Baixa mar - O peixe come?

Muita gente tem a ideia de que o peixe está por aí, na água, em todo o lado, e que ao chegarmos junto à praia, é só lançar e pescar. Só assim.
A maior parte das pessoas tende a considerar uma visão particularmente simples e redutora da pesca, sem ter noção daquilo que efectivamente se passa num pesqueiro, em qualquer ponto da costa, numa sequência completa dia/noite.
Se lançamos uma isca, a qualquer hora do dia, é pressuposto que esta seja comida de pronto e consigamos um peixe, …de preferência grande. Mas será assim tão simples?


A maré vazante proporciona imagens muito bonitas, como esta. O mar não tem forma de não ser interessante, …seja em que circunstância for.


Temos em Portugal uma diferença de marés, grosso modo, de três metros. Habituámo-nos a encarar este movimento de águas como sendo algo de natural, normal e ao qual sabemos reagir.
Para quem pesca de barco, há algumas nuances a ter em conta, nomeadamente a questão da passagem próximo da costa, junto a pedras que afloram a superfície, ou baixios de areia. Mas não vem daí mal ao mundo. Sabemos fazer.
Tivéssemos nós marés como as da Baía de Fundy, no Canadá, com mais de 13 metros de amplitude, e teríamos de mudar radicalmente de procedimentos, ter outros cuidados. Imaginem só o facto de querermos entrar num barco ancorado numa marina com este desnível….ou aquilo que é necessário verificar e acautelar para dar entrada ou saída com o barco numa marina destas. E o tipo de acessos necessários.
E o que é isto das marés? E o que é amplitude de marés? Como afecta a vida dos peixes que queremos pescar? Esse é o tema de hoje.
As marés acontecem por força da acção gravitacional do sol e da lua. Quando temos a Lua alinhada com a Terra e o Sol, do mesmo lado, temos marés altas, máximas. Temos marés mortas, de pouca expressão, quando as forças gravitacionais se anulam, ou seja, quando o sol e a lua se encontram em lados opostos. Cada um “puxa” para seu lado, e tudo fica como está. Consideremos que a lua é mais pequena que o sol, logo, tem menos poder de atracção, mas por outro lado, está bem mais próxima. E por isso é mais decisiva.
A força de gravidade que a lua exerce sobre o nosso planeta, (sobre todo o planeta e não apenas sobre as águas, embora apenas nestas seja visível…), faz com que as águas se movam na sua direcção, acompanhando-a na sua rotina diária de rotação em torno do nosso planeta. A cada ciclo de seis horas e doze minutos, ou seja, um turno de 90º de rotação, temos uma nova “meia” deslocação concretizada, e a cada doze horas e 25 minutos, um movimento completo, sob um mesmo ponto. A rotação da Terra sob o seu eixo, a 360º, faz o resto. E assim temos movimentações de água constantes, com maior ou menor amplitude. E o que é esta tal de “amplitude”? É a diferença entre a altura da água na maré baixa e a altura que esta atinge na maré alta, nesse dia. Essa diferença é a amplitude, que muda sistematicamente, embora seja possível prevê-la, para um determinado ponto.

A geometria da costa tem uma grande influência na altura das marés altas e baixas. E também a fase da lua em que nos encontramos. Todos sabemos que a luas grandes, Lua Cheia ou Lua Nova, correspondem marés maiores, mais altas. E por oposição, a luas pequenas, Quarto Minguante ou Quarto Crescente, marés curtas, ou seja, baixas amplitudes de maré.
Um factor interessante a considerar é a latitude do ponto em que nos encontramos. É correcto considerar que no hemisfério Norte, onde nos encontramos, as grandes marés têm a ver com a configuração e posicionamento dos continentes. O Atlântico está “entalado”, comprimido, em dois continentes, Europa, América do Norte, sendo que estamos muito próximos do norte de África também. Quanto mais curtas as distâncias a vencer, mais altas as marés.
Passa-se o oposto no Hemisfério Sul, em que a América do Sul, a parte sul de África, a Austrália e a Antártida têm longas distâncias entre si, pelo que as marés são bastante mais pequenas.
Inconscientemente, damos por nós a tomar decisões em função das marés. Algumas actividades humanas dependem das marés em absoluto: os mariscadores da apanha do perceve, os apanhadores de casulo, navalha, lingueirão, ameijoa, etc. E também actividades industriais. Dou-vos um exemplo: os navios de alto calado chegam e saem do estaleiro naval da Lisnave, na Mitrena em Setúbal, em função das marés. Quando chega o momento, e porque as águas são baixas, há que sair. Sob pena de, por atraso, vir a encalhar o navio, ou ter de esperar pela maré seguinte. Isso significa milhares de euros de acrescidos custos de acostagem/ hora.

Mas queremos fazer hoje uma abordagem a um tema que versa o movimento dos peixes em função das marés, e é por aí que vamos: já aqui foi dito repetidas vezes que o ciclo das marés influencia decisivamente os hábitos dos peixes da nossa costa.
Entram e saem dos pesqueiros em função da “conta de água” que estes têm. Em zonas costeiras muito baixas, a entrada e saída de águas é decisiva e marca o compasso de alimentação dos nossos peixes. Podemos ter tudo, …ou nada.
Não convém subestimar pesqueiros que estão a seco, desertos, com a areia e pedra à vista, porque daí a algumas horas estarão plenos de vida, com umas centenas de peixes que entraram de rompante assim que a água lhe permitiu.


