Construção humana junto ao mar

São muitos anos de presença humana junto à costa, e isso necessariamente implica vestígios da nossa actividade. Estão em todo o lado. Falamos de cerca de 500.000 anos de permanência de pessoas, e este facto advém do Período Paleolítico, não são dois dias.
Provavelmente não sabem que a Gruta da Figueira Brava, na Arrábida, tem vestígios do Paleolítico Médio, com restos de Homo Neaderthal, bem como objectos por este utilizados.
Aqui e ali, uma capela, uma igreja, uma ermida, um convento, testemunham os muitos anos de ocupação.

E mais recentemente, perfeitos absurdos construídos nos sítios mais disparatados. Basta-nos um simples passeio junto à costa para detectar construção que não devia lá estar.
Não me refiro sequer ao absurdo de uma “quinta” na rocha escarpada da Arrábida, entre Sesimbra e o Cabo Espichel.
Para aqueles que se querem rir, basta passar por lá e ver a que ponto pode chegar a loucura de uma pessoa que manda construir um muro de tijolos numa vertente da serra.
Pobres operários de construção civil que tiveram de carregar cimento, rede metálica e tijolo para fazer umas centenas de metros de muro. Sem qualquer utilidade visível, já que dentro da “propriedade” o que temos é o mesmo que existe fora: mato.

Nem todas as construções foram inúteis. Algumas delas deram abrigo a pescadores, às suas redes, outras foram importantes pontos de vigia para evitar intrusões de malfeitores. Outros tempos, outras necessidades.
Custa-nos a acreditar que já passaram por aqui corsários, bandidagem de toda a espécie, que assaltava barcos no mar, que matava pessoas e as deixava morrer por afogamento. Mas existiu.
No maciço sudoeste da Serra da Arrábida encontramos uma das maiores falésias do nosso país, sendo a chamada “Falésia do Risco”, lugar onde tantas vezes mergulhei, a maior escarpa litoral calcária da Europa.
Chama-se “do risco” porque um regato de água que tomba da falésia aquando das chuvadas, passa sobre uma zona de terra barrenta, vermelha, trazendo esses sedimentos, e pintando dessa cor o calcário esbranquiçado.
Faz um risco vermelho. Há um traço evidente, parede abaixo, que termina junto ao mar, por sinal numa gruta que mete robalos com fartura, na altura certa do ano. A meio da parede, à esquerda de quem entra, há uma fenda na rocha, onde ficou entalado um tronco de madeira. Não é uma madeira qualquer, trata-se de madeira preciosa, vinda de África. O navio de carga River Gurara, trazia esta carga quando por descuido embateu na pedra, junto à Ponta do Cabo Espichel, naufragando. As peças deste navio estão por todo o lado, grandes chapas, peças metálicas cuja finalidade é facilmente perceptível, e madeira, muita madeira. As grutas estão repletas dela, e concretamente a gruta da Falésia do Risco, tem um tronco atravessado e por baixo, sempre, sempre, uma magnífica abrótea.




Espreitar a costa indica-nos muitas vezes a possibilidade de existência de materiais de construção excedentários, que seria penoso carregar para cima.
E por isso são lançados à água.




Algumas fortificações começaram por ser simples postos de vigia, como este que vêem acima. Pela sua eficácia, e localização privilegiada, alguns vieram a ser melhorados, aumentados, e deram origem a unidades de superior importância.
Por exemplo o forte do Outão, hoje um hospital ortopédico, foi uma simples vigia, construída em 1390 por ordem de D. João I. É uma das mais antigas fortificações marítimas do país.
Posteriormente, em 1495, o rei D. Manuel I de Portugal mandou proceder a melhoramentos. Os marítimos de Setúbal, congregados numa instituição chamada Casa do Corpo Santo, solicitaram e conseguiram a construção de um farol de apoio à navegação nocturna, erigido em 1625. Contribuíram com donativos para novas obras de melhoramentos, em 1657, os proprietários das marinas de sal e os marítimos da Casa do Corpo Santo. No século XIX, por desinteresse de manutenção de uma força militar com funções defensivas, foram retiradas as peças de artilharia. O forte passou então a ser uma prisão.
Em 1890, sofreu obras de adaptação para casa de férias do rei D. Carlos I de Portugal.




A resistência dos materiais de construção fez com que algumas destas construções tenham chegado até aos nossos dias com um aspecto ainda robusto.


O mar bate e bate, mas a construção mantém-se.


Praia da Baleeira, junto ao Cabo Espichel.


Estas habitações, que já deram apoio à pesca profissional, estão hoje abandonadas.
Marcam a presença de pessoas em tempos seguramente mais difíceis. A pesca nunca enriqueceu aqueles que a ela se dedicam, mas sim aos que comercializam o produto do seu trabalho.




O acesso é feito através de estreitos caminhos na serra. Vale a pena fazê-los, são muito bonitos, permitem fazer exercício físico, e a recompensa é uma entrada na água fresca e limpa do mar. Não tanto pela praia, hoje em dia um depósito de calhau rolado e pouco mais.


Foto feita na Praia da Baleeira. Na verdade, de praia tem pouco.




O 25 de Abril traria consigo uma explosão de construção clandestina à Serra da Arrábida. Foram tempos de vale tudo, e algumas dessas casas ainda hoje existem em zonas que seriam de permissividade de construção menos evidente. O Portinho da Arrábida era um depósito de barracas, algumas de madeira, felizmente entretanto retiradas.




A falta de areia é evidente, muitas praias estão em risco de desaparecimento. Não serão alheias as construções de cais e ancoradouros dentro do rio Sado, que trouxeram para fora areias hoje depositadas em frente ao Bico das Lulas, em Tróia. Tudo mudou.


Este espaço já teve praia de areia fina.


A alteração das condições climáticas tem vindo a provocar uma mudança no tipo de ventos que chega à nossa costa. Se há umas dezenas de anos atrás tínhamos ventos perfeitamente demarcados, definidos, dominantes, neste momento já não é assim. Os portos portugueses, todos eles instalados em baías abrigadas dos ventos que entravam de norte ou noroeste, estão hoje cada vez mais expostos a ventos que entram de sul ou sudeste. Estes ventos sopram agora de um quadrante que não é aquele para o qual foram construídos esses portos. Algo está a mudar.
Esta alteração de ventos provoca também câmbios de posicionamento de areias. Quem conhece o Porto de Setúbal sabe bem que a saída do porto não é hoje a mesma de há 30 anos. O areamento perfeitamente visível e perigoso para quem sai do Sado, veio de algum lado. A construção do cais de carga da Auto-Europa dentro do rio, não será alheia a isto.

Andam a mexer no tempo...


Vítor Ganchinho



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