Quando as areias levantam...

Enquanto o mar está calmo, a vida flui com a naturalidade de sempre. Tudo parece fazer sentido a quem mergulha e observa a vida marinha.
Os peixes grandes caçam os peixes miúdos, e estes procuram escapar, numa lógica de relação predador/ presa que dura desde sempre. Tudo nos parece no seu lugar, as águas estão limpas, calmas.
E quando o mar levanta? Que acontece aos peixes num meio líquido com uma enormidade de areias e algas em suspensão, com muito menos visibilidade? Como respiram os peixes no meio da tormenta?
Esse é o ensaio de hoje. Vamos ver o que altera quando o mar …altera.

Peixes de meia água que procuram a sua comida no fundo, ou peixes que vivem a sua existência sempre junto ao fundo, passam a ter a areia presente em todo o lado, do topo das pedras aos cantos mais recônditos.
Estes finos grãos espalham-se rapidamente, prejudicando a respiração e a visibilidade. Em casos extremos, em temporais severos, a necessidade de sair para fora de pesqueiros baixos é um imperativo.
Nem todos podem sair. Para todos aqueles que têm a possibilidade de o fazer, para os que podem ganhar o largo, a sua vida de predadores activos pode continuar, procurando outro tipo de comida, desde logo lulas, chocos, caranguejo pilado, ou outros peixes. Mas, e os outros, os que ficam, como respiram? A respiração em concreto, o que é e como é processada? Vamos espreitar.
Os peixes não respiram água, respiram oxigénio, diluído na água. Não é a mesma coisa. Este, o oxigénio tão essencial à vida, encontra-se dissolvido no meio líquido, o que obriga a uma passagem contínua de água pelas branquias. Aquilo que de forma comum conhecemos como “guelras”, é parte importante do aparelho respiratório dos nossos queridos peixes. É aí que se processam as trocas gasosas. O processo evolutivo engendrou uma forma de conseguir uma exposição máxima à passagem de água. Se considerarem a superfície total de tecido vivo que constitui as ditas guelras, vão chegar à conclusão que é muito maior do que parece. É uma área muito grande! Aquelas “farripas” vermelhas sobrepostas deixam passar o líquido e filtram o oxigénio presente. O processo respiratório é sobejamente conhecido: a água atravessa as branquias, e os seus finos vasos capilares, passa por estes filamentos e lamelas, e ocorre a troca gasosa.
O sangue circula no sentido inverso ao da entrada de água e renova-se, carregando de oxigénio, eliminando gás carbónico pelas fendas branquiais.
Aquilo que permite que haja passagem de um meio para o outro é o défice de nível de oxigénio no sangue, sempre inferior ao nível de oxigénio presente na água. Chama-se a este processo “difusão”, e consiste no facto de este gás se mover para onde existe a sua falta. É tempo para o trabalho da hemoglobina, uma proteína presente nas células vermelhas do sangue, que irá distribuir o oxigénio por todo o corpo do peixe. De retorno, é captado o dióxido de carbono, num processo que nos é familiar, porque similar ao nosso, o humano. Não somos diferentes em tudo….

E como eliminam as impurezas que lhes entram boca dentro?!
A água do mar, ingerida pela boca e bombeada para as branquias, passa por pequenos cílios que mais não são que filtros que retêm estas impurezas: areia, restos de algas, fitoplâncton, zooplâncton, restos de alimentos, etc. Tudo aquilo que transforma a água pura, o H2O, em vulgar “água de mar”. E é aqui que se faz a “triagem” de detritos que possam estar em suspensão. Quando o mar levanta, é bom contar com este mecanismo de filtragem. Mesmo que não resolva todos os inconvenientes, pelo menos ajuda. Trata-se de um ponto importante e vai ser a base do trabalho de hoje.


Os arcos branquiais estão dispostos em finas lamelas, e têm como principal função aproveitar o oxigénio dissolvido na água. É aqui que as trocas gasosas se processam.