Zonas vazias de vida tornam-se um concentrado de seres que se alimentam numa azáfama tremenda quando o pesqueiro mete a quantidade de água certa.


A chegada da noite muda as coisas. Zonas desertas durante o dia, passam a estar bem preenchidas, assim que a noite cai. As permissas são sempre as mesmas:
Água suficiente, segurança, comida. Podemos ver peixes em pouco mais de um palmo de água, em condições em que fazer pesca é quase impossível. Mas eles estão lá e sabem muito bem o porquê.


Ao encher, as pedras ficam paulatinamente cobertas e os peixes aproximam-se da praia. Para comer.


Seguindo um instinto ancestral, os peixes afastam-se da costa na maré vazia. É natural que nesta altura, o contacto que temos com os peixes seja francamente residual. Não picam. Estão longe, encostados a estruturas, dentro de buracos nas pedras, ou simplesmente ao largo. Comeram horas antes e por isso estão bem.
Quando a água voltar a tapar estes locais, farão a sua pequena migração perpendicular à costa e vão voltar a revirar pedras, a procurar os pequenos seres que lhes servem de alimento.
O princípio de funcionamento das redes de pesca assenta precisamente neste tipo de deslocação.




Em zonas rochosas, é comum que na vazante fiquem algumas poças de maré. Ficariam espantados se soubessem que tipo de habitantes residem nestas poças.
Podemos encontrar polvos, cabozes, navalheiras, santolas, alevins de peixes de todo o tipo, e …muitos camarões. O intervalo de tempo que passa de uma maré a outra não é muito longo, e os pequenos peixes encontram aqui um refúgio seguro e muita comida, que garante o seu crescimento. Alguns predadores aprenderam a visitar estas poças e a garantir aqui o seu sustento. Nas nossas ilhas, chegam a encontrar-se meros de pequeno porte em poças quase “ impossíveis”…


É isto que serve de alimento aos nossos sargos e douradas: mexilhão, cracas, etc, tudo aquilo que vive agarrado às pedras.


Basta que estejam meio tapadas de água e o trabalho de “pedreiro” começa. Partem e arrancam comida da pedra até se sentirem capazes de tomar o caminho de regresso aos fundões.




Zonas cobertas por algas, limos, são extremamente importantes para o meio ambiente. Não esqueçam que não são as plantas terrestres, as árvores, os arbustos, os grandes produtores de oxigénio do planeta.
Esse é um lugar de honra ocupado pelas micro-algas. Com efeito, e sabendo que apenas 30% do nosso planeta está fora do meio líquido, estranho seria que as algas marinhas, que existem em todos os oceanos, não fossem responsáveis por uma fatia significativa desse bolo. Falamos de 54% da produção mundial de oxigénio. Para além disso, são ao mesmo tempo o nosso maior meio de absorção de dióxido de carbono, tornando-se pois insubstituíveis à vida.
Produzem oxigénio em excesso, o qual é libertado na água. Irá passar posteriormente para a atmosfera, de onde nós humanos respiramos.




Quando a água se vai, vão também os sargos, as douradas e todos os peixes que aproveitam este tremendo manancial de vida que floresce nestes baixios.
É verdade que uma paisagem deste tipo nos deixa sempre um sentimento de vazio, de falta, de carência de qualquer coisa. É a água salgada que falta.
Mas, cumprido que seja um ciclo completo de maré, voltará a subir de novo, a encher os nossos olhos e a dar de comer aos nossos peixes.



Vítor Ganchinho



2 Comentários

  1. Muito instrutivo. É sempre bom aprender, apesar da minha idade avançada, em tudo na vida gosto de saber mais e mais e isso tem-me ajudado nos mais de 57 anos que levo de pesca. Nunca sabemos tudo e sempre aprendi muito com os meus alunos. No mar então aprendo todos os dias, moro em Peniche e as conversas com pescadores locais e com muita prática tem-me ensinado imenso.
    Obrigado por mais esta lição.

    Luís Pimentel

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    1. Boa tarde Luís Pimentel Fico muito feliz por este trabalho lhe ser de alguma forma útil. Por vezes são apenas detalhes, pequenas coisas, mas que no fim de tudo, ajudam a conseguir melhores resultados. Eu tenho 58 anos de idade e pesco há 52. Faço-o de forma algo intensiva, com três a quatro saídas semana, como guia de pesca, mas penso que o importante nem é isso, é a vontade que tenho de saber mais, de ir mais longe, de gastar horas e horas a falar com esta ou aquela pessoa. Falo muito com gente especializada neste ou naquele tema. Se quero escrever sobre aquacultura, vou visitar duas ou três, falo com as pessoas que trabalham lá, com os engenheiros responsáveis pela produção de alevins, com as pessoas que limpam os filtros de água, com quem embala o peixe. Não é raro que faça algumas dezenas de horas de pesquisa até decidir se avanço ou não por um determinado tema. A pesca é um universo muito grande, tem muitos caminhos e muito que saber. Por vezes as coisas estão mesmo à frente dos nossos olhos e se não houver alguém que provoque o "clic"...não as vemos. É isso que gosto de fazer. E sobretudo, procuro refletir sobre aquilo que está a acontecer. Mergulho, vou lá abaixo ver, tento perceber quais as condições que o peixe para estar ali, ou porque é que teve de sair....

      É um mundo! Pode ver outros assuntos anteriormente publicados, carregando na seta vermelha no fundo de cada página do blog. Obrigado por se dar ao trabalho de ler.



      Um bom fim de semana para si.

      Abraço
      Vitor

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