar os olhos porque os grãos de areia incomodam. Eles aí estão, a ser movimentados, por serem leves e pequenos. As areias calcárias, sobretudo aquelas em cuja constituição entram conchas, ou fragmentos destas, fazem efervescência com os ácidos presentes na natureza. Os seus materiais calcários são facilmente dissolvidos pelas águas gasocarbónicas, dando origem a minúsculos representantes da pedra mãe, daquilo que um dia terá sido um enorme bloco e que sofreu uma drástica transformação. Estes grãos da praia são normalmente muito bem calibrados, têm quase todos a mesma dimensão. São muito rolados, redondos. Isso facilita a sua deslocação, o seu rolamento sobre si próprios. Quando bem secos, podem facilmente ser transportados pelo vento, e é isso que acontece, dando origem às dunas.
Há que tentar entender o fenómeno como algo que se processa ao longo do tempo. Quando presentes numa duna, estes grãos que já sofreram imensas alterações ao seu diâmetro inicial, estão prontos para serem transportados de novo. A areia é agora transportada pelo vento forte para montante, voltando a fazer um percurso inverso, retornando à sua origem, e reiniciando uma nova e longa viagem que irá terminar, inevitavelmente, por mais uma chegada ao mar.
Se quiserem, e olhando a um exemplo muito próximo, as areias de Tróia irão ser empurradas de novo para o estuário do Sado, algumas mesmo muito mais para dentro. Não chegarão à foz do Sado, que nasce a 230 metros de altitude, na Serra da Vigia, perto de Beja, mas muitos destes grãos de areia irão fazer de novo parte dos 180 km de distância que separam a nascente do rio do seu estuário, a norte. Sim, o Sado corre para norte. Temos três rios a correr para norte, o Sado, o Côa, que nasce no concelho do Sabugal e vai desaguar ao Douro, e o rio Mira.
Temos pois que estes redondos grãos de areia voltarão a sair nas correntes, para fora da barra de Setúbal. Como resultado de sucessivos transportes e deposições de sedimentos, formam-se estratos permanentes. O maior ou menor desenvolvimento das dunas depende do tipo de sedimentos, da natureza do fornecimento de areias, da presença de ventos com velocidade suficiente para transportar os grãos de areia e da existência de vegetação que permita iniciar a estabilização da sedimentação. É a vegetação, com as suas raízes, que permite a fixação das areias. De outra forma, irão fazer este percurso imensas vezes.




Quando mergulhamos e vemos os nossos queridos salmonetes a escavar a areia e a descobrir uma minhoca, tudo bate certo.
Eles não sabem de onde veio a areia, mas precisam da minhoca. E chega-lhes. Nós sabemos um pouco mais, sabemos por exemplo como se forma esta areia.
Com as pessoas é idêntico. O conhecimento profundo não faz falta a todos. Basta-lhes a minhoca.



Vítor Ganchinho



5 Comentários

  1. Por favor percam um bocadinho do vosso tempo e leiam este artigo que está absolutamente fantástico, ilucidativo e bastante interessante!

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    1. Bom dia Carlos Campos Não deixa de ser espantoso saber que um grão de areia pode fazer várias viagens, passar pela mesma praia diversas vezes e voltar ao seu local de origem.
      Achei que, (pese embora seja um tema colateral em relação à pesca pura e dura), seria interessante para as pessoas saber um pouco mais.
      Eu divirto-me bastante a fazer este trabalho de pesquisa, que me obriga a falar com muita gente, a ir ao local, a ter de saber mais, para que possa passar esta informação. Na verdade, quando saio ao mar e olho para a costa, para a água, para os cardumes de peixes, vejo detalhes que poderão passar a quem foca a sua atenção apenas no balde de peixe que consegue, ou não, ao fim do dia. Concentrar todas as energias a encher o balde do peixe pode retirar-nos a possibilidade de entender o que estamos a ver à frente dos nossos olhos. Acredite que pode ser muito reconfortante saber algo desse "pouco mais", porque dá-nos de facto uma perspetiva mais alargada daquilo que é a pesca, no seu todo. Por outras palavras, ....não me basta encontrar a minhoca, ....eu preciso de saber em que areias ela se move, como e porquê. E sabendo isso, fico mais próximo de poder pescar os peixes, os tais que enchem a caixa....

      Abraço
      Vitor

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  2. Muito bom, nota 20 valores, sendo eu professor de biologia e geologia!

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    1. Boa tarde Reinaldo Piloto! Fico muito feliz por ter gostado, e ainda mais por ser este tema algo relativo à sua especialidade académica. O blog está aberto ao contributo de todos, porque quanto mais qualidade conseguirmos aportar a este espaço, mais interesse terá para quem lê.
      Como referi acima, a pesca é algo de muito abrangente, e saber mais significa estar mais qualificado, mais capaz de decidir bem.
      Estou a preparar um trabalho sobre a limpeza e conservação de peixe que, na minha opinião, irá ajudar imenso todos aqueles que pescam. Vai sair em breve!

      Uma boa tarde para si.



      Abraço
      Vitor

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    2. Boa tarde Vitor,

      Pegando no ponto anterior mencionado por si, a forma de conservar o nosso pescado e o modo do seu tratamento após a captura, é algo que me suscita interesse algum tempo.

      Dei conta da forma como os japoneses levam muito a sério, o remate do peixe após captura, através do estilo do estilo "Ikejime".

      Venha lá esse artigo...

      Abraço,

      A. Duarte

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