Quando a onda começa a chegar de longe, traz consigo uma força que tudo empurra à sua frente.
Os períodos de instabilidade, sendo absolutamente necessários, obrigam a reajustamentos imediatos, sob pena de a vida sofrer pesadas baixas.
Todos se preparam para o que vai acontecer, cada um armado com os seus argumentos de sobrevivência.




Dentro dos buracos, a agitação marítima torna impossível a permanência de vida. E como será passar a noite no meio desta massa de algas e areia? Os peixes conseguem dormir?
Sabemos que os peixes não dormem, apenas passam a um estado de repouso entrecortado de vigília activa, de abaixamento do metabolismo basal, mas a dificuldade de respiração está lá.
A necessidade de expelir detritos pela boca passa a ser constante. Aqueles que normalmente se escondem em buracos para evitar os predadores terão condições para o fazer nestas condições? Não, nem por isso. Há que sair.




Numa primeira fase, as algas mais frágeis partem-se, e começam a ser conduzidas pela força das águas. Irão somar-se mais tarde aos minúsculos grãos de areia que flutuam ao sabor das ondas e correntes.




Todo o substrato vegetal que repousa sobre os fundos começa a levantar. Ainda não é o momento das areias iniciarem a sua movimentação.
Os mais pesados, por exemplo as areias, demoram mais que os vegetais. Tem a ver com a densidade dos materiais em questão. Neste momento, e a este nível de fundo, tentar respirar é francamente mais difícil. Por isso o peixe tem tendência para subir um pouco.




Se alguns tipos de plantas marinhas mais robustas aguentam até um certo ponto a agitação das ondas, sem partir, os mais pequenos grânulos de areia saltam agora em todas as direcções. É o momento em que se forma uma massa de inertes com alguns metros de altura. Chamamos “poalho” a toda esta matéria orgânica em suspensão.




Uma navalheira incomodada com a areia, solidária com um rascasso, num recanto da rocha. Estes são dos que ficam.
Ambos esperam melhores momentos, as suas características físicas não lhes permitem fazer nada mais. Há que aguentar.


Animais cujo corpo é rugoso, retêm muita areia em cima. Esta estrela-do-mar é um bom exemplo disso.


E vai piorar, à medida que a agitação aumenta...




Numa situação extrema, a quantidade de areia pode ser enorme. São os momentos em que uma pedra alta pode “arear” ou “desarear” por completo em poucas horas.
Isso pode querer dizer uma subida de mais de dois metros de inertes. As pedras aparecem ou desaparecem e a vida tem de adaptar-se rapidamente.
Nestes momentos, os peixes de buraco como as abróteas, os safios, os rascassos, as santolas, as navalheiras e os polvos, por exemplo, são forçados a sair, sob pena de ficarem enclausurados.




Dificilmente conseguem ver este cardume de salemas, mas estão aqui. São autênticos fantasmas….no meio dos sedimentos em suspensão. As cores ficam esbatidas, o amarelo/verde do dorso fica muito próximo da cor das algas das pedras.
Ficarão até não ser possível a sua permanência. Pequenos peixes pelágicos que se alimentam na coluna de água, como as sardinhas, os carapaus, as cavalas, de súbito encontram uma dificuldade adicional: o plâncton e pequenos seres de que se alimentam passivamente, filtrando água, passam a estar misturados num caldo de areia e plantas. Os arcos branquiais trabalham mais, ainda permitem a respiração, mas a dificuldade aumenta.

Para quem leu “ O Principezinho” recordo que “o essencial não é visível aos olhos, apenas pode ser visto com o coração”.
Dentro de água, mesmo que não consigam ver com os olhos, a linha lateral dos peixes dá-lhes toda a informação e que necessitam.
Quando a visibilidade baixa ao limite mínimo de quase zero, ainda assim os peixes podem alimentar-se, e ter alguma actividade, embora reduzida.




Como resposta a toda a agitação dos fundos mais instáveis, os peixes “alvoram”, ou seja, abandonam o contacto com o fundo, e passam a estar alguns metros acima.
Nestas circunstâncias, e se falamos de pesca, compensa deixar bater a chumbada no fundo e a seguir levantar dois a três metros, até se conseguir entender a que cota estão os peixes a comer.
Mas nitidamente os resultados não poderão ser efusivamente bons.




Logo que as águas acalmam, as manchas de sargos começam a ver-se. Este é um momento de grande agitação para os cardumes, porque seguramente aconteceu algo.
A comida fácil aparece. O azar de uns é sempre a sorte de outros….


Os polvos voltam às suas tocas, logo que têm essa possibilidade.




Assim que pára a movimentação de areias, os peixes voltam aos seus postos de sempre, e procuram aquilo que ficou desenterrado.
Na natureza, tudo o que acontece fora da rotina, tudo o que é diferente, pode ser uma oportunidade. Em potência, uma forma de conseguir alimentação.




E voltamos a águas limpas. Nas zonas rochosas, esta visibilidade melhorada aparece muito mais depressa do que em zonas de bastante suspensão.
A prioridade agora é tentar encontrar os despojos da ressaca anterior. Antes dos outros...



Vítor Ganchinho



5 Comentários

  1. Boa tarde Vitor,

    Mais um excelente artigo didático e mais algum conhecimento, para entender esse maravilhoso mundo aquático!

    Abraço,

    A. Duarte

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    Respostas
    1. Bom dia António Tenho a rara felicidade de contar com muita gente que me ajuda. Uns são especialistas em informática e tratam de formatar e publicar, outros tratam da comunicação via redes sociais, outros dão-me suporte em termos de imagens, enfim, este é um trabalho de uma equipa empenhada e solidária. A parte mais fácil ainda é a minha, que só tenho de me empenhar em escrever e isso é muito simples: basta colocar uma letra à frente de outra.

      O propósito é sempre o mesmo: tentar fazer luz sobre aspetos menos conhecidos, e que não deixam de influenciar o resultado das pescarias que fazemos.
      Estou convicto de que pessoas informadas são pessoas mais eficazes.
      Há quem apenas queira saber de baldes cheios de peixes, mas a pesca é muito mais que isso...

      Abraço
      Vitor

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  2. Bom dia Vitor,

    O trabalho em equipa é sempre mais eficaz, gratificante e com os melhores resultados. Este é um desses casos!

    No que a mim me diz respeito, basta só agradecer-vos a disponibilidade pela partilha de conhecimento e a si mais concretamente, pela sua paciência demonstrada deste o primeiro dia que trocamos as primeiras palavras em redor desta nossa paixão em comum... a pesca desportiva!

    Sempre disponível para ajudar, a dar uma opinião, a clarificar uma dúvida... simplesmente incansável!

    E sim, a pesca é muito mais que ter um peixe no fim da nossa linha, este seu blog é a prova disso mesmo!

    Muito obrigado!
    Abraço,

    A. Duarte

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    1. Estamos a fazer um ano! Se alguém quiser substituir-me agora, pode avançar...
      Basta que escreva um artigo por dia, e que o conteúdo seja suficientemente interessante para motivar a leitura de algumas centenas de pessoas. Nós estamos a ser lidos nos Estados Unidos, Japão, Emirados Árabes, Canadá, etc, etc...
      Estou agora a preparar algo que penso ser muito interessante para todos: a limpeza e conservação do peixe. Dir-me-ão: " mas isso não tem nada a ver com iscas nem com canas nem com carretos".

      Pois não.

      Abraço
      Vitor


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    2. Vitor,

      O vosso trabalho é excelente em várias vertentes, usando termos do mundo do futebol... "Equipa que ganha não se mexe! "

      Vê-se muito bem que gosta do que faz, e faz com dedicação e empenho, sou um incondicional admirador do seu trabalho...siga por muitos mais anos!

      Abraço,

      A. Duarte

